Passada, por ora, a polêmica da Praça da Soberania, em plena Esplanada dos Ministérios, em Brasília, outras mais poderiam ocupar os que se preocupam com o futuro da capital federal. Especial referência merece a quantidade de grandes empreendimentos entregues a um ou outro escritório local de urbanismo e arquitetura. Esses exercem no território valorizado do Plano Piloto e adjacências exclusividade assemelhada à que se atribuiu até aqui ao venerando e respeitado arquiteto Oscar Niemeyer. Por vezes o monopólio refaz o já feito e para pior, como veremos adiante o caso de Águas Claras (AC1).
Quando analisamos a urbanização do Distrito Federal (DF), é importante levar em conta não apenas o quadrilátero definido para abrigar Brasília, mas também sua Área Metropolitana (AMB). Essa, ainda não está oficialmente delimitada de direito, mas possui as características funcionais de metrópole de fato. Assim, o Plano Piloto foi concebido para abrigar a capital federal, significando um sítio urbano fechado. A constelação urbana que se formou no processo desmontou o mito do planejamento “racional” (tão decantado nos meios oficiais e na mídia). E por que tal desmonte? A resposta encontra-se na criação de Taguatinga, em 1958 - a primeira cidade-satélite. Com o novo núcleo, inaugurou-se um ciclo de centrifugação de população, não abrigada no Plano Piloto. Para esse, o destino e principal característica seria “a função governamental. Em torno dela, se agrupam todas as outras funções e, para ela, tudo converge”, conforme o Relatório do respeitado urbanista Lúcio Costa.
Cabe considerar que a Capital do Brasil é o DF urbano e não apenas o Plano Piloto, o centro da cidade. Os demais núcleos compõem o aglomerado metropolitano do DF, juntamente com os municípios limítrofes do estado de Goiás. A despeito de seus fundadores terem pensado em cidades-satélites, elas foram criadas como complementos da capital. Aliás, sem as cidades-satélites, Brasília não se viabilizaria. O espaçamento existente entre os núcleos não tira do DF a singularidade de sua geografia urbana polinucleada, que se materializou no processo de urbanização local.
O Plano Piloto abrigou os poderes da república e induziu a periferização dos baixos escalões de servidores do governo e serviços. Ao longo do processo, os menos aquinhoados receberam lotes e fincaram suas moradias em 29 de regiões administrativas (RAs). Há, além das RAs, centenas de loteamentos, regulares ou não, que se constituem em núcleos com formas e funções urbanas. De início, ficaram conhecidos como “condomínios rurais”, de iniciativa privada. Muitos resultaram de grilagem de terras públicas ou particulares e são verdadeiro nó na questão fundiária do DF – tal como fica patente na CPI da Grilagem – Relatório Final, da Câmara Legislativa do DF – 1995. O relatório mostra a omissão de diversos governos em combater a grilagem e em oferecer à população programas habitacionais tanto para a população com menor poder aquisitivo como para a classe média baixa. Nos dias correntes o governo do Distrito Federal (GDF) procura regularizar os “condomínios”, trazendo-os à legalidade, sujeita ao pagamento de impostos, independentemente de estarem ou não agredindo nascentes, matas ciliares ou áreas geomorfologicamente desaconselhadas à ocupação habitacional, susceptível a erosões.
Para a classe média alta, todavia, há sucessivas ofertas de espaços residenciais. Como fatos consumados são os empreendimentos imobiliários de vulto como Águas Claras, Sudoeste (e respectiva ampliação) e o polêmico Noroeste. As iniciativas imobiliárias se implantam em áreas de cerrado, nas quais há nascentes que serão afogadas por asfalto e cimento. No Noroeste, há o ainda não resolvido problema da ocupação indígena da terra. Na nomenclatura burocrática, os indígenas serão “erradicados por serem invasores”. Expulsos da terra que, por certo, pertenceu a seus ancestrais, esses brasileiros natos verão sua oca dar lugar a apartamentos e instalações luxuosas, lucrativas para os empreendedores imobiliários e para os cofres públicos.
Nessa direção, parece que o processo não se estancará: disseminam-se no território outros assentamentos como, por exemplo, o Catetinho, uma sabida reserva de cerrado ralo e do aqüífero do DF. Os mananciais do Catetinho servem para a captação de água potável pela Caesb (Companhia de Saneamento Ambiental do DF). A questão dos mananciais tem sido preocupação constante de geógrafos, ambientalistas, urbanistas e outros, pois, a cada dia, se antevê a captação de água para tratamento em mananciais e rios distantes como já se aventa com o reservatório da hidrelétrica de Corumbá 4.
Água, moradia e transporte público há anos se mantêm na agenda do GDF e da mídia. Favelados continuam a ser removidos para diversos pontos do território do DF, mas sem programa habitacional digno desse nome. Todavia, para a classe media e alta, houve sucessivas ofertas de lugares para moradia. São exemplos os parcelamentos havidos nos grandes lotes das Mansões Parkway e Mansões Dom Bosco, onde terrenos de 10 e 20 mil metros quadrados são divididos quatro ou cinco lotes para abrigar “condomínios fechados”. Tem havido igualmente expansão dos bairros Lago Sul e Norte.
São fatos consumados os empreendimentos imobiliários de Águas Claras, Sudoeste e Noroeste. Para o Sudoeste, propaga-se a necessidade de expansão em terreno permutado com o Ministério da Marinha. A ampliação do Sudoeste e o início das obras do Noroeste, debaixo de polêmica porque se constitui em importante área de reserva do cerrado no DF. Além disso, as nascentes do local serão afogadas por cimento e asfalto e a já referida polêmica “erradicação” dos indígenas que mantém oca há muitos anos no local. Tudo para dar lugar a uma reprodução luxuosa do Plano Piloto.
Recuando no tempo, constata-se que, em meado dos anos 1970, havia preocupação com a organização sócio-espacial e tentativa, com o Plano Estrutural de Organização Territorial do DF (PEOT, 1977) para descentralizar a cidade e evitar a congestão do centro. Mas o PEOT não foi implementado e algumas de suas disposições particulares, implantadas de forma desvirtuada. Assim, a Área Complementar 1 (AC1), passou a ser conhecida como Águas Claras e recebeu programação para servir à descentralização de Taguatinga e de algumas atividades de serviço do Plano Piloto. Todavia, o plano para a AC1 era diverso do que foi implantado há pouco tempo, pois na contemplava a função residencial. Os edifícios teriam, no máximo, três pisos e se destinariam para abrigar atividades de serviços (gráficas, restaurantes, escolas e outros componentes do terciário e quaternário). Aproveitando os grandes espaços vagos existentes na AC1, haveria lugar para diversos campi universitários e um grande centro olímpico, comum a todas as escolas. Com essa localização, era desejo dos planejadores aproximar o ensino superior dos moradores das cidades-satélites – carentes desse nível de ensino.
Com esse relato, pode-se perfeitamente aquilatar a distância sócioespacial existente entre a AC1 e a que foi implantada com um conglomerado de edifícios, alguns com mais de 20 andares. Isto quer dizer que se pensou uma descentralização dos serviços e o que foi materializado foi a continuidade do processo de centrifugação da população, sem ser acompanhada das oportunidades de trabalho nas proximidades. Dessa forma, os habitantes de Águas Claras devem fazer o “commuting” Águas Claras-Plano Piloto, pela manhã e no sentido inverso, ao fim do dia, congestionando as vias e provocando congestão urbana – exatamente o inverso do que se pensara em 1977 com o PEOT. Esse plano teve o apoio da TERRACAP, a gerência da CODEPLAN e meses de trabalho de equipe multidisciplinar. Pode-se afirmar que se trata de um “planejamento desperdiçado”, entre os tantos que se seguiram como o POUSO, o POT e outros.
Constata-se hoje que a AC1poderia ter evitado a congestão do tráfego em direção ao Plano Piloto, pela manhã e engarrafamentos enervantes ao fim do dia em direção às satélites e, provavelmente dispensaria a construção do trem metropolitano que afunila os deslocamentos em direção ao centro. Ainda com o plano para abrigar serviços, a AC1 reorientaria os deslocamentos: seriam centrífugos nos horários de pico, pela manhã e, em sentido inverso no fim do dia. Como Águas Claras é meramente residencial, os deslocamentos são feitos majoritariamente em veículos ocupados por uma ou, no máximo, duas pessoas, em direção ao Plano Piloto, pela manhã, ocasionando o que a mídia passou a denominar “caos no trânsito do DF”.
Como antídoto ao caos no trânsito, o GDF pensa em ampliar os trilhos do trem metropolitano para outras satélites, como Recanto das Emas e Gama e um ramal para a Asa Norte, com orçamento de algumas centenas de milhões de reais. E ainda gera movimentos pendulares subsidiados. Outra iniciativa, em debate, é a construção do Veículo Leve sobre Trilhos, o VLT, com ramais cortando a W-3 Norte e Sul, demandando o aeroporto, mas também afunilando o tráfego em direção ao centro.
Assim, as “próteses urbanas” (termo cunhado pelo saudoso geógrafo Milton Santos), apenas surgem para fechar a malha viária e residencial em volta ao Plano Piloto, justamente no sentido inverso do que foi o ideário do plano piloto do esclarecido e criativo urbanista Lúcio Costa. E, pior, notam-se iniciativas no sentido de fazer junção (conurbação) entre alguns núcleos, como Guará I e II e Águas Claras; Águas Claras e Taguatinga; esta com Ceilândia, Samambaia, Recanto das Emas e Gama – ou uma grande mancha urbana. Com ela serão destruídas as reservas de cerrado existentes entre esses núcleos e sufocadas as nascentes, um legado de insustentabilidade para os próximos 40 ou 50 anos. Nota-se igualmente a derrocada do polinucleamento ainda existente, ao tempo em que se desejavam espaços intercalares e qualidade ambiente em volta dos núcleos habitacionais. Perdeu-se a vantagem da descentralização residencial sem ganho algum em operacionalidade. E, ainda, mais a treliça urbana ficará mais apertada, caminhando para a grande mancha urbana que enerva os habitantes das grandes metrópoles.
Agora, ao se aproximar da metade de um século de existência, Brasília assiste passivamente o desfazer-se do “cinturão verde” e da “escala bucólica”. Em seu lugar, a urbanização caminha para reproduzir Rio de Janeiro, São Paulo e outras capitais brasileiras, com mais cimento, asfalto, impermeabilização e sujeita a alagamentos e inundação das vias públicas quando das torrenciais chuvas de verão. Avalia-se que as próteses implantadas parecem sofrer da síndrome do “mercado imobiliário”. No mundo desenvolvido essa síndrome virou uma bolha que gerou crise econômica sem precedentes, desde a quebra das bolsas em 1929. É de se considerar, como geógrafo urbano, que as atividades imobiliárias, enquanto ainda é tempo, devem ter mais transparência e debate com a população.
Aventa-se, por fim, que a gestão do território do DF deve ser assumida pelos atuais e futuros governantes com visão de futuro. Projetos para 30, 40 ou 50 anos, estão clamando por elaboração. Lembra-se que a terra disponível é um bem finito e que, por isso, se deve pensar em espaços para as gerações futuras, com a preservação do ambiente total, homem, plantas, águas e animais nele incluídos. Ademais, implantadas essas próteses urbanas, elas devem ser assumidas como irreversíveis, trazendo impactos sucessivos sobre os atuais ocupantes do espaço, mas com maior amplitude sobre os que nos sucederem.
sobre o autor
Aldo Paviani, geógrafo urbano, pesquisador associado da UnB