A Câmara Municipal de São Paulo aprovou em abril de 2009 duas leis – Concessão Urbanística e sua aplicação no projeto Nova Luz – que acabam de ser sancionadas pelo Prefeito. Trata-se de um novo instrumento urbanístico que reduz de forma drástica o papel do poder publico e tem o potencial de destruir um dos bairros centrais de São Paulo.
Desde a década de 1980, vêm sendo introduzidos em São Paulo instrumentos de parceria público-privado no campo do urbanismo. Inicialmente, através das Operações Interligadas – suspensas em 2001 pelo Ministério Público por alterarem a legislação de zoneamento à revelia da Câmara Municipal – e, desde 1991, através de Operações Urbanas Consorciadas.
Os instrumentos de parceria público-privado implicam em mudanças substantivas nas práticas de gestão do uso e ocupação do solo. Há o deslocamento de um zoneamento regulador – instrumento de controle exclusivo do poder público - para um zoneamento operacional – instrumento de intervenção que envolve o poder público e um conjunto de agentes privados para o financiamento das intervenções. Nesta forma de gestão, garantir que o interesse público prevaleça sobre os interesses particulares se torna tarefa mais complexa.
A estratégia adotada nas Operações Urbanas é a concessão de exceções aos parâmetros estabelecidos pela legislação de zoneamento, em troca de recursos que devem ser aplicados em melhorias na própria área da Operação, pagos pelo setor privado. Esta estratégia se apóia no princípio da recuperação pelo poder público da valorização imobiliária gerada pelos benefícios de exceções à lei. São Paulo tem hoje quatro Operações Urbanas em andamento, além de nove previstas no Plano Diretor Estratégico, aprovado em 2002. Ou seja, mais de 250 quilômetros quadrados, que correspondem a 25% da área urbana do Município de São Paulo, já estão submetidos a formas de atuação do poder público que se situam num novo regime urbanístico.
Novos instrumentos urbanísticos se constroem e se reconstroem através de sua aplicação, o que exige uma constante avaliação e revisão para seu aperfeiçoamento. Avaliações das experiências de Operações Urbanas em São Paulo vêm demonstrando que os benefícios auferidos pelo setor imobiliário excedem, em muitos casos, os benefícios de interesse coletivo. As duas leis aprovadas, ao invés de colaborar para reverter este descompasso, sinalizam para seu acirramento.
Segundo a lei de concessão urbanística, a Prefeitura declara de utilidade pública os imóveis localizados na área do projeto Nova Luz. Através de licitação, delega a pessoa jurídica ou a consórcio de empresas a desapropriação, o pagamento da desapropriação e a execução de obras urbanísticas. A recuperação do investimento da empresa concessionária ocorre através da comercialização dos imóveis desapropriados e construídos, pela exploração de áreas públicas, pela receita de projetos associados, etc. Além disso, abre-se a possibilidade de incluir a contrapartida financeira da Operação Urbana Centro nas obras a serem realizadas pela concessionária. Não há limites para os ganhos do setor privado. Rompe-se, portanto, o princípio de recuperação da valorização imobiliária pelo poder público.
Diante desta amplitude de ações que passam para as mãos do setor privado, é de fundamental importância rever a amplitude do território definido para aplicação da concessão urbanística: são cerca de 300 mil metros quadrados – trinta quadras entre as avenidas São João, Duque de Caxias, Mauá, Casper Libero e Ipiranga.
Esta vasta área, que corresponde ao bairro de Santa Ifigênia, vem sendo estigmatizada ao ser associada ao consumo de crack que, não por acaso, ocorre em determinadas quadras e ruas, há décadas subutilizadas, abandonadas e, consequentemente, deterioradas. Em Santa Ifigênia, os inúmeros imóveis tombados pelo patrimônio, o traçado das ruas e a dimensão dos lotes compõem um conjunto urbano de valor histórico. Desde o final do século XIX, o bairro agrega múltiplas funções e é local de moradia dos que trabalham no centro e nos bairros centrais, como comerciantes, funcionários públicos, empregados das indústrias de confecção, dos restaurantes, dos hotéis, etc. Há quase meio século, abriga atividades econômicas que atraem compradores não só de São Paulo, mas de outras regiões do estado e do país. Os mais de 7000 habitantes de diferentes estratos sociais conferem à área uma densidade populacional elevada: 300 habitantes por hectare - três vezes a densidade média de São Paulo.
Tecido social diversificado, associação entre emprego e moradia, reconstrução e valorização não necessariamente pela lógica da demolição – são atributos deste bairro, que exigem a utilização parcimoniosa, localizada do novo instrumento.
Ainda há a possibilidade de interferir neste processo. Caberá ao Projeto Urbanístico - próxima etapa prevista pela Prefeitura para o projeto Nova Luz – definir todas as ações a serem executadas pela empresa concessionária. Consideramos que nesta fase deve ser instituído o Conselho Gestor, e não, como previsto na lei, para após a celebração do contrato de concessão urbanística. É nesta próxima etapa que representantes da Municipalidade e dos cidadãos interessados - moradores, proprietários, usuários e empreendedores - devem participar na definição do projeto e garantir o cumprimento das diretrizes do Plano Diretor. É nesta etapa que devem ser estabelecidos os limites da concessão.
sobre os autores
Sarah Feldman é arquiteta e urbanista, Professora Livre Docente do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Escola de Engenharia São Carlos USP, autora de “Planejamento e Zoneamento. São Pauo,1947-1972”. São Paulo. EDUSP/FAPESP.2005
Maria Cristina da Silva Leme é arquiteta e urbanista, Professora Titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo USP, organizadora de ” Urbanismo no Brasil (1895-1965)”.São Paulo. Studio Nobel /FAU USP /FUPAM. (1999). 2005