O direito constitucional de acesso aos bens culturais
A Constituição Federal vigente estatuiu em seu art. 244 que “A lei disporá sobre a adaptação dos logradouros, dos edifícios de uso público e dos veículos de transporte coletivo atualmente existentes a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência, conforme o disposto no artigo 227, § 2º.” Ademais, previu no art. 215, caput, que o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional.
Da conjugação de tais dispositivos resta claro que o legislador constituinte quis assegurar a todos, e de maneira especial aos portadores de deficiência, o acesso aos bens culturais existentes em nosso país, tais como museus, cinemas, bibliotecas, galerias, núcleos históricos, sítios arqueológicos etc.
O direito de acessibilidade aos bens culturais encontra fundamentos, ainda, no princípio da isonomia e no princípio da fruição coletiva do patrimônio cultural, segundo os quais todos os cidadãos devem ter iguais condições de conhecer, visitar e obter informações sobre os bens integrantes do patrimônio cultural nacional.
Normatização infraconstitucional
Em obediência aos comandos constitucionais acima mencionados, a Lei nº 7.853, de 24.10.1989, dispôs sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, estabelecendo, dentre outras coisas, que:
Art. 2º. Ao Poder Público e seus órgãos cabe assegurar às pessoas portadoras de deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos, inclusive dos direitos à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à previdência social, ao amparo à infância e à maternidade, e de outros que, decorrentes da Constituição e das leis, propiciem seu bem-estar pessoal, social e econômico.
Parágrafo único. Para o fim estabelecido no "caput" deste artigo, os órgãos e entidades da Administração Direta e Indireta devem dispensar, no âmbito de sua competência e finalidade, aos assuntos objeto desta lei, tratamento prioritário e adequado, tendente a viabilizar, sem prejuízo de outras, as seguintes medidas:
V - na área das edificações:
a) a adoção e a efetiva execução de normas que garantam a funcionalidade das edificações e vias públicas, que evitem ou removam os óbices às pessoas portadoras de deficiência, permitam o acesso destas a edifícios, a logradouros e a meios de transporte.
Por seu turno, a Lei nº 10.098, de 19.12.2000 estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, mediante a supressão de barreiras e de obstáculos nas vias e espaços públicos, no mobiliário urbano, na construção e reforma de edifícios (de uso privado multifamiliar, uso coletivo e uso), nos meios de transporte e de comunicação.
Essa Lei, cujas normas gerais se aplicam a todos os entes da Federação, foi regulamentada Decreto nº 5.296, de 2 de dezembro de 2004, que, por sua vez, se reporta a Normas Técnicas da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas), merecendo destaque as seguintes:
- NBR 9050 – Acessibilidade a Edificações Mobiliário, Espaços e Equipamentos Urbanos;
- NBR 13994 – Elevadores de Passageiros – Elevadores para Transportes de Pessoa Portadora de Deficiência;
Em síntese, nos termos da normatização vigente, a acessibilidade deve ser garantida à pessoa com deficiência (permanente ou temporária) física, visual, auditiva, mental e múltipla; e àqueles com mobilidade reduzida, tais como idosos, obesos e gestantes.
Basicamente, esta acessibilidade pode ser garantida com (1):
- Acessos através de rampas ou equipamentos eletromecânicos (plataformas elevatórias de percurso vertical ou inclinado e elevadores);
- Estacionamento ou garagens reservados e de acordo com as normas;
- Circulação interna acessível.
- Escadas com corrimão, com condições mínimas de segurança e conforto, associadas a rampas ou equipamentos de transporte vertical;
- Sanitários adaptados;
- Mobiliário adequado
- Piso tátil de alerta e direcional;
- Utilização de materiais de acabamento adequados.
Particularidades do acesso aos bens culturais
Eliminar as barreiras físicas e sociais dos espaços, edificações e serviços destinados à fruição do patrimônio cultural é medida indispensável para que os portadores de deficiência e de necessidades especiais possam ser incluídos no processo de conhecimento de nossa cultura e história.
Entretanto, nem sempre será fácil, na prática, assegurar o integral direito de acesso aos bens culturais, muitas vezes situados em locais perigosos (grutas e sítios arqueológicos, v.g) ou concebidos em uma época em que a acessibilidade e a inclusão não eram valores reconhecidos pela sociedade (casarões coloniais de vários pavimentos, igrejas situadas em cumes de montanhas, grandes escadarias para “valorizar” o bem, etc).
Ademais, “as intervenções realizadas em bens culturais com vistas a sua acessibilidade não podem chegar a ponto de causar mutilação ou descaracterização gravosa ao testemunho histórico que a proteção do bem cultural visa garantir” (2), sob pena de caracterização de ilícito em âmbito cível, administrativo e mesmo criminal (3).
Assim, deve-se buscar o cumprimento simultâneo da Lei da Acessibilidade e das normas que regulamentam o regime jurídico dos bens culturais, como, por exemplo, o Decreto-Lei 25/37, que trata dos bens tombados; a Lei 3.924/61, que trata dos sítios arqueológicos; o Decreto 99.556/90, que trata das cavidades naturais subterrâneas, etc.
Aliás, a própria Lei n. 10.098/2000 (Lei da Acessibilidade) estabeleceu textualmente que: Art. 25. “As disposições desta Lei aplicam-se aos edifícios ou imóveis declarados bens de interesse cultural ou de valor histórico-artístico, desde que as modificações necessárias observem as normas específicas reguladoras destes bens”.
O Decreto nº 5.296/2004, que regulamenta a Lei nº 10.048/2000, dispõe em seu art. 30 que: “As soluções destinadas à eliminação, redução ou superação de barreiras na promoção da acessibilidade a todos aos bens culturais imóveis devem estar de acordo com o que estabelece a Instrução Normativa nº 1 do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN, de 25 de novembro de 2003”.
Esta Instrução Normativa do IPHAN, que por força do contido na Lei 10.048/2000 (norma geral sobre acessibilidade) e no art. 30 do Decreto 5.296/2004, aplica-se também aos bens acautelados pelos Estados, Distrito Federal e Municípios (CF/88, art. 24, § 1o.), estabelece diretrizes, critérios e recomendações para a promoção das devidas condições de acessibilidade aos bens culturais imóveis, a fim de equiparar as oportunidades de fruição destes bens pelo conjunto da sociedade, em especial pelas pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida.
São diretrizes de intervenção estabelecidas pela Instrução Normativa:
- As soluções adotadas para a eliminação, redução ou superação de barreiras na promoção da acessibilidade aos bens culturais imóveis devem compatibilizar-se com a sua preservação e, em cada caso específico, assegurar condições de acesso, de trânsito, de orientação e de comunicação, facilitando a utilização desses bens e a compreensão de seus acervos para todo o público.
- As intervenções poderão ser promovidas através de modificações espaciais e estruturais; pela incorporação de dispositivos, sistemas e redes de informática; bem como pela utilização de ajudas técnicas e sinalizações específicas, de forma a assegurar a acessibilidade plena sempre que possível, devendo ser legíveis como adições do tempo presente, em harmonia com o conjunto.
- Cada intervenção deve ser considerada como um caso específico, avaliando-se as possibilidades de adoção de soluções em acessibilidade frente às limitações inerentes à preservação do bem cultural imóvel em questão.
- O limite para a adoção de soluções em acessibilidade decorrerá da avaliação sobre a possibilidade de comprometimento do valor testemunhal e da integridade estrutural resultantes.
Nos casos de áreas ou elementos onde não seja possível promover a adaptação do imóvel para torná-lo acessível ou visitável, deve-se garantir o acesso por meio de informação visual, auditiva ou tátil das áreas ou dos elementos cuja adaptação seja impraticável. No caso de sítios considerados inacessíveis ou com visitação restrita, devem ser oferecidos mapas, maquetes, peças de acervo originais ou suas cópias, sempre proporcionando a possibilidade de serem tocados para compreensão tátil.(4)
Ou seja, quando não for possível adequar o meio físico para garantir o direito à acessibilidade como parte do processo de inclusão social da pessoa com deficiência, deverão ser adotadas medidas de acesso à informação e compreensão a respeito do bem cultural.
Efetividade do direito de acessibilidade
Para assegurar a efetividade do direito de acessibilidade aos bens culturais o Ministério Público está legitimado a adotar as medidas necessárias e pode lançar mão de instrumentos extrajudiciais, tais como a expedição de recomendação ou a celebração de termo de compromisso de ajustamento de conduta. Esses instrumentos resolutivos devem ser sempre privilegiados, deixando-se a via judicial, sempre mais lenta e burocrática, para os casos em que o consenso não seja possível.
Havendo necessidade de se judicializar a questão, a ação civil pública será o instrumento processual adequado para se requerer a prestação jurisdicional, sendo de se ressaltar, por oportuno, os seguintes precedentes jurisprudenciais favoráveis à efetivação do direito de acessibilidade:
A Carta Magna de 1988, bem como toda a legislação regulamentadora da proteção ao deficiente físico, são claras e contundentes em fixar condições obrigatórias a serem desenvolvidas pelo Poder Público e pela sociedade para a integração dessas pessoas aos fenômenos vivenciados pela sociedade, pelo que há de se construírem espaços acessíveis a elas, eliminando barreiras físicas, naturais ou de comunicação, em qualquer ambiente, edifício ou mobiliário, especialmente nas Casas Legislativas. (STJ - MS n. º 9.613, São Paulo, 1ª C. Cív., Rel. Ministro José Delgado, j. 11.05.99).
AÇÃO CIVIL PÚBLICA – OBRIGAÇÃO DE FAZER – INTERESSE DIFUSO – ADAPTAÇÃO DE PRÉDIO DE ESCOLA PÚBLICA PARA PORTADORES DE DEFICIÊNCIA FÍSICA – OBRIGAÇÃO PREVISTA NOS ARTS. 227, § 2º, E 244 DA CF, ART. 280 DA CE – LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO – LEI FEDERAL Nº 7.853/89 – INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES – MULTA DIÁRIA PARA O CASO DE DESCUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO – INEXISTÊNCIA DE ILEGALIDADE – ART. 644 DO CPC – Recurso provido para julgar a ação procedente. (TJSP – AC 231.136-5/9-00 – 8ª CDPúb. – Rel. Des. Toledo Silva – DJSP 12.02.2004 – p. 55).
notas
1
Luiz Antonio Miguel Ferreira. Acessibilidade: Pessoa com Deficiência e Imóveis Adaptados. Disponível em: http://www.ampid.org.br/Artigos/
Acesso em 29.08.2008.
2
http://4ccr.pgr.mpf.gov.br/institucional/
3
Vide art. 17 do DL 25/37 e arts. 62 e 63 da Lei 9.605/98.
4
Luiz Antonio Miguel Ferreira. Acessibilidade: Pessoa com Deficiência e Imóveis Adaptados. Disponível em: http://www.ampid.org.br/Artigos/
Acesso em 29.08.2008.
sobre os autores
Marcos Paulo de Souza Miranda, Promotor de Justiça. Coordenador da Promotoria Estadual de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico de Minas Gerais. Especialista em Direito Ambiental. Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais. Autor do livro: Tutela do Patrimônio Cultural Brasileiro (Belo Horizonte: Del Rey, 2006)
Andrea Lanna Mendes Novais, Arquiteta Urbanista. Técnica da Promotoria Estadual de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico de Minas Gerais. Especialista em Urbanismo. Especializanda em Revitalização Urbana e Arquitetônica