Nada como uma boa crise política para exumar cadáveres. Volta-se a falar no Estado do Planalto, com a justificativa em nova embalagem, motivada pelos escândalos recentes. Já que a democracia aqui não deu certo, vamos acabar com ela, e retroceder à situação anterior à Constituição de 1988, deixando um punhado de luminares a comandar os destinos da Capital. Aliás, da Capital, não, de um de seus bairros – o Plano Piloto, ou melhor, o perímetro tombado, declarado Patrimônio Cultural da Humanidade. Se há adultério no divã da sala, vamos retirar o divã – é a mesma coisa.
Até parece que não há uma história de Brasília, que inúmeros planos não foram feitos durante o período da ditadura militar, quando não havia autonomia política no Distrito Federal. Não deram em nada. Esquecem que o Estado é a cara da sociedade a que pertence. Uma comissão de luminares não “deu certo” tanto quanto não está “dando certo” a democracia no atual Distrito Federal. Lembrem o Churchill (cito de memória): a democracia é um péssimo sistema. Mas é o melhor que conheço.
Não foi a democracia que inventou a perversa estrutura territorial do Distrito Federal, impondo custos elevados para a manutenção da cidade e sobrepenalizando os mais pobres. Foi uma política habitacional antiética que mandou os pobres para longe, a grilagem de terras que fez fortunas, a especulação imobiliária da qual não se salvou nem a Terracap (empresa estatal, que nunca teve uma política fundiária voltada a interesses populares), e muita corrupção, da qual apenas a ponta do iceberg está a aparecer.
Brasília não é e nunca foi o Plano Piloto. O conceito de Lucio Costa para Brasília previa o crescimento da cidade mediante núcleos satélites organicamente incorporados ao todo. O Plano Piloto sempre foi, apesar de distante dos demais núcleos que se formaram desde o princípio (Taguatinga é de 1958), o bairro central dependente do resto. É dependente de 90% da população do DF que mora fora do Plano, mas que vem para cá atrás dos quase 50% dos empregos totais da metrópole que estão dentro do Plano – uma mão de obra que percorre dezenas de quilômetros que separam residências de locais de trabalho.
Querem fazer de conta que essa realidade orgânica não existe. Aliás, essa realidade já ultrapassou as fronteiras do DF: a metrópole real, técnica, econômica e socialmente, inclui áreas urbanas além-fronteiras – em Águas Lindas, Cidade Ocidental, Valparaíso, Planaltina de Goiás etc. Em outras realidades metropolitanas brasileiras, constituídas por vários municípios, o esforço é fazer surgir uma instituição metropolitana que supere as limitações impostas pela arbitrária (e formal) divisão territorial intermunicipal. Em Brasília, o problema não existe, pelo menos dentro do DF. Querem inventá-lo! Se a Capital não mais se limita ao DF, o esforço tem de ser no sentido de ampliar suas fronteiras, não de reduzi-las, como pretende a tal criação do Estado do Planalto. Com a ampliação, seria melhorada administrativa, política e tecnicamente a governança do todo metropolitano, e os problemas poderiam ser enfrentados com mais justiça.
A postura em defesa do Estado do Planalto é arrogante e elitista. Querem que os moradores das satélites continuem a contribuir para a construção e o funcionamento da cidade, deslocando-se mediante um sistema de transporte coletivo ruim e caro, mas que não metam o bedelho quanto ao centro urbano de sua cidade – o Plano Piloto. Sim, eles são moradores de Brasília. Sólidas estatísticas à parte, isto está no imaginário das pessoas. Perguntem a qualquer habitante de Ceilândia, Planaltina, Paranoá – eles o dirão. Eles são de Brasília, identificam-se com Brasília, orgulham-se dela. Querem privá-los do orgulho.
Mas não nos iludamos. Os problemas de Brasília não têm origem em aspectos técnico-administrativos, mas políticos. O equilíbrio da metrópole passa por um processo em que os interesses da maioria tenham mais representatividade, implicando orçamento participativo e outros mecanismos, bem sucedidos em outras capitais brasileiras, como Porto Alegre e Belo Horizonte. Trata-se de aperfeiçoar nossa democracia, não de castrá-la, entregando novamente a administração da cidade – melhor dizendo, do seu centro – a um grupo de excelências que, a história o demonstrou, não conseguiu fazer melhor.
nota
[Artigo publicado originalmente no Correio Braziliense em 9 de março de 2010]
sobre o autor
Frederico de Holanda (n. 1944) é arquiteto (UFPE, 1966), PhD em Arquitetura (Universidade de Londres, 1997), Professor Associado da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (UnB) a que pertence desde 1972. Autor de O Espaço de Exceção (Editora Universidade de Brasília, 2002) e organizador de Arquitetura & Urbanidade (ProEditores Associados Ltda., 2003).