Enquanto a inflação esteve sem controle, propostas de interesse público não tinham condições de debate, obscurecidas pela premência do quotidiano indomável. Foi preciso superar a inflação para que um conjunto de possibilidades se apresentasse ao desenvolvimento. E hoje, há quase duas décadas de estabilidade, já se diz que o ‘futuro chegou’. O país do futuro é o Brasil de hoje.
Similarmente, a explosão demográfica que inchou as cidades fez, para o planejamento urbano, o papel que a inflação fazia para o planejamento econômico: anulava qualquer racionalidade. Mas nossas principais cidades já não tem aumento acelerado de população. No caso do Rio, desde os anos oitenta é a cidade metropolitana que menos cresce no Brasil. Temos estabilidade demográfica. Nesse sentido, diria que, para a cidade, o futuro já chegou.
Não obstante, continuamos a tratar o Rio como se tudo tivesse que ser refeito. Vivemos uma certa inércia epistemológica que justificaria expandir o tecido urbano à espera das multidões que jamais virão.
Ora, o baixo crescimento demográfico é fator muito positivo para compor o quadro de planejamento que desenhe as próximas décadas de nossas cidades. Em contraponto, também os recursos públicos terão estabilidade. Não serão infinitos.
Assim, dois temas essenciais e complementares se impõem: o cuidado com a cidade existente e o projeto da cidade sustentável.
É com a cidade com que chegamos até aqui que teremos que construir o lugar das próximas gerações. E, para elas, nosso compromisso há de ser uma cidade igual ou melhor do que a herdada.
Nas principais cidades mundiais, o cuidado com o espaço existente tem correspondido aos esforços mais importantes. A prioridade não é abrir áreas novas, mas preservar as existentes. Se andamos pelo Leblon e constatamos má conservação do projeto Rio-Cidade, um dos mais bonitos, já não cabe imaginar que faremos um novo. Também em Campo Grande, Catete, Taquara e demais áreas. Há que se recuperar o construído, dar-lhe a qualidade original. Nosso Centro precisa ser o melhor lugar da metrópole. Bem tratado, limpo, com vitalidade sempre renovada. Manter a cidade funcionando tem alto custo e exige continuidade. Sobretudo, precisa contar com a colaboração cidadã, na preservação dos equipamentos e do espaço público.(Por que não dividirmos tarefas: aos proprietários, a conservação das calçadas; à Prefeitura, um asfalto com qualidade?)
Com a estabilidade demográfica, podemos prever as demandas da cidade em busca da sua sustentabilidade. Prever? Bem, nisso há uma certa dose de otimismo, pois a questão não é apenas técnica, é sobretudo política. Está no debate político decidir quanto à ocupação urbana, quanto aos investimentos, quanto aos caminhos da cidade.
Precisamos pensar em contrair a cidade, ao invés de expandi-la. Vamos garantir uma cidade compatível com sua economia urbana ou o Rio vai manter a ocupação extensiva? Como promover o transporte público de qualidade e não poluidor? Como reforçar o Centro como núcleo metropolitano? E a Zona Norte suburbana? O que fazer com os vazios infraestruturados? Com as áreas ociosas que foram ocupadas por indústrias e hoje estão abandonadas? O que queremos quanto à despoluição da Baía de Guanabara?
O modelo convencional de planejamento priorizava definir índices, alturas, volumes e usos das edificações. Confiava que a cidade se moldaria assim. Como o futuro estava no infinito, podia fazer algum sentido. Hoje, aumentar gabaritos em grandes áreas e abrir novas ocupações apenas significa valorizar contabilmente ativos imobiliários. Para a cidade sustentável, o modelo não satisfaz.
Agora, interessa garantir a ambiência urbana com qualidade, o espaço público com vitalidade, bem conformado, os serviços plenos na cidade inteira. A urbanística torna-se mais complexa, é dinâmica, é proativa, acolhe as possibilidades que se apresentam à cidade e as torna em acordo com as diretivas pactuadas. Que, uma vez pactuadas, precisam ter estabilidade.
Assim, o debate político, absolutamente insubstituível, precisa se organizar por instrumentos institucionais, como o Plano Diretor, onde a cidade é chamada a dizer como se deseja a médio prazo. Mas as decisões precisam ser amplas, transparentes, públicas, evitando desmoralizar o processo participativo, essência da democracia.
Sem inflação, com estabilidade democrática e econômica, sem inchaço demográfico, está em nossas mãos construir as regras urbanas que orientem o espaço carioca e ajudem a compor uma nova realidade institucional metropolitana. Uma cidade bonita, bem conservada e sustentável.
nota
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Artigo publicado originalmente no jornal O Globo, Rio de Janeiro, 26 jun. 2010.
sobre o autor
Sérgio Magalhães é arquiteto e presidente do Departamento do Rio de Janeiro do Instituto de Arquitetos do Brasil.