Ao sobrevoarmos São Paulo nos impressiona a massa infinita de altos edifícios. Em Belo Horizonte ou Curitiba temos modelo semelhante, embora menos radical. Nessas cidades, o edifício alto é hegemônico na definição da imagem urbana.
Em A arquitetura da cidade, o professor italiano Aldo Rossi avalia que as cidades são constituídas por um tecido urbano genérico que é pontuado por edificações excepcionais, as quais ajudam a compor a identidade coletiva. É o modelo de Paris: o tecido é constituído por edificações com seis andares. Em pontos especiais, reforçados pelos bulevares, se localizam edifícios que se caracterizam pela qualidade, uso ou significado, não necessariamente por tamanho e altura.
Nova York é outro caso de interesse. Seus arranha céus se organizam entre ruas e avenidas, as quais constituem também a imagem ambiental da cidade. O traçado do espaço público não submerge aos altos edifícios.
Esses exemplos evidenciam a diversidade na conformação das cidades e o desempenho das edificações no reconhecimento coletivo.
No Rio, a simbiose entre geografia e arquitetura define a multiplicidade morfológica que caracteriza a cidade. Os indivíduos arquitetônicos não são mandatários do ambiente construído. Não há uma imagem arquitetônica prevalecente. O conjunto, cada conjunto urbano, é o principal agente. Talvez por isso é que os cariocas dos anos setenta tenham atendido ao chamado de Millôr Fernandes e do “Pasquim” no combate ao “espigão”, invasor da escala.
No Rio, os edifícios que embasam a identidade cidadã sabem se inserir na ambiência, têm capacidade de se compor com as preexistências. São obras primas de interesse coletivo, como o Outeiro da Glória, Teatro Municipal, igreja da Penha, Central do Brasil, Maracanã, Museu de Arte Moderna, e, com liberdade de interpretação, o Pão de Açúcar, o Corcovado, a Lagoa.
Não obstante, ao intervir na cidade, quiçá definitivamente, a obra de arquitetura não é banal. Pequena que seja, sempre é de interesse coletivo. Ela compõe a complexidade do ambiente urbano. Na Cidade Maravilhosa, cada obra há de aspirar corresponder ao ambiente excepcional que a acolhe.
Os arquitetos defendem a escolha dos projetos de obras públicas por concurso. Não será uma opção corporativa, pois implica em uma participação muito maior e mais custosa do conjunto dos profissionais que se habilitam. Certamente, é o reconhecimento da responsabilidade social que a arquitetura retém.
Foram escolhidas por concurso obras-primas como o Monumento aos Pracinhas (arquitetos Marcos Konder e Hélio Ribas Marinho) e o Aeroporto Santos Dumont (arquitetos MM Roberto). Mas, também, são obras-primas outras em que a escolha não o foi por concurso, como o Museu de Arte Moderna (Afonso Reidy) e o Aterro do Flamengo (Burle Marx).
Agora, o Rio terá o Museu do Amanhã, projeto do espanhol Santiago Calatrava. O arquiteto é reconhecidamente competente, seu estudo preliminar tem características excelentes. Precisa ser bem construído, a exemplo da Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre, de autoria do português Siza Vieira, obra de altíssima qualidade. Não diria o mesmo da Cidade da Música, de Portzamparc. Sugere que o arquiteto francês ficou sem interlocução, levando-o ao exagero programático e projetual.
Por que Calatrava, Siza, Portzamparc, fazem obras tão qualificadoras? Porque são talentosos e em seus países se exercita a cultura arquitetônica – onde, em geral, os projetos públicos são escolhidos por concurso.
Obras de alta qualidade são frutos dos projetistas, mas igualmente dos seus clientes, atentos à cultura. Nesse particular o concurso é modalidade imbatível, ao reduzir a discricionariedade dos agentes detentores das decisões, nem sempre dedicados à melhor escolha.
No Rio, sendo o espaço coletivo o cerne da ambiência, a qualidade das obras de interesse coletivo é fundamental. Não dá para perder oportunidades, como, infelizmente, constato em ponte ferroviária e outra peatonal construídas recentemente na avenida Presidente Vargas.
Com a Copa de 2014 e com a Olimpíada de 2016 se multiplicarão as possibilidades: novas infraestruturas – avenidas, passarelas, estações –, vilas residenciais, equipamentos esportivos, edifícios de escritórios, hotéis, a reforma do aeroporto (como será o novo Galeão? Será capaz de mitigar sua atual mediocridade?).
Construir é importante, mas não basta. O carioca merece a garantia de que cada nova obra esteja em sintonia com a beleza e a qualidade do espaço de sua cidade. Não será inédito: é a sua própria experiência de rica arquitetura, a do bom edifício e do bom ambiente urbano, justamente como foi feita a Cidade Maravilhosa.
nota
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Artigo publicado originalmente no jornal O Globo, Rio de Janeiro, 24 jul. 2010.
sobre o autor
Sérgio Magalhães é arquiteto e presidente do Departamento do Rio de Janeiro do Instituto de Arquitetos do Brasil.