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português
O autor traz à memória dos primeiros dias de sua chegada a Brasília, esta ainda em construção.
TORELLY, Luiz Philippe. O Dia “D”. O desembarque de uma família no planalto central. Minha Cidade, São Paulo, ano 14, n. 166.04, Vitruvius, maio 2014 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/14.166/5166>.
Há dias que a gente não esquece jamais. Seja porque foram marcantes em nossa história pessoal e por isso serão sempre lembrados por nós e pelos próximos, seja por seu inusitado. O dia de nossa chegada a Brasília, 6 de junho de 1960, foi um desses. Eu ainda não tinha 6 anos, mas é difícil esquecer. A viagem foi precedida de inúmeros preparativos. Meu pai tinha vindo em duas visitas precursoras para conhecer nossa nova casa e seu local de trabalho. Mamãe, embora não fosse carioca, amava o Rio mais do que seus naturais. Não queria vir de jeito algum. Como deixar Copacabana? A praia, a cidade maravilhosa, em suma, a civilização. Relutava, argumentava, chorava, na expectativa de convencer o marido que acreditava na “Capital da Esperança”, em uma vida nova. Queria o “velho” fazer a América.
Nunca tínhamos saído do Rio. No máximo íamos a Petrópolis e a Rio do Ouro, próximo a Tribobó no sítio do meu avô. Na época não havia a ponte Rio-Niterói. Se a balsa estivesse cheia tínhamos que dar a volta pelo fundo da baía. Era uma viagem e tanto. Íamos também à praia de Itacoatiara, perto de Niterói, onde certa feita nos defrontamos com uma baleia morta. Mais que a imponência e a aparência um pouco diversa dos livros, do que me recordo da baleia é o cheiro: inesquecível.
Partindo do Santos Dumont, embarcamos para Brasília, penso eu, nas asas da Panair. Em um DC-3, aqueles aviões valentes ainda resquícios da II Guerra Mundial. Da viagem, que demorava umas 4 horas, não lembro de quase nada. Mas da chegada alguma coisa. Quem parte do Rio com sua moldura de montanhas, tendo a frente um Pão de Açúcar de granito e se depara com o horizonte sem fim do planalto, onde o azul do céu se encontra no infinito com o verde retorcido do cerrado, jamais pode esquecer.
Papai nos esperava feliz da vida. Tinha vindo antes com a mudança, escoltado pelo Zé Vicente, caseiro do sítio do meu avô. Havia comprado um jipe candango, produzido pela DKW, lançado em homenagem aos anônimos construtores da cidade. Minha mãe meio atônita, com os três meninos em volta, estava primeiro preocupada com nosso paradeiro: volta para cá! Olha o carro! Depois perguntou: e a casa? Que tal? Do aeroporto vislumbrávamos os primeiros edifícios das super quadras e o Congresso Nacional, onde mamãe iria trabalhar. A poeira levantada pelos caminhões e pelas obras era assoprada pelo vento e se espalhava por todo canto. Vimos naquele dia nosso primeiro “lacerdinha”, redemoinhos frequentes que aconteciam por toda parte, elevando às alturas folhas e papéis. O nome era em referência a Carlos Lacerda, àquela época governador da Guanabara, conhecido pela alcunha de “o corvo”, oposicionista ferrenho ao governo do jovial JK e responsável, como minha mãe sempre lembrava, pelo suicídio de Getúlio Vargas.
Saímos do aeroporto ao cair da tarde. O lago Paranoá, cheio de pouco, brilhava ao sol. Tudo era diferente. Não havia gente nas ruas e nem mesmo ruas. O que mais víamos eram construções, caminhões, tratores, em um vai e vem constante. A geometria dos edifícios, isolados no meio do barro vermelho, sem calçadas ou ruas pavimentadas, sem árvores, instigava os sentidos e provocava uma sensação ao mesmo tempo de estranheza e de beleza artificial. A obra do homem em contraste com a natureza. Ainda mais para quem vinha de uma cidade onde o mar, as montanhas e as florestas eram uma referência constante e estavam quase sempre integrados, juntos, em uma mistura que fez do Rio de Janeiro patrimônio mundial. A mudança do burburinho de Copacabana para a solidão do planalto foi inicialmente um choque para meus pais. Para nós, ao contrário, significou liberdade, espaço, novas e diferentes brincadeiras, impossíveis quando se mora no 10º andar, como no Rio.
A nossa casa ficava na quadra 18, atual 707, próxima a W3 sul. Dois andares, branca, com um jardim repleto de poeira e barro para nos divertirmos. O frio já havia chegado e junto com ele os céus estrelados e as fogueiras que anunciavam as festas juninas. O cerrado próximo, onde se situam hoje os muitos colégios da W4 e W5 sul, era repleto de vida. Os anús com seu canto triste, as rolinhas, os lagartos tiú, tatus, além de ocasionalmente veados e lobos guará, davam o ar de sua graça até que a presença exclusivista dos homens os afastou em definitivo. Em breve todos estávamos bem adaptados e felizes.
Todo mundo tem seu dia “D”. Aquele foi um dos nossos. Tínhamos vindo para voltar e ficamos. Hoje já somos muitos. Dos cinco iniciais, viramos mais de quarenta. Celebramos com alegria e uma saudade cálida aqueles tempos. Bons tempos.
sobre o autor
Luiz Philippe Peres Torelly, arquiteto e urbanista. Diretor de Articulação e Fomento do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan.