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A transformação social e urbanística de Medellín vem captando a atenção mundial e demonstra como pôde vencer o estigma de cidade mais violenta e desigual do planeta.
GHIONE, Roberto. Transformação social e urbanística de Medellín. Minha Cidade, São Paulo, ano 14, n. 166.07, Vitruvius, maio 2014 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/14.166/5177>.
A transformação social e urbanística de Medellín tem despertado a admiração e emoção mundial. A cidade foi escolhida, em 2012, para sediar o 7º Fórum Urbano Mundial da ONU-Habitat, que aconteceu entre cinco e onze de abril deste ano. Um mês antes tinha sido eleita “Cidade do ano 2014” pelo The Wall Street Journal e o Citigroup, a mais inovadora entre mais de 220 concorrentes, circunstância que aumentou as expectativas, traduzidas numa assistência superior a 22.000 pessoas de mais de 160 países. Segundo Joan Clos, Diretor Executivo das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (ONU-Habitat), foi o Fórum mais concorrido e exitoso organizado até agora.
O caso Medellín vem captando a atenção mundial pela extraordinária reviravolta provocada na cidade, que duas décadas atrás se encontrava numa sangrenta crise social e política, sob o fogo cruzado do narcotráfico, das Farc – Forças Armadas Revolucionarias da Colômbia, de grupos paramilitares e de uma ordem institucional completamente debilitada e ineficiente. Superar, em menos de 20 anos, o estigma de ser considerada a mais violenta e desigual do planeta, associada ao narcotráfico, e renascer como a mais inovadora, é um feito auspicioso e exemplar. Tanta dor e sofrimento provocaram a união de todas as forças sociais e políticas atrás do objetivo comum e supremo da convivência e da civilidade.
Sergio Fajardo, ex-prefeito e atual Governador de Antioquia, explicava, em recente entrevista, os pilares políticos da transformação: combate irrestrito à corrupção, transparência total nas decisões, participação da sociedade, prioridade à cultura e educação, e “o melhor para os mais pobres”. A estratégia da transformação esteve baseada em três questões: implementação de um sistema de transporte público e de acessibilidade eficiente e qualificado, provisão de serviços públicos de qualidade para toda a população e planejamento urbano e territorial de longo prazo.
O sistema de transporte público pode ser considerado o motor da transformação. Resolvido de forma criativa, com objetivo além do específico de transportar e integrar pessoas, mas também de estimular a cultura cidadã e a civilidade. A atual combinação entre trens elevados, ônibus em sistema BRT e Metrocable (teleféricos) constitui uma solução original adaptada às circunstâncias geográficas, complementada com sistemas de micro ônibus que acessam áreas mais remotas, e um sistema de bondes em vias de implantação. O programa urbano de acessibilidade inclui, naturalmente, o cuidado com as calçadas, um sistema integrado de ciclovias e até escadas rolantes para a Comunidade San Javier. A instalação de escadas rolantes para acesso às favelas surpreende pela originalidade e o poder de transformação social.
A provisão de serviços públicos constitui o pilar social e financeiro da transformação com equidade. A Empresa Pública de Medellín – EPM, hoje a segunda maior da Colômbia, com atuação em outras cidades do país e do exterior, fornece todos os serviços de água, esgotos, deságües, energia e gás. Os números surpreendem perante a realidade urbana. Em uma apreciação rápida, podemos considerar que mais de 60% do território urbano está constituído pelo que no Brasil chamamos de favelas, hoje urbanizadas. Mais de 95% da cidade possui saneamento, quase a totalidade possui água potável (é possível beber a água em todas as torneiras da cidade com absoluta confiança), energia elétrica e deságües pluviais, e ainda 70% dos domicílios possuem gás natural. O sistema é pré-pago e, para todos os habitantes, possuir o cartão da EPM é um símbolo de prestigio e de integração cidadã. Pelo estatuto da empresa, 55% do lucro é repassado para a prefeitura, sendo um dos principais suportes financeiros do desenvolvimento urbano.
O terceiro suporte do processo é a EDU – Empresa de Desenvolvimento Urbano, que congrega profissionais de diversas disciplinas para a elaboração, ajustes e aplicação do POT – Plano de Ordenamento Territorial. Também elabora projetos específicos e define as diretrizes do desenvolvimento urbano com objetivos de curto, médio e longo prazo. Este organismo planeja a cidade em processo participativo, suas decisões são soberanas e o poder político de turno submete suas decisões às determinações do POT, não podendo alterar os objetivos traçados para o longo prazo.
Dentre as inúmeras obras realizadas e projetadas, as mais marcantes são os parques bibliotecas, localizados nas áreas mais carentes da cidade, que constituem hoje novas centralidades de transformação e desenvolvimento social e cultural. Os lemas: “o melhor para os mais pobres” e “Medellín, a mais educada” sintetizaram os objetivos políticos e sociais da administração de Sergio Fajardo (2004/2007). Visitar os parques bibliotecas representa uma lição de cidadania, inclusão e desenvolvimento. As comunidades mais pobres e violentas experimentam um processo notável de transformação e de reinserção social e urbana. Os edifícios, de arquitetura altamente qualificada, escolhidos mediante concurso público de projetos (1), dignificam e são os motores da transformação. A sete anos de inaugurados, uma nova geração de crianças já configura o novo presente e futuro da cidade, pleno de educação e civilidade.
As principais ações no território urbano, implementadas através da EDU, consistem na transformação do rio Medellín (ao longo do qual se desenvolveu a cidade) em parque linear integrador, com valorização do patrimônio natural e predomínio de áreas abertas para apropriação de pedestres e ciclistas. Este projeto foi objeto de um concurso internacional, vencido pelo escritório Latitud Taller de Arquitectura y Ciudad, atualmente em processo de desenvolvimento. Outra ação, atualmente em construção, é o parque perimetral, que delimita a área de expansão da cidade.
Os parques do rio e perimetral, conjuntamente com as novas centralidades projetadas em todo o território urbano, constituem os pilares do desenvolvimento urbano, assentado em um transporte público extremamente eficiente, em serviços públicos qualificados e em projetos de habitações sociais que configuram uma nova periferia.
Assim como Medellín, o país também experimenta um processo transformador. O chamado Sistema de Cidades, implementado desde a Presidência da República através do Ministério de Habitação, Cidades e Território, estrutura o desenvolvimento nacional na articulação dos Planos de Ordenamento Territorial das principais cidades e na criação de novas centralidades territoriais a partir delas. O planejamento e o urbanismo assumidos como Política de Estado, definidores do desenvolvimento de um país, encontra na Colômbia um caso de aplicação prática.
Em recente pesquisa acerca da qualidade de vida nas onze cidades principais da Colômbia, Medellín lidera todos os assuntos: 83% dos entrevistados manifestaram satisfação com a educação de crianças e jovens; 91% com a cidade como lugar para viver; 57% com os serviços de saúde; 86% com o sistema de transporte público; 58% com a qualidade do espaço público; 75% com o estado das ruas e calçadas; 84% manifestaram orgulho pela cidade. Em relação à gestão urbana, 59% aprovam a forma como a Alcaldía (Prefeitura) investe os recursos e dinheiros públicos e 78% são favoráveis às decisões do Conselho Municipal (Câmara de Vereadores).
Muita literatura existe acerca do recente processo de transformação de Medellín, porém, é incomparável com a vivência na cidade. Impressiona e emociona a gentileza e o espírito cidadão das pessoas. Para fazer uma cidade é indispensável formar seus cidadãos. Medellín aposta nisso permanentemente e os resultados tornam-se visíveis em todo lugar e em todo momento. De igual forma, urbanismo e arquitetura com sentido de cidadania, marcando as competências e atributos disciplinares a serviço do desenvolvimento social, resultam evidentes na cidade em processo de transformação. Lição de democracia, de inclusão, de participação, de transparência, de equidade, de organização e de fortaleza de espírito, que permite renascer da desintegração para se transformar em exemplo de admiração mundial. Lição de arquitetura atuando como referência de um país em processo de desenvolvimento. Lição do poder e da importância política da arquitetura e do urbanismo, instrumentos intelectuais da transformação com a dignidade merecida pelas sociedades historicamente postergadas.
nota
1
Durante a administração de Sergio Fajardo foram construídos: Os Parques Biblioteca España e Leon de Grief (concursos vencidos pela equipe de Giancarlo Mazzanti), o Parque Biblioteca San Javier (concurso vencido por Javier Veras), o Parque Biblioteca La Quintana (concurso vencido por Ricardo La Rotta Caballero), o Parque Biblioteca de Belén (projeto doado pelo Governo do Japão, projetado por Hiroshi Naito).
sobre o autor
Roberto Ghione, arquiteto, é formado pela Universidad Nacional de Córdoba, Argentina. Pós-graduado em Preservação do Patrimônio, Crítica Arquitetônica e Planejamento Urbano pela Universidad Católica de Córdoba. Titular do escritório Vera Pires Roberto Ghione Arquitetos Associados, Recife, PE.