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O Mirante 9 de Julho, monumento paulistano representativo da comunidade LGBTQ, foi recentemente reocupado e é um exemplo da técnica de controle e silenciamento da memória coletiva associada a lugares, especificamente quando relacionada a minorias sexuais.
MENESES, Emerson Silva. A memória LGBTQ apagada. Mirante 9 de Julho, São Paulo. Minha Cidade, São Paulo, ano 20, n. 233.01, Vitruvius, dez. 2019 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/20.233/7570>.
This way, please!
São, aproximadamente, 148 metros a pé da estação Trianon-Masp do metrô ao Mirante 9 de Julho.
São, igualmente, 148 metros aproximados do Masp ao Mirante 9 de Julho.
Contamos 148 degraus, da calçada da rua Carlos Comenale até o Mirante 9 de Julho – ou Mira, como tem sido chamado mais recentemente.
Desço os degraus.
Em 2019, o túnel 9 de Julho, comunicando os dois lados do espigão da Paulista, está aberto ao tráfego. O café Mira, sobre ele, está aberto e cheio.
Em 1992, o túnel 9 de Julho esteve fechado durante um mês para reformas, prometidas desde 1988 por problemas de infiltração. Sei disto por jornais da época.
Em 1938, o túnel foi aberto ao tráfego pela primeira vez. Sei disto porque está na memória da cidade, e também na Wikipedia. Do lado da Bela Vista, o conjunto arquitetônico art-déco incluía um mirante, que hoje acumula 81 anos de história. Mas nem tantos de memória, porque parte dela tem sido apagada.
Hoje, esse espaço – o Mirante 9 de Julho, mais recentemente chamado também de Mira – é vendido como um espaço “revitalizado”, voltado à gastronomia, à arte e a cultura. Revitalizar, ao pé da letra, significa devolver vida àquilo que estava morto. E é isso que se afirma para vendê-lo: agora, e só agora, o mirante tem vida!
Mas, e antes?
Quem nos responde é Facundo Guerra, em entrevista concedida em 2016 a um blog sobre passeios na cidade de São Paulo. Facundo é o empresário à frente do Grupo Vegas, um dos responsáveis pela “revitalização”. “O lugar”, diz ele, “viveu um longo período de abandono e descaso” (1). Ele é um dos que repetem que o local sempre vazio, sem uso. Morto, até ser recuperado e revitalizado.
O website oficial do Café Mirante, empreendimento inaugurado por Facundo em 2014, também reforçou a ideia de local abandonado, esquecido. “De esquecido a inesquecível: um lugar abandonado, redescoberto para se transformar no espaço multicultural mais inesperado da cidade”, são os termos com que ele era apresentado. Vazio de memórias, agora ele se tornava inesquecível! Uma página interna do site acrescenta que o local “acabou não sendo nada durante 76 anos. Um espaço que de tão privilegiado ficou vazio a vida inteira”.
A memória assim construída para o espaço é feita para que ele possa ser visto como um presente à cidade onde não havia nada de relevante. Um espaço novo, entregue para nossa fruição.
Para a fruição de quem?
Pode o subalterno consumir no Mirante? (2)
Consumir provavelmente pode.
O espaço hoje
Visito o espaço.
Desço os 148 degraus buscando vestígios do abandono.
Busco vestígios de uma aura fantasmática.
O lugar hoje está envolto num conjunto de relações sociais e numa necessidade de torná-lo um ambiente interessante o suficiente para ser visitado, usado e “consumido”. Resultado disso, a memória gay ligada ao espaço foi abstraída.
Antes do uso atual que lhe “restituiu vida”, o mirante foi um espaço de convivência de pessoas em situação de rua e usuários de drogas. E antes ainda, foi um conhecido local de homossociabilidade. Lá, homens gays se reuniam rotineiramente para encontros sexuais. Nessas duas fases, evidentemente, esteve pleno de vida. Ainda que não seja a vida que muitos querem ver.
O mirante era um lugar de pegação no meio da cidade, no auge da repressão e policiamento de costumes impostos pela ditadura civil-militar de 1964-1985. Especialmente nos anos 1980, época da ação coordenada pelo delegado José Wilson Richetti, de prisão de homossexuais, travestis, prostitutas e demais pessoas que pudessem estar ligadas a identidades e sexualidades dissidentes.
Observo os clientes que sequer imaginam quantos paus, gozos e alegrias, no hoje café bem comportado, rolaram.
“Sabemos que a produção acadêmica referente à memória de grupos subalternizados, nas áreas ligadas aos museus e patrimônios, segue sendo um tabu. Associar a categoria sexualidade aos espaços de memória ainda é raro nas produções científicas e quase nulo nos museus brasileiros. Nos mais de três mil museus brasileiros dedicados à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, o tema LGBT ainda é negado por seus profissionais. Podemos concluir que os museus e patrimônios são espaços de vocação fóbica à diversidade sexual, contribuindo, com isto, com o cenário de discriminação acentuada vivenciado pelas comunidades LGBT no país” (3).
Relembro um filme dos anos 80 (Romance, de 1988, dirigido por Sérgio Bianchi), que falava do retorno da democracia mas também do moralismo, que crescia junto com o número de vítimas da aids. Ali, a vida no mirante era retratada explicitamente (e como!), sem tabus nem apagamentos.
Esse uso do espaço, mostrado tão claramente no filme de Bianchi mas hoje silenciado, nos diz muito acerca do que interessa lembrar e esquecer da memória LGBTQ. Ou a quem interessa silenciá-la. A memória hegemônica nem sempre quer dialogar com fatos que possam “desmerecer” espaços hoje usados pela maioria heteronormativa.
Como dito certa vez pela escritora lésbica Cassandra Rios, “a sociedade rotula o homossexual como cachaça de macumba, não como uísque” (4). Mesmo um local democrático como o atual Mirante, enfrenta dificuldades para incorporar uma memória tão problemática: a de um lugar em que homossexuais dos anos 1980 e 1990 encontravam ferramentas para o exercício da sexualidade. A solução é apagá-la, relegá-la à clandestinidade, de forma que seus usuários atuais, na sua maioria jovens, sequer imaginem o que acontecia em seus vãos escuros.
Obscurece-se assim a memória gay do local transformado em ponto turístico e cartão postal contemporâneo da cidade. As lembranças que efetivamente circulam, conformando a memória coletiva associada ao local passam, a ser contadas por (e para) uma sociedade majoritariamente cisheteronormativa que rejeita, ou não quer lembrar, “sexualidades ilegítimas”.
Já vimos esse filme antes!
Mas o Mirante não foi a primeira tentativa, na cidade de São Paulo, de silenciar e apagar memórias LGBTQ em favor das lucrativas heteronormas. Em 2011, ao conversar com representantes de uma construtora que acabava de comprar o terreno da antiga sauna 269, na rua Bela Cintra, o jornalista Chico Felitti trazia à tona a tentativa de apagamento da memória gay desse outro endereço (5). O apagamento se dava pela mudança da numeração oficial do imóvel: o antigo número 269 da rua Bela Cintra tornava-se 277. Com esse artifício, os incorporadores tentavam deliberadamente limpar a fama, e a memória, do endereço: o empreendimento não herdaria o número que dera nome à sauna e com isso apagaria a memória e identidade do local. De acordo com o entrevistado de Felitti, essa tinha sido “uma escolha pensada” para evitar “confusão” que prejudicasse as vendas do empreendimento.
Para facilitar as vendas. Para higienizar.
Normalizo, logo permito a existência
Voltemos ao mirante. Os próprios gays que hoje frequentam o espaço do Mirante 9 de Julho não comentam sobre o espaço como um antigo local de encontros sexuais, mesmo quando dele sabem. Parece haver um silêncio negociado, para que ali haja pertencimento e para que ao espaço sejam dados novos sentidos e significados.
Consegue-se assim apagar o que José Luis Toledo trouxe à tona em dezembro de 1980, nas páginas do jornal Lampião da Esquina, sobre esses 148 degraus que ligam a rua Carlos Comenale ao espaço do mirante. Disse ele:
“Mas entre todos os banheiros públicos (6) do centro de São Paulo, o que se apresenta com um perfil mais orgânico e neotribal é o do Túnel da Avenida 9 de Julho, abaixo dos porões do Masp. Neste, as bichas governam. As bichas governam tão tranquilamente que chegam ao cúmulo de estacionar por perto, descer os 148 degraus e passar um tempão futiando (7) pelo monástico solar encolunado da 9 de Julho. O nível socioeconômico da clientela é polivalente: mendigos, trombadinhas boys e office-boys da Paulista, frequentadores dissidentes do Masp e pessoas atraídas pelos psius que as bichas dirigem aos amontoados nas paradas de ônibus da 9 de Julho. Há pouco tempo, neste templo do prazer (cheio de graffitis censurados por brochas caiantes) foram presas várias pessoas (algumas um pouco conhecidas entre intelectuais da cidade). Dia e noite, ininterruptamente, a mesma ameaça: a polícia se aproveita da não-visibilidade dos seus movimentos pelos que se encontram lá embaixo e pega quase todo mundo de surpresa: ‘Não queremos ver mais nenhum viado por aqui! Vamos embora!’. E sai toda aquela viadada resmungando. Mas, alguns juram que já treparam com vários policiais entendidos. […] Não se sabe ao certo o resultado da luta de classes entre as margaridas da limpeza pública e os tranquilos donos do pedaço. Só se sabe que os que vão lá já ouviram alguns dizendo: ‘Temos que nos unir mais para melhor nos defender’.” (8)
É como se já se previsse a tentativa de silenciamento e o apagamento que se instauraria no futuro.
Não se trata aqui de negar ou ignorar todas as melhorias realizadas no Mirante, as quais o tornaram um local agradável para muitos; entretanto, o fato é que a mudança promovida após a reforma e “revitalização”, contribuiu para o apagamento da memória LGBTQ.
sobre o autor
Emerson Silva Meneses é mestre em Têxtil e Moda e doutorando em Mudança Social e Participação Política pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP).
notas
1
Entrevista concedida a: RIBEIRO, Patrícia. Facundo Guerra conta sobre o Mirante 9 de Julho e seu novo projeto: um bar no subsolo do Teatro Municipal. Blog Passeios Baratos em São Paulo, 26 set. 2016 <https://passeiosbaratosemsp.com.br/facundo-guerra-conta-sobre-o-mirante-9-de-julho-e-seu-novo-projeto-um-bar-no-subsolo-do-teatro-municipal>.
2
Menção ao seguinte livro: SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte, Editora UFMG, 2010.
3
BAPTISTA, Jean; BOITA, Tony. Memória e esquecimento LGBT nos museus, patrimônios e espaços de memória no Brasil. Revista do Centro de Pesquisa e Formação, v. 1, n. 5, São Paulo, set. 2017, p. 109 <www.sescsp.org.br/online/artigo/11547_JEAN+BAPTISTA+E+TONY+BOITA>. Grifo do autor.
4
Frase proferida em entrevista a: LUNA, Fernando. A perseguida. TPM, ano 1, n. 3, São Paulo, jul. 2001.
5
FELITTI, Chico. Prédio erguido no lugar de sauna gay tenta ‘limpar’ fama. Website Bol Notícias, São Paulo, 22 ago. 2011 <https://noticias.bol.uol.com.br/entretenimento/2011/08/22/predio-erguido-no-lugar-de-sauna-gay-tenta-limpar-fama.jhtm>.
6
O local nunca funcionou como banheiro. A expressão “banheiro público” costuma ser usada para designar locais de encontros sexuais entre homens.
7
Referente à footing, significando passeio com o intuito de flertar, paquerar.
8
TOLEDO, José Luis de. Caçando eira no meio da cabunga. Lampião da Esquina, ano 3, n. 31, Rio de Janeiro, dez. 1980, p. 5.