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Ao discutir a proposta de revisão do Zoneamento de São Paulo, Fernando de Mello Franco afirma ser um equívoco reduzir a política urbana à questão imobiliária, permitindo que o interesse de poucos prevaleça sobre o interesse coletivo.
FRANCO, Fernando de Mello. Da cobertura vislumbraremos as crises da cidade. Sobre a temerária revisão do Zoneamento. Minha Cidade, São Paulo, ano 20, n. 233.06, Vitruvius, dez. 2019 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/20.233/7582>.
O mercado imobiliário em São Paulo está em curva ascendente. O ágio de 169% na recente venda de R$ 1,6 bilhão em Certificados de Potencial Adicional de Construção – Cepacs (1) à Operação Urbana Faria Lima (2), e as 42 mil unidades lançadas nos últimos 12 meses, são evidências dessa afirmação.
O quadro macroeconômico, taxa de juros e acesso a crédito são os principais responsáveis pela dinâmica desse mercado. Não é válido o argumento de que o Plano Diretor e o zoneamento, aprovados respectivamente em 2014 e 2016, tenham inviabilizado a produção imobiliária durante o período de retração dos últimos anos. Tampouco que seja um empecilho à nova pujança anunciada. Contudo, a revisão do zoneamento está para ser enviada à Câmara Municipal sob esse argumento (3). Trata-se de uma revisão anacrônica, fora do prazo previsto pela própria lei. Nenhuma política de longo prazo pode ser comprovada ou reprovada sem um tempo mínimo despendido à sua devida implementação e análise.
Uma lei tão abrangente como essa sempre contém deficiências. A lei aprovada em 2016 apresenta algumas dificuldades à sua aplicabilidade. Porém, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano já anunciou que a grande maioria dos problemas identificados pode ser equacionada através de portarias e decretos. Mas a revisão do zoneamento avança e segue também em defesa às bandeiras da liberação de gabaritos e à redução das outorgas do direito de construção, entre outras. O argumento novamente incide sobre a economia de produção. Prédios mais altos e outorgas menores barateiam custos, favorecendo, assim, os consumidores.
Não deixa de ser irônico observar que uma cobertura é usualmente mais cara que o andar inferior, e assim sucessivamente até o primeiro andar. Pois o preço se refere ao valor do desfrute de uma paisagem socialmente construída, um bem comum, não o valor de produção da unidade. O fato é que o barateamento dos custos costuma ampliar os lucros do empreendedor, ou ser incorporado ao valor pago pelo terreno.
Pense em seu bairro. Provavelmente os interesses de futuros investidores e proprietários – uma minoria – prevalecem sobre os interesses de preservação da qualidade de vida dos moradores já residentes – a maioria. Por isso, a política urbana vigente estabeleceu limites de gabarito nos chamados miolos de bairro, reduzindo os impactos inevitáveis na paisagem e na insolação. Em complemento, incentivou a produção imobiliária para a Rede de Estruturação da Transformação Urbana, eixos de alta oferta de mobilidade e parque fabril subutilizado. Pois o adensamento é necessário em um contexto onde há um déficit habitacional em torno de 600 mil unidades e a expectativa de um crescimento demográfico de aproximadamente 800 mil pessoas.
O debate em curso é pobre. É um equívoco reduzir a política urbana à questão imobiliária. A cidade é mais do que um espaço de produção. É onde todas as dimensões da nossa vida cotidiana acontecem. E nossa vida na cidade enfrenta sérias crises.
Em pesquisa recente desenvolvida para o Lincoln Institute, Bruno Borges, Fernando Túlio e eu analisamos o impacto estimado dos instrumentos de recuperação da valorização imobiliária na mitigação do quadro de mudanças climáticas em São Paulo (4). Os resultados são tímidos, mas ainda assim positivos e valiosos.
A aplicação dos recursos obtidos pelos Cepacs e outorgas onerosas, combinados com outros instrumentos, podem vir a ser decisivos na expansão da rede de transporte público, diminuição da emissão de poluentes, ampliação das áreas verdes, produção de moradias populares e preservação do patrimônio histórico.
Não é crível pensarmos que a altura dos prédios ajudará nos esforços de democratização do direito à cidade, mitigação dos efeitos da emergência climática, redução das desigualdades, entre tantas outras crises. Ao contrário, a alteração da fórmula de cálculo da outorga onerosa enfraquecerá nossa capacidade de enfrentamento dos problemas sistêmicos que demandam recursos e políticas públicas fortes.
A pressão política que leis complexas sofrem durante sua tramitação no Legislativo sugere questionarmos as razões em se assumir agora esse risco em relação ao zoneamento. Então, o que você supõe que esteja em jogo nessa revisão?
notas
Publicação original: FRANCO, Fernando de Mello. Da cobertura vislumbraremos as crises da cidade. Folha de São Paulo, São Paulo, 18 dez. 2019 <https://bit.ly/2SyGQ7o>.
1
RODRIGUES, Artur. Gestão Covas arrecada R$ 1,6 bi em créditos para construir na região da Faria Lima. Folha de São Paulo, São Paulo, 6 dez. 2019 <https://bit.ly/36dzcDm>.
2
RODRIGUES, Artur. Com boom em bairros ricos, prédios superam casas em área construída. Folha de São Paulo, São Paulo, 6 set. 2019 <https://bit.ly/2F3Hku2>.
3
CUNHA, Joana. Prefeitura de São Paulo quer elevar potencial adicional de construção em área nobre. Coluna Painel S/A. Folha de São Paulo, São Paulo, 2 set. 2019 <https://bit.ly/39sQj63>.
4
FRANCO, Fernando de Mello; FRANCO, Fernando Tulio Salva Rocha; BORGES, Bruno. Building rights impacts on climate change mitigation and adaptation in urban transformation areas in the city of Sao Paulo: a retroactive and prospective analysis. Pesquisa em andamento. Cambridge, The Lincoln Institute of Land Policy, 2017-atual.
sobre o autor
Fernando de Mello Franco é arquiteto e doutor (FAU USP), professor da FAU Mackenzie, consultor em estruturação de projetos e políticas públicas, ex-secretário municipal de Desenvolvimento Urbano de São Paulo (2013-2017).