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HATOUM, Milton. Amazônia. Uma catástrofe que se aproxima. Minha Cidade, São Paulo, ano 20, n. 233.04, Vitruvius, dez. 2019 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/20.233/7575>.
No século passado, as tentativas de “ocupar” e “desenvolver” a Amazônia foram, além de fracassadas, extremamente danosas ao meio ambiente e aos indígenas, ribeirinhos, quilombolas, pescadores. Alguns exemplos conhecidos: Fordlândia, no Vale do Tapajós, 1927-45 (1); a Rodovia Transamazônica e o Projeto Jari, empreendimento agroflorestal e industrial de Daniel Ludwig (2), ambos realizados no começo dos anos 1970. A partir desta década, a grilagem de áreas de proteção ambiental, terras da União e territórios indígenas, e a ação predadora de mineradoras, madeireiras e grandes fazendeiros, se intensificaram, e nunca foram interrompidas.
Esses “empreendimentos”, nefastos aos povos da floresta, estimularam um fluxo enorme de migração interna, gerando mais miséria e violência em municípios e capitais da região.
Desde a redemocratização do País, nenhum governo refletiu seriamente sobre a diversidade social, econômica, geográfica, cultural e antropológica da Amazônia. Obras megalômanas – como construções de hidrelétricas – afetam duramente indígenas e moradores de vilas, comunidades e cidades. Uma crítica lúcida e bem argumentada a essas edificações faraônicas foi feita pelo premiado jornalista Lúcio Flávio Pinto no livro A Amazônia em questão: Belo Monte, Vale e outros temas (3).
Mas é também verdade que nenhum governo anterior a este foi tão cúmplice da destruição do bioma amazônico. O ministro do Meio Ambiente, incapaz de entender a complexidade da Amazônia, nem sequer se interessa pelos anseios e pelas expectativas de sua população. Além disso, ignora estudos de cientistas e pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – Inpa, Museu Goeldi, Instituto Butantan (Belterra), Fiocruz e de universidades brasileiras. Nesse aspecto, o ministro é coerente com as correntes do governo que desprezam o conhecimento científico, as humanidades e a tecnologia.
São inúmeros os diagnósticos, análises, pesquisas científicas e antropológicas feitos por estudiosos brasileiros e estrangeiros. Um exemplo notável é o volume Amazônia: do discurso à práxis (4), do saudoso geógrafo Aziz Ab’Sáber. Os ensaios reunidos nessa coletânea são importantíssimos para a compreensão da Amazônia. Mas nada disso parece sensibilizar o primeiro mandatário e sua equipe ministerial, cujo desprezo por um mínimo de racionalidade terá consequências desastrosas, senão trágicas, para todo o País.
A tragédia não se limita ao desmatamento e à invasão de terras indígenas. É preciso lembrar que nas cidades da Amazônia, onde vive a grande maioria de seus habitantes, a desigualdade é brutal. Em 1905, Euclides da Cunha já alertava para o contraste social e econômico em Manaus, que crescia “à gandaia” (5). Hoje, mais de 60% dos domicílios dessa cidade não têm acesso ao saneamento básico, e 30% ao abastecimento de água. Esses índices – também alarmantes quanto à violência em Manaus, Belém e outras capitais – refletem a miséria e a degradação urbana na região mais rica em recursos naturais do planeta.
Mas quem de fato usufrui dessa riqueza? Quem realmente se beneficia com a exportação de minérios, madeira e com a construção de hidrelétricas? Para que serviu a construção, em Manaus, da Arena da Amazônia? Ou da Arena Pantanal, em Cuiabá?
Vários artigos publicados em revistas científicas sérias já alertaram para a alta concentração de gases de efeito estufa sobre a floresta tropical, o que certamente será desastroso para o Brasil e para todo o planeta. Uma catástrofe se aproxima. Mesmo assim, o presidente está interessado em exportar troncos de árvores nativas (6).
Se argumentos científicos não convencem os que professam uma fé fervorosa na irracionalidade, é o caso de perguntar: quais ambições estão ocultas nessa sanha devastadora da Amazônia? Ou: o que há por trás de tantos atos irracionais? Sem dúvida, um alucinado projeto de poder. Mas esse projeto tem aliados poderosos, dentro e fora do Congresso. O empenho do governo federal em perdoar multas ambientais e fragilizar a fiscalização de atividades predadoras é uma carta branca aos grandes grileiros e incendiários. Não se trata de política liberal. O nome disso é barbárie mesmo.
notas do editor
NE – texto originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 22 dez. 2019.
1
Ver: GRANDIN, Greg. Fordlândia: ascensão e queda da cidade esquecida de Henry Ford na selva. Tradução de Nivaldo Montingelli Júnior. Rio de Janeiro, Rocco, 2010.
2
Ver: SAUTCHUK, Jaime. CARVALHO, Horácio Martins de; GUSMÃO, Sérgio Buarque de. Projeto Jari – a invasão americana. Apresentação de Octávio Ianni. Coleção Brasil Hoje, n. 1. São Paulo, Brasil Debates, 1979.
3
PINTO, Lúcio Flávio. A Amazônia em questão: Belo Monte, Vale e outros temas. São Paulo, B4 Editores, 2012.
4
AB’SÁBER, Aziz. Amazônia: do discurso à práxis. 2a edição. São Paulo, Edusp, 2004.
5
CUNHA, Euclides (1905). Amazônia, terra sem história. In CUNHA, Euclides. Um paraíso perdido – reunião dos textos amazônicos. Coleção Dimensões do Brasil. Petrópolis, Vozes/INL, 1976, p. 129.
6
BARBON, Júlia. Bolsonaro diz que pode liberar exportação de troncos de árvores nativas da Amazônia. Folha de S.Paulo, São Paulo, 23 nov. 2019 <https://bit.ly/377yxTZ>.
sobre o autor
Milton Hatoum, arquiteto formado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAU USP, é escritor, autor de um Relato de um certo Oriente, Dois Irmãos, Cinzas do Norte e Órfãos do Eldorado e diversos outros livros, ganhadores do Jabuti e outros prêmios importantes.