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português
A interferência do grafite nas cidades deixou de ser considerado vandalismo e solidificou-se como linguagem visual ganhando status de arte. A relação com o patrimônio industrial em Pelotas, RS se fez presente no evento Meeting of Styles, de 2018.
english
The graffiti interference in cities is no longer considered vandalism and has been solidified as a visual language, gaining the status of art. The relationship with industrial heritage in Pelotas, RS became present at the 2018 Meeting of Styles.
español
La interferencia del graffiti en las ciudades ya no se considera vandalismo y se solidifica como un lenguaje visual, con el estatus de arte. La relación con el patrimonio industrial en Pelotas, RS, estuvo presente en el evento Meeting of Styles, en 2018.
PATRON, Rita; CHAVES, Larissa Patron; SINCERO JR, Fernando. Arte urbana e patrimônio industrial. Minha Cidade, São Paulo, ano 20, n. 239.03, Vitruvius, jun. 2020 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/20.239/7767>.
A arte urbana pode ser definida como arte contemporânea e transgressora ao mesmo tempo, por seu caráter de expressão popular, feita em espaços abertos nas cidades, mas que propaga em paredes, muros, placas e em mobiliários urbanos, manifestações cotidianas. É uma prática que remodela lugares e propõe novas formas de estar no mundo, em virtude de sua apropriação dos locais e de sua valorização através do potencial crítico de suas mensagens.
Atualmente, a pesquisa sobre essa expressão artística apresenta diferentes abordagens e promove a discussão sobre as relações da vida moderna com o espaço urbano. As formas diferenciadas de produção, que vão desde as pichações ao grafite, tornam-se importantes ferramentas de posturas pessoais, onde a arte é de todos e para todos, e isso permite um diálogo sobre a cidade ao mesmo tempo que cria cenários controversos.
Inserindo-se muitas vezes na arquitetura, esses desenhos e imagens podem possibilitar novas narrativas, criando espaços políticos e sociais para debate, em uma estratigrafia permanente nas cidades. As produções poéticas ou artísticas mais desenvolvidas visam o intercâmbio de informações, com o objetivo de refletir ou até repensar aspectos históricos e tradicionais da arte. E isso promove transformações nos espaços e na visualização das próprias obras, que permitem entender relações e modos diferenciados de apropriação do espaço urbano, envolvendo-o com propósitos estéticos, significados sociais, culturais e políticos (1).
Etimologicamente, a palavra grafite vem da palavra grega “graphein” (γράφειν), que significa “escrever, expressar através de caracteres escritos”. Essa palavra chegou até os dias atuais através da evolução: graphein – graffio (um risco ou rabisco) – grafito e seu plural graffiti (doodle). Já na contemporaneidade, grafite é considerado como: “inscrição ou desenho feito em paredes e monumentos; gravação existente em um muro antigo” (2).
Em geral, a palavra ou desenho em uma parede ou local público, geralmente é associada a um caráter informativo. Mas, na realidade, é um elemento insurgente que se desenvolve no espaço urbano. É novo por estar conectado à produção de subjetividades nas cidades e insurgente por escapar das formas oficiais de manifestação e usos nas mesmas. O grafite capta olhares, comunica, evidencia o novo, o abandono de edificações, os objetos grandes e pequenos. Institui uma nova ordem, outro território e outra paisagem. Expressa desejos de mudança, de vida social, de direitos e de luta. E é por causa dessa possibilidade na paisagem urbana contemporânea e em seu cotidiano que surge o interesse por esse fenômeno (3). O grafite é uma manifestação artística que, por sua própria natureza, está sujeito a várias transmutações, pois pode ser apagado a qualquer momento, tornando sua realidade efêmera.
Arte urbana e a cidade de Pelotas
Com o grafite, os novos artistas encontram visibilidade em paredes e arquiteturas em desuso, e contestam a atenção dos cidadãos. Destacam o caráter espontâneo, dinâmico e acelerado, cada vez mais presente nos espaços urbanos. A cidade de Pelotas, no RS, possui um passado arquitetônico iniciado pelas grandes fazendas do charque, construída às margens do Canal São Gonçalo. Durante os anos de 1920, período de sua efervescência produtiva, as primeiras cooperativas e indústrias foram instaladas no sul da cidade, na área portuária. Por volta de 1930, o complexo arquitetônico industrial era composto por pavilhões e armazéns destinados aos mais variados usos. A indústria de alimentos no local foi a maior responsável pelo crescimento da cidade até meados do século 20. A partir dos anos 1970, com novas tecnologias, a relocação de algumas indústrias para bairros mais afastados e o fechamento de outras propiciou um lento esvaziamento e abandono de edifícios na área. No final da década de 1980, com a produção industrial muito baixa e a queda das atividades, emergiram áreas obsoletas com esse consequente abandono. Sem máquinas, sem trabalhadores e sem produção, o cenário industrial do porto tornou-se um local de memória (4).
Os primeiros grafites feitos no bairro, nasceram com o trabalho do artista Felipe “Povo” Silva em 2009. Os personagens de “olhos fechados”, que dão a impressão de estarem dormindo, despertaram na sociedade a reflexão sobre o local. Os grafites de “Povo” emocionam muito o espectador, pois as expressões de seus personagens, exibem quem trabalha oito horas por dia, pega o ônibus cheio, é vítima de violência e se sente preso em um sistema viciado (5). Com seus aspectos críticos, os grafites começaram a dar cor e nova alma a espaços e edifícios sem uso. Compartilhando ideias, os grafites no porto se moviam com o imaginário da população, democratizando a arte para todos, refletindo a cultura mais popular dos cidadãos, as crenças de histórias marítimas, os deuses e as diferentes religiões.
Trabalhando com arte nas ruas, o resultado é instantâneo, a resposta das pessoas é direta. A rua é um espaço público e democrático. Na cidade de Pelotas, trata-se de reaprender onde se mora e o que se pensa, tentando, de alguma forma, entender os motivos das coisas, sob uma nova percepção.
O patrimônio industrial na zona portuária
Em 2005, a Universidade Federal de Pelotas tornou-se proprietária das antigas instalações frigorífico dos irmãos Westley, o ANGLO, com o objetivo de realocar seu campus principal e as atividades administrativas que estavam distribuídas em vários edifícios da cidade. Nasceram então os primeiros esforços para criar planos e programas para recuperar o complexo abandonado por meio de investimentos destinados à educação. Em 2012, a Universidade mudou-se oficialmente para o porto, adquirindo mais edifícios para a conversão e implementação de seus cursos, e o resultado, em princípio atraiu novos investidores, moradores, consumidores e novos projetos. Os edifícios e seus arredores passaram a ser frequentados por profissionais da universidade, professores e estudantes, que demandavam maior qualidade no espaço urbano e nos serviços básicos oferecidos (6).
A revitalização dessa área portuária, foi uma opção da Universidade ainda na década de 1980. “Hoje a região respira uma nova realidade, voltada para fins acadêmicos e desenvolvimento científico e tecnológico, além do aspecto cultural “, afirmou o então reitor Mauro del Pino. Os interesses da reativação do porto e a abordagem econômica envolvida nas atividades não podem ser desconsiderados, mas existem preocupações baseadas em dados específicos sobre o impacto social, ambiental, cultural e urbano da iniciativa de revitalização da nessa área (7).
O panorama existente hoje como resultado dessa aquisição é a parcial revitalização de muitos exemplares e em alguns casos, através da iniciativa privada, a recuperação e requalificação de alguns e a construção de novos edifícios com o objetivo de atrair segmentos sociais com maior poder de compra.
O valor cultural e patrimonial dessa área é estimado em virtude do testemunho passado de um momento histórico e, sob um ponto de vista mais específico, do edifício que abriga uma história e uma trajetória, e que se torna imagem, espelho e consciência do lugar. Os valores singulares e representativos dessa arquitetura, contribuíram para a sua recuperação e reconciliação como interesse urbano, histórico e social.
A revitalização da paisagem através do grafite
O Festival Internacional de Grafite, chamado Meeting of Styles, começou em 2002, como um encontro de artistas urbanos que, com amor e paixão, levaram seus desenhos e manifestos aos quatro cantos do planeta. O evento se tornou o Festival de Grafite mais conhecido e mais bem-sucedido do mundo. No ano de 2018, o calendário do Meeting of Styles passou por cidades brasileiras, incluindo Pelotas. O evento contou com apoio do público, da Universidade, do município e da iniciativa privada. E a área escolhida para a intervenção artística foi a zona industrial do porto, atualmente a área universitária efervescente da cidade.
Os prédios selecionados são os testemunhos mais próximos da história e trajetória das instalações portuárias, alguns ainda em situação de abandono. Nas sociedades contemporâneas, o espaço urbano tem um papel importante na compreensão dos conflitos que moldam as experiências. Em termos da relação entre patrimônio e práticas de grafite, eles se traduzem na superposição das camadas de cor, manifestando, por sua vez, certas tensões na construção coletiva de sentido e significado sobre o passado.
A intervenção do Meeting of Styles destacou a maneira pela qual o conceito de patrimônio e espaço público é construído e assimilado na cidade, revelando uma das maneiras pelas quais o passado e o presente podem coexistir sob o mesmo muro ou arquitetura. Não se trata de julgar se o grafite é uma afronta ao patrimônio, ou estabelecer se eles devem ter sanções ou espaços autorizados para essa prática, mas tentar entender que, por trás da disputa pela cor de uma fachada pode ser necessário uma nova dinâmica de significados sobre a experiência e a história de um povo.
A cidade de Pelotas e, especialmente, a área universitária do porto, com seu patrimônio industrial, agora é forçada a repensar seus espaços públicos e, por meio deles, repensar através da arte, a ordem de prioridade que se deseja dar à sua história social. O protagonismo desse bairro, por meio das revitalizações e recuperações, é um lugar que sobrevive ao seu tempo encontrando novos usos e significados entre as tensões sobre o efêmero e o permanente.
Discussões propostas
Estudar o patrimônio industrial da cidade é uma atitude recente, uma vez que esses edifícios datam de períodos cronológicos mais próximos ao funcionamento da área portuária, e a cidade no seu desenvolvimento deu as costas para sua área fluvial. Prédios que foram abandonados por várias décadas, e muitos deles demolidos ou degradados.
No período em que a Ufpel começou a ocupar a área portuária, para criar um novo polo institucional, as modificações ocorridas no complexo fabril começaram, em parte, por eliminar as lacunas da antiga indústria, mas por outro lado, passaram a configurar novas experiências sociais. E por esse motivo, a própria cidade tem uma nova posição em relação ao patrimônio industrial do bairro. A requalificação física, contemplada com os novos grafites, desenhos e cores, precisa ser acompanhada de uma requalificação geral dos edifícios e da área urbana, por meio da infraestrutura e paisagismo. Esse resultado, impulsionado em parte pela Universidade, e em parte pelo município, configura a ideia de que as memórias de referência existem, e que podem ser valorizadas a partir desses locais (8).
A preservação desse patrimônio através da arte urbana é dada, pela recuperação e reutilização desses antigos armazéns, com a intenção de torná-los uma referência não apenas histórica, mas também da configuração da nova urbanidade. Ainda não é possível afirmar se a área portuária se tornará um novo local na cidade apenas pela requalificação de sua arquitetura industrial, grafites e expressões, ou pela apropriação e ressignificação desse patrimônio. Ser e estar neste lugar será uma reflexão importante sobre a percepção de interações sociais, trajetórias humanas e espaços de convivência, como cuidamos dele e como ele nos influenciará.
notas
NA – Publicação original do artigo: PATRON, Rita; PATRON, Larissa; SINCERO JR., Fernando. La relación entre el arte urbano y el patrimonio industrial en Pelotas, RS, Brasil. El paisaje transformado. In: Actas del VI Seminario G+I PAI, Seminário de Patrimônio Industrial – Imágenes de la Industria. Madrid, Escuela Técnica Superior de Madrid, mar. 2019, p. 491-508 <https://bit.ly/2BwJtQt>. Comunicação premiada com a segunda menção de qualidade no V Premio Promoción del Patrimonio Industrial.
1
A arte urbana como forma de manifestação e representação dos anseios da sociedade contemporãnea em PALLAMIN, Vera Maria. Arte urbana: São Paulo, região central (1945-1998): obras de caráter temporário e permamente. São Paulo, Annablume, 2000.
2
Definição da palavra grafite em espanhol: Diccionario de la lengua española. Madrid, Real Academia Española, 1992.
3
BISSOLI, Daniela Coutinho. Grafite: paisagem urbana marginal. A inserção do grafite na paisagem urbana de Vitória (ES). Dissertação de mestrado. Orientadora Eneida Maria Souza Mendonça. Vitória, Universidade Federal do Espírito Santo, 2011.
4
CHAVES, Rita Miréle. Arquitetura moderna em Pelotas: aspectos de uma particularidade. Dissertação de mestrado. Orientador Fernando de Freitas Fuão. Propar UFRGS, 2002.
5
Ver materia sobre o artista Felipe Povo, falecido em março de 2019, e seu manifesto em: Arte manifestação pública. Plataforma Palpite, Pelotas, 2016 <https://bit.ly/2Y5QTSl>.
6
PATRON, Rita; CHAVES, Larissa Patron. A memória e a revitalização urbana da zona portuária da cidade de Pelotas, RS: uma análise do novo ciclo iniciado com a universidade federal. Anais do V Enanparq, FA UFBA, 13-19 out. 2018.
7
Entrevista do ex-reitor Mauro del Pino, comentando sobre a nova movimentação e crescimento no bairro do porto com o advento da universidade. Ufpel apresenta alternativas à reativação do porto de Pelotas. Pelotas, Pró-Reitoria de Gestão da Informação e Comunicação Coordenação de Comunicação Social – Ufpel <https://bit.ly/2MDgLj7>.
8
CRUZ, Ubirajara B. Fotografia e memória as câmaras frias dos extintos frigoríficos Anglo de Pelotas (Brasil) e Fray Bentos (Uruguay). Dissertação de mestrado. Orientadora Francisca Ferreira Michelon. Pelotas, Ufpel, 2016.
sobre os autores
Rita Patron é arquiteta, professora do Curso de Arquitectura e Urbanismo da Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR, doutoranda em arquitetura e urbanismo na Universidade Presbiteriana Mackenzie, pesquisadora do grupo Arquivo Memória e Patrimônio Industrial na UTFPR.
Larissa Patron Chaves é historiadora, professora titular do Centro de Artes da Universidade Federal de Pelotas – UFPel, doutora em Historia das Artes na Universidad do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, coordenadora do grupo de pesquisa em Arte Urbana na UFPel.
Fernando Sincero Jr. é estudante de arquitetura e urbanismo na Universidade Positivo – UP, pesquisador e colaborador dos grupos Arquitetura e Identidade (UP) e Arte Urbana (UFPel).