Este trabalho ensaia um projeto habitacional para a cidade de Manaus.
A falta de políticas públicas e de planejamento urbano eficiente para a cidade resultou na formação de um espaço urbano desigual, com comunidades de baixa renda se deslocando para as margens dos rios e igarapés, vivendo em condições precárias e desumanas. Nas últimas décadas, alguns projetos habitacionais foram desenvolvidos com o objetivo de retirar essas populações das áreas ribeirinhas. No entanto, a arquitetura e o modo de vida tradicionalmente desenvolvidos pelas comunidades foram ignorados, gerando insatisfação e dificuldade de adaptação por parte dos moradores realocados. A arquitetura ribeirinha tem sido gradualmente eliminada do espaço formal de Manaus, um processo impulsionado por conotações pejorativas que a relacionavam com o subdesenvolvimento. Edifícios tradicionais foram substituídos por outros de caráter global, reproduzidos indiscriminadamente em todo o país. Essa descontextualização entre a arquitetura e o território tem contribuído para causar inúmeros problemas ambientais e baixa eficiência e desempenho dos edifícios construídos.
É indiscutível a importância da construção de conjuntos para fornecer habitações a populações que vivem em situações de risco. Porém, os novos projetos habitacionais destinados a essas comunidades precisam levar em conta as particularidades da cultura e do modo de vida dos novos moradores. O contrário disso resulta em uma grande falha na função do arquiteto e na função da habitação. Isso porque a arquitetura vernacular tem um forte vínculo com a região e com a identidade cultural dos povos. É parte da nossa memória, nossa cultura, nosso território.
O projeto proposto surge em resposta a essa situação, com a intenção de desenhar um conjunto habitacional que leve em consideração a cultura e a paisagem amazônica.
Ele se localiza na rua Ipiranga, área de várzea do Igarapé do Quarenta. A região é atualmente ocupada por palafitas de forma irregular. A intenção do projeto é remover moradores das áreas de risco, que residem em habitações sujeitas a inundação ou desmoronamento.
A implantação do edifício foi pensada de forma a garantir uma integração harmoniosa com o entorno. É proposta uma conexão com o outro lado do rio, facilitando o acesso dos moradores da região aos equipamentos presentes no conjunto habitacional, assim como a integração do conjunto com as áreas de lazer localizadas na margem oposta. Propõe-se aproveitar as quadras existentes no local, além de uma revitalização das margens do igarapé, através da criação de um parque linear.
O edifício foi inspirado na arquitetura tradicional ribeirinha da Amazônia, de forma que ele está em harmonia com o povo e o seu ambiente. Os níveis dos rios da Bacia Amazônica variam ao longo das estações e, portanto, a estrutura do edifício precisa se adaptar a essas mudanças. Isso foi feito elevando o conjunto do solo, em referência à popular palafita. É criado também um piso flutuante, que varia de acordo com os períodos de cheias e vazantes. Essa técnica é comum nas casas flutuantes da região, permitindo um diálogo contínuo com a paisagem local.
O projeto pretende fornecer moradia digna e de qualidade a populações que vivem em situações precárias e de risco. No entanto, o programa proposto não se restringe à unidade habitacional, mas também abrange usos essenciais ao desenvolvimento da vida em comunidade, como equipamentos sociais, unidades de comércio e serviços e espaços para lazer e descanso. Foi dado ênfase a programas associados à geração de emprego, com a intenção de criar meios alternativos de geração de renda. Esses programas estão relacionados a um saber e fazer local, como por exemplo um mercado de peixes e frutas e uma escola de construção de barcos. Dessa forma, o complexo oferecerá não só moradias de qualidade, mas também espaços coletivos que promovem atividades de cultura e lazer. Como resultado, um senso de comunidade é criado e fortalecido. O acesso a essas atividades é destinado não apenas aos moradores do conjunto, mas também às comunidades do entorno. Assim, o complexo gera uma microeconomia local e um polo cultural para a região.
Também foram criados usos para melhorar o bem estar e saúde da população, como uma escola de canoagem, que tem como objetivo garantir o acesso ao esporte e restabelecer a relação do homem com a água. Além disso, o conjunto habitacional apresenta amplos espaços externos, incentivando o contato com a natureza e promovendo a vida em comunidade.
A preservação do meio ambiente também é um problema abordado. Propõe-se a criação de um centro de educação ambiental onde serão realizados cursos e oficinas possibilitando o acesso à informação para garantir um meio ambiente preservado e maior qualidade de vida. Associado ao centro de educação estão uma biblioteca, mediateca e um espaço expositivo, ambientes de aprendizado que possibilitam ações práticas educativas voltadas à sensibilização da coletividade sobre as questões ambientais, à sua organização e participação na defesa do meio ambiente. Por fim, uma cooperativa de reciclagem é criada, atuando como uma alternativa para geração de renda para famílias ao mesmo tempo que permite a redução do volume de lixo descartado na natureza.
A estrutura principal da edificação é feita de madeira reflorestada, que, durante seu crescimento, absorve gás carbônico e gera menos resíduos na fase de construção. Ela é empregada nos pilares, vigas e tesouras. Para os pilares também é utilizado o concreto. Este segundo material é empregado na base da estrutura, onde há contato direto com a água. Isso garante maior durabilidade do conjunto, evitando a danificação e apodrecimento da madeira. O piso flutuante foi construído sobre toras de Açacu, madeira local de baixa densidade que flutua sobre as águas, tradicionalmente empregada nas habitações flutuantes. A cobertura é composta por tesouras de madeira e telhas metálicas termoacústicas.
A cobertura tem um papel fundamental para a garantia de conforto térmico no edifício. É através dela que ocorre a transmissão de maior carga térmica, causada principalmente pela insolação. O seu desenho foi pensado de forma a garantir uma boa adequação ao clima local. A cobertura possui duas camadas: a camada externa sombreia a interna e minimiza a absorção de calor desta, evitando o aquecimento do interior do edifício. O calor acumulado entre as duas coberturas é removido pela ventilação, através de uma abertura superior. A eficiência da cobertura também depende de sua cor e material. Ela é feita de telha metálica sanduiche com pintura branca. Sua superfície branca chega a emitir 80% de seu calor absorvido, tornando-se uma barreira mais efetiva contra a radiação solar. O material também é de fácil manutenção e resistente às intensas ações de fungos e insetos da região, além de ser impermeável e durável. Seus beirais têm a função de impedir a incidência solar direta no interior do edifício nos horários mais quentes do dia, além de protegê-lo das chuvas intensas.
Visando a sustentabilidade, o projeto aproveita ao máximo os recursos naturais disponíveis: A água da chuva é captada e utilizada em vasos sanitários. A água do esgoto é tratada para não poluir os rios através de uma mini estação de tratamento no local. A energia solar é uma alternativa de energia renovável utilizada para fornecer eletricidade ao complexo. O conforto térmico é feito naturalmente pela dissipação de calor por meio de ventilação cruzada. Além disso, os beirais da cobertura protegem os espaços internos dos raios solares diretos. Por fim, o edifício não toca o solo, causando menor impacto no terreno e na vegetação existente.
ficha técnica
projeto
Habitação social na Amazônia
ano
2019
arquitetura
Danielle Khoury Gregorio
premiações
1° lugar nas premiações LafargeHolcim Awards Latin America, Prêmio Enanparq 2020, IE School of Architecture and Design Prize e finalista no prêmio Archi Now, Sustainability First Steppers Contest, Chorus Architecture, Yaoundé. Destaque no livro World Arch-student Best Project Selection Book (Archiworld Magazine, Seoul) e na revista L'Architecture d'Aujourd´hui (Hors-Série. The next gen of sustainable construction), jun. 2021.
preâmbulo
O presente artigo faz parte de Preâmbulo, chamada aberta proposta pelo IABsp e portal Vitruvius como ação para alavancar a discussão em torno da 13ª edição da Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo, prevista para 2022. As colaborações para as revistas Arquitextos, Entrevista, Minha Cidade, Arquiteturismo, Resenhas Online e para a seção Rabiscos devem abordar o tema geral da bienal – a “Reconstrução” – e seus cinco eixos temáticos: democracia, corpos, memória, informação e ecologia. O conjunto de colaborações formará a Biblioteca Preâmbulo, a ser disponibilizada no portal Vitruvius. A equipe responsável pelo Preâmbulo é formada por Sabrina Fontenelle, Mariana Wilderom, Danilo Hideki e Karina Silva (IABsp); Abilio Guerra, Jennifer Cabral e Rafael Migliatti (portal Vitruvius).