No livro de Hélio Herbst, a arquitetura moderna brasileira apresenta-se como uma heroína. Sua saga é a de quem precisa mostrar-se célebre para reivindicar algum reconhecimento... ainda que, para tanto, deva abrir mão de traços marcantes de sua personalidade, a fim de configurar-se nos termos requeridos por sua consagração internacional. Pelos salões das bienais, pelas alas dos museus de arte e pelas páginas das publicações, ela vai conquistando sua notoriedade, não sem deixar registros daqueles maltraçados rastros para o bom observador historiografar, no ocaso, como quem almeja uma integridade.
É nessa fissura extremamente atraente que trabalha esse incansável pesquisador da “arquitetura ausente dos manuais”. A pergunta que nutre sua análise provém da perplexidade de notar significativas lacunas na constituição de uma linhagem hegemônica na arquitetura moderna brasileira, definida como monumental e localizada no principal eixo econômico do país. Fora disso, dificilmente se encontram projetos publicados nas páginas que sacramentaram a tradição da forma construída entre nós, na historiografia e na crítica.
Herbst vale-se de três ingredientes preciosos na composição do texto: a delícia do tema, sedutor por natureza, a inteligência de sua argumentação crítica e a perseverança no enfrentamento da vasta amplitude do conjunto das fontes. O autor se propõe a percorrer os 255 projetos apresentados nas cinco primeiras bienais, a fim de reconhecer ali uma arquitetura de alta qualidade, porém negligenciada pelos principais veículos de divulgação dessa particular modalidade da cultura.
O livro é composto por uma introdução, onde se apresenta o tema e suas bases conceituais, e quatro capítulos, trazendo um quadro da modernidade arquitetônica nas principais cidades brasileiras, um panorama de referências em que se baseou a estrutura da Exposição Internacional de Arquitetura de São Paulo, uma tese assentada na idéia de que esse certame teria ocupado posição central na consolidação da hegemonia em foco e a aventura da análise de alguns projetos vistos pelo autor como merecedores de maior audiência, além de algumas considerações finais. Cada parte do texto é acompanhada de um conjunto muito apropriado de imagens que traduzem ou complementam partes da análise desenvolvida.
Antes de entrar na polêmica central que motiva sua tese, o autor nos oferece um importante cenário da difusão e divulgação da cultura arquitetônica, da linguagem do projeto e da tradição da forma construída moderna no Brasil. A composição desse cenário tem uma finalidade dupla: busca justificar a centralidade ocupada pelas Exposições Internacionais de Arquitetura no campo da consolidação de uma linhagem e situar sua inserção no contexto das exposições de arte moderna que passam a ocupar as principais instituições e museus do país. Ao compor esse quadro contextual, revela-se a centralidade de sua relevância.
Para compor esse quadro, parte-se da reconstituição das heranças legadas pelas instituições internacionais que abrigaram em seu conteúdo mostras de arquitetura, quais sejam, a Bienal de Veneza, o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque e os Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna, buscando mapear uma ancestralidade para a Bienal de Arquitetura de São Paulo. Já desde esse mapeamento de genealogias, o autor deixa claro que o grande desafio enfrentado nos salões de arquitetura foi o de permitir fruição na recepção dos projetos, postas as dificuldades estabelecidas pela linguagem do desenho, plantas, cortes e detalhamentos, tão distantes do cotidiano do cidadão comum, público alvo das mostras.
Em seguida, passa-se a um panorama de como a arquitetura moderna inseriu-se no contexto das cidades brasileiras e migrou dessas para os museus de arte. Nesse percurso, o autor prima por mostrar uma articulação estreita entre o seu objeto de análise e os discursos de poder, evidenciando como a própria presença da arquitetura forjaria a modernidade nas principais metrópoles do país. Sendo assim, fica clara a relevância de se levar para dentro dos museus de arte essa nobre modalidade da cultura nacional, cuja especificidade encontrava-se tão distante do repertório do cidadão mediano dessas metrópoles. Destaca-se ainda a destreza do texto em mostrar como a arquitetura dos próprios museus favoreceu a ocorrência de mostras de arquitetura e sobretudo de debates que polarizariam o discurso no campo a partir de posições polêmicas.
Finalmente, adentra-se a tese central do texto, de que há uma linhagem oficial e hegemônica da Arquitetura Moderna Brasileira, para cuja definição os salões das Bienais exerceram protagonismo fundamental. A trajetória escolhida pelo autor para compor seu argumento passa pelo confronto entre os projetos selecionados, recusados e premiados nas bienais, comparados às citações dos mesmos nos manuais e nas publicações em periódicos, fazendo assim um balanço da repercussão dessas obras no contexto da construção de uma cultura arquitetônica nacional. Essa estratégia permite, de um só golpe, verificar quais foram os projetos e os autores enaltecidos pela crítica de seu tempo e que meios de divulgação foram os mais fundamentais para consolidar esses destaques. Nesses termos, faz notar que as bienais foram importantes polos de seleção dos elementos que viriam a compor a linha hegemônica da tradição arquitetônica nacional e que os manuais, principalmente, mas também as publicações, não cumpriram o papel de ampliar o quadro de referências dessa excludente abordagem. Sendo assim, mostra Herbst, não há espaço nos manuais e páginas de revistas para os projetos não premiados, ainda que concorrentes honrosos, permanecendo assim em plano de segundo escalão, mesmo quando cumprindo com exigentes critérios de sofisticação técnica, racionalidade, sabedoria na implantação e beleza formal.
Mas há ainda uma outra observação possível a partir da estratégia adotada: os critérios, seja das premiações, seja das publicações, passam por uma via surpreendentemente estreita, fazendo opor algumas polaridades inusitadas, na visão do autor, a saber: monumentalidade vs sofisticação técnica e austeridade; racionalidade vs empirismo; eixo Rio de Janeiro-São Paulo vs outras localidades do país; a consolidação de determinados nomes da cultura arquitetônica nacional contra a obliteração de nomes menos conhecidos e a simples ausência de menção aos colaboradores, tanto nas revistas como nos manuais.
Talvez demonstre-se aí um rasgo da cultura brasileira, essa predileção pelo monumental, pela reiteração do já consolidado, pelo ofuscamento total do que se encontra em torno daquilo que brilha em um foco qualquer, real ou produzido, reforçando sua resplancescência – uma forma de obliterar tudo que não é central, forjando assim a prórpia idéia de que existe um centro; ou talvez demonstra-se apenas a dificuldade de se construir uma cultura menos resplandescente mas mais caudalosa, mais homogênea, mais distribuida e, portanto, mais democrática.
Sem dúvida, a necessidade de um trabalho como esse desperta da já significativa proliferação de monografias sobre autores menos resplandescentes, de localidades menos centrais, que vêm reivindicando seu reconhecimento. Nasce da emergente pergunta: como lidar com essa nova evidência de um importante arsenal de arquitetos e suas produções relegado ao silêncio e ao ofuscamento nos quatro cantos dessa continental nação?
Não fora tudo isso, permane ainda um excelente exercício de análise de projeto, aprensentando critérios pertinentes e um método pré-estabelecido, uniformizando a aproximação aos objetos em discussão, uma prática pouco corrente nos nossos manuais e livros de arquitetura, mas que favorece a intelecção do objeto, o estudo da arte de elaboração de projetos e a didática nesse campo. Nesses termos, o livro torna-se indispensável nas bibliotecas de estudiosos, pesquisadores e amantes da arquitetura moderna brasileira. Nele, a personagem principal assume um tom trágico. Para transitar pelos salões, não bastava ser musa criteriosa, sofisticada e sintonizada com a compreensão mais moderna do conceito de arquitetura no mundo; tinha que ser uma diva.
sobre a autora
Ana Cláudia Castilho Barone é docente do Departamento de Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e autora do livro Team 10 – arquitetura como crítica.