Estrutura do trabalho
O texto de Rui Rocha Jr. sobre a obra de Gilberto Guedes tem uma estruturação capitular muito adequada ao gênero “dissertação de mestrado”. Situa inicialmente o arquiteto a partir de sua formação acadêmica e cultural, incluindo experiências ainda como aprendiz em escritórios e obras de profissionais experientes – caso de Roberto Burle Marx, Glauco Campello, Sergio Bernardes e José Saia. A seguir, no segundo capítulo, escrutina quatro obras exemplares do arquiteto. No capítulo 3 o autor se propõe a “costurar as análises” feitas sobre as quatro residências. Por fim, temos um apêndice bem feito, com lista cronológica de projetos, premiações, publicações e resumo biográfico do arquiteto estudado. No conjunto, as informações disponíveis permitem uma boa visão sobre a obra de Gilberto Guedes, além de sugerir outras possíveis abordagens, colocando-se como subsídio para futuras pesquisas. É o que se espera de uma boa pesquisa de mestrado.
Simples e eficaz, tal estrutura permite apresentar com precisão – através de texto descritivo do objeto, análise de fontes e referências, fotografias e redesenhos – os quatro projetos selecionados. Contudo, a ambição do autor transcende este objetivo circunscrito e se volta para o desvelamento do processo de criação do arquiteto, onde se descortinam princípios e procedimentos que serão recorrentes em suas outras obras. Esta operação metonímica se funda na convicção de que “as quatro obras pertencem a um campo de experimentação clássico” (p. 31), se apoiando em ponderações de Guilherme Wisnik e Hideaki Haraguchi (1), que consideram o projeto da casa unifamiliar como um condensador das renovações programáticas e estilísticas no primeiro momento moderno. Se tais argumentos são consistentes e permitem a boa estruturação da argumentação presente na dissertação, o mesmo não pode ser dito de conceitos importados da antropologia – “rinha de galo”, de Clifford Guertz – e da história – “história de Menocchio”, de Carlo Ginzburg (2), que se mostram excessivamente artificiais, deslocados e inertes enquanto instrumentos operacionais.
Nestes dois casos há uma apropriação forçada, em especial no caso de Ginzburg, cuja análise histórica tenta dar inteligibilidade sociocultural ao estranho encaminhamento da vida de um anônimo moleiro do Friuli italiano. A revelação do rio subterrâneo que transmite convicções pagãs da idade média ao renascimento pouco ou nada tem a ver com as evidentes conexões da obra arquitetônica de Guedes com a arquitetura praticada na atualidade ou em períodos muito próximos. Os fatos de a obra de Gilberto Guedes ser reconhecida nacionalmente e ter enorme inserção regional afastam ainda mais a possibilidade de se observar alguma similitude com a trajetória anônima de Menocchio. Há, seguramente, a possibilidade metodológica de se apropriar do “método indiciário” de Ginzburg, mas esta questão não é tratada diretamente pelo autor da dissertação.
Mesmo o termo de Bernard Tschumi – “obras limites” – não é devidamente explicado nem em sua dimensão conceitual, nem como ele é absorvido como elemento explicativo da obra estudada. Dizer que as obras limites “são referências a partir das quais pode-se empreender uma crítica às condições existentes, são situações extremas que nos informam o estado da arte, seus paradoxos e contradições” (p. 31) é por demais enigmático, é confiar demais na capacidade interpretativa do leitor. Mesmo a frase do próprio Tschumi apresentada a seguir não nos ajuda muito, pois elas – as obras limites – aparecem como “pista secreta em um romance policial” e como “obras essenciais” (p. 31).
Influências
De forma intuitiva, o autor da dissertação acaba compensando tais imprecisões conceituais com descrições vigorosas e aproximações satisfatórias entre a obra estudada e conjuntos distintos de referências. Creio que poderíamos dizer que Rui Rocha trabalha na pauta do bom senso, que compreende a produção cultural dentro de um quadro de referências, conformando um “campo do possível latente”, onde a obra específica é uma das materializações possíveis. Rui Rocha compreende – e me parece de forma correta – que a obra de Guedes ganha luz a partir de um conjunto de influências, que são mediadas por suas próprias convicções, forjadas na formação cultural e na prática profissional. Em outro momento, já tratamos da questão da “influência” com um pouco mais de rigor, mas para consumo específico do argumento que aqui se desenvolve, mencionamos a observação feita sobre teorias de Haroldo de Campos e Harold Bloom acerca da mesma questão na área literária: “para ambos os autores a influência é a própria essência da concepção artística, da qual é impossível se evadir” (3).
Se nos momentos em que trata especificamente da questão da “influência” inexistem menções de argumentos mais sólidos, curiosamente ao menos um deles é contrabandeado para a cena quando o autor trata da presença de “elementos corbuserianos” na obra de Guedes. Neste momento é citada excelente passagem de Helio Piñón acerca do sistema de influências. O crítico e arquiteto espanhol menciona o processo onde “a cópia se converte em uma transcrição, de modo que a diferença entre as condições de referência e as do projeto determina uma relação de analogia, mas não de identificação”. O autor que “reproduz de modo consciente [...] se vê obrigado a transcender o caso concreto a cada instante” (p. 155). A concepção de Helio Piñón é muito próxima à de Haroldo de Campos, em especial os conceitos que propõem: “transcrição” e “transcriação”, respectivamente. Mesmo considerando que esta passagem esteja inserida em local inoportuno, sua presença é claro indício que o autor tem consciência da complexidade do tema que tangencia.
Mas quais seriam estas matrizes intelectuais que teriam influenciado a obra de Gilberto Guedes? Não é possível responder à pergunta com precisão absoluta, pois o autor as apresenta em vários momentos com enumeração um pouco distintas. Na última página temos uma descrição imprecisa: “Podem ser encontrados em sua obra indícios de fontes como o pós-modernismo, a tradição luso-brasileira, além de aportes de outros campos do conhecimento” (p. 185). Nestas “considerações finais” se apresentam em negrito – usado para destacar as recorrências constantes presentes na obra de Guedes – as expressões “influências deixadas pelos grandes mestres modernos” e “diversidade de influências”, ambas vinculadas a aspectos formais. Além destes, também em negrito aparecem as expressões “respeito às preexistências”, “cuidado com o entorno” e “rigor técnico”, todos eles procedimentos recorrentes de Guedes. Ou seja, as influências são de dois tipos: as relacionadas à forma, com sua filiação a movimentos estilísticos (moderno, pós-moderno) e que são absorvidas de forma ampla através da observação culta; e as relacionadas ao procedimento (preexistências, entorno, rigor técnico), que são incorporadas através do aprendizado sistemático com arquitetos experientes e obras de relevância.
Imprecisões argumentativas
Aportando uma taxonomia titubeante, o autor não é capaz de listar de forma precisa quais seriam exatamente as influências detectadas (além das listadas acima, aparecem outras ao longo do texto), nem mesmo de deixar clara a distinção entre questões de estilo e de procedimento que imaginamos existir (4). Contudo, não seria honesto de nossa parte omitir que o autor, no final de sua introdução, enumera de forma clara os “aspectos que foram identificados na formação do seu perfil profissional: 1. respeito às preexistências; 2. rigor técnico e atenção aos detalhes; 3. cuidado com o entorno; 4. influências dos cânones modernos; 5. influência da arquitetura pós-moderna; 6. admiração por elementos da arquitetura colonial luso-brasileira; 7. privilégio da estrutura formal” (p. 50-51). Contudo, esta lista não é retomada na conclusão e também não está livre de problemas: por que as arquiteturas moderna e pós-moderna são “influências” enquanto a arquitetura colonial luso-brasileira é apenas fonte de “admiração”? Existe uma diferença de grau e intensidade? São manifestações históricas com distanciamentos temporais distintos?
Novamente o texto bem urdido e guiado pelo bom senso cumpre a tarefa de cauterizar os problemas – e é bom deixar claro em algum momento que o texto é bem escrito e de leitura facilitada e agradável. Contudo, o problema de taxonomia (entendida aqui como o trabalho prévio de classificar os elementos a serem tratados a partir de critérios únicos) se apresenta aqui e acolá, sempre denunciando um possível problema estrutural dos argumentos. Por exemplo, em certo momento, a Casa-Bola – construída e projetada por Eduardo Longo nos anos 1980 – é citada como um experimento diferente da obra de Guedes, sem se saber exatamente o motivo da comparação, que se torna mais enigmática quando se constata o óbvio: a maioria absoluta dos experimentos arquitetônicos daquele momento era igualmente diferente.
O rigor escapa em outros aspectos secundários, que só tem sentido mencionar se considerarmos esta uma boa oportunidade de discutirmos a precisão como um valor importante. Nesse sentido, Rui Rocha não se importa em afirmar que Guedes elabora “um projeto que respeita o terreno” (p. 81). Não é possível – ao menos não foi para nós – verificar nas fotos disponíveis o mencionado respeito, como também o autor não entendeu necessária uma explicação fundamentada. Precisamos acreditar na afirmação, que se torna retórica ao ser repetida ao longo da dissertação. Em outra oportunidade, o autor afirma que “Guedes considera a pré-existência da casa e do entorno” a conversão de uma residência dos anos 1960 em escritório de advocacia (p. 61). Mais uma vez ficamos reféns de sua afirmação, pois não há como verificar consideração da preexistência a partir das fotos ou argumentos disponíveis.
Em outro nível, a mesma falta de rigor se infiltra no texto quando as diversas referências às preocupações de Guedes com o patrimônio – “envolvido pela questão do patrimônio por sua atuação no serviço público”, na página 77, é apenas uma de inúmeras – são apoiadas apenas na experiência de vida do arquiteto (participações em obras de restauro e especialização na ETSAM, quando se aproxima do arquiteto Sáenz de Oíza). Não há referências sobre quais eram as teorias e princípios do restauro moderno que seriam da predileção do arquiteto Gilberto Guedes. Não há também menções às diversas teorias e princípios do restauro moderno que, ao menos desde o século 19, conformaram um complexo e bem articulado corpus teórico. Novamente temos que confiar no feeling do autor, mas neste caso a ausência do debate vai cobrar seu preço um pouco mais alto, pois fará falta nas leituras de projetos onde as relações com a arquitetura preexistente estão presentes – caso do escritório de advocacia acima mencionado. Este preço não se torna excessivo por não estar esta questão presente nos quatro projetos residenciais selecionados.
As casas de Gilberto Guedes
Por si só, as quatro residências de Gilberto Guedes que foram selecionadas para uma “descrição densa” – “estratégia utilizada por Clifford Geertz” (p. 86), como nos avisa o autor – são relevantes o suficiente para justificar a dissertação. O seguro desenvolvimento de partidos diversificados obtido pelo arquiteto demonstra a necessária qualidade para um interesse acadêmico. O fato de se tratar de obra circunscrita a um espaço regional demarcado torna ainda mais significativa a escolha feita e sua difusão.
A análise do primeiro projeto – a Casa Seixas – é a mais ampla de todas e escrutina o projeto em diversos aspectos: tectônico, programático, estrutural etc. O resultado é uma grande aproximação aos princípios das vanguardas modernas, em especial da obra de Le Corbusier. Seria mais apropriado dizer que as referências observadas são fundamentalmente questões estilísticas, em especial o vocabulário utilizado pelo mestre suíço-francês em sua obra dos anos 1920. Balcões, escadas, guarda-corpos e pilotis usados nas casas Citrohan e no conjunto residencial de Pessac conformam um conjunto de referências apropriadas e ressignificadas por Guedes, com a acoplagem de elementos buscados a Burle Marx – o jardim do MAM do Rio de Janeiro – e a caixa de escadas desenhadas por Oscar Niemeyer e João Filgueiras Lima, Lelé.
Tais referências nos parecem acertadas, mas valeria ressaltar que surpreende a ausência da Villa Savoye, cujo estudo em croquis perspectivado da página 88 denuncia o quanto a caixa branca elevada por pilotis e coroamento de elementos plásticos no teto-jardim inspirou o projeto. Talvez seja exagerado também atribuir a dois projetos específicos a origem do volume em concreto abrigando a caixa de escadas, pois se trata de um elemento utilizado em larga escala pela arquitetura brasileira já nos anos 1960. Também surpreende a menção exclusiva de formas e estratégias modernas quando nos parece também evidente a presença de elementos pós-modernos, seja nas formas, seja nos procedimentos, que poderíamos exemplificar com as janelas quadradas palladianas incorporadas no volume cilíndrico da cozinha.
De qualquer modo, estamos também diante dos riscos inerentes a um método que faz aproximações de formas e tipologias sem o freio de um cotejamento mais preciso através de documentos e depoimentos. A varanda comum às suítes no segundo pavimento é similar tipologicamente à utilizada por Paulo Mendes da Rocha em sua casa particular no bairro do Butantã em São Paulo, mesmo sendo clara sua distinção formal. Ora, este e outros exemplos poderiam ser apontados como referências da Casa Seixas e seria muito importante assegurar alguma certeza sobre quais são as corretas e os motivos de sua presença.
Na Casa Gilson, a terceira casa selecionada, para justificar a presença de planos deslizantes e coloridos, são apontadas outras referências modernas, agora do universo do neoplasticismo holandês, em especial a Casa Schoroeder, construída por Rietveld em Utrecht (mas estão também citados os arquitetos Theo van Doesburg e Cornelius van Eesteren). Se tal relação estabelecida está bem construída e argumentada, o mesmo não ocorre em relação ao elemento estranho a este universo cultural – a varanda. Ela é muito bem descrita em um longo parágrafo (p. 134), mas não há qualquer menção a uma possível fonte culta sacada por Guedes. A presença de beirais e marquises de proteção das janelas é atribuída, por sua vez, a um olhar atento para “a arquitetura praieira nordestina”, quando parecem na verdade buscada em um universo mais culto, em especial na obra de Rino Levi (5).
Mas esta varanda sem dono da terceira casa abre espaço para se observar uma ausência flagrante nas outras duas casas selecionadas – a Casa Maciel, número 2, e a Casa Júlio, número 4. Como diz a música, naquela mesa está faltando ele, Lúcio Costa! Em um primeiro momento analítico, Rui Rocha atribui as características formais e de implantação das casas a uma “relação com a arquitetura tradicional não erudita, de origem luso-brasileira” (p. 113). Somente no capítulo seguinte, quando trata dos quatro projetos em conjunto, o autor chamará a atenção – acertadamente – que “a relação de Gilberto Guedes com os elementos artesanais, populares, cotidianos e tradicionais estão mais ligados a proposta de Lucio Costa de integrar a tradição luso-brasileira à modernidade” (p.151).
A presença das ideias de Lúcio Costa na análise das casas poderia ter evitado ao menos três incômodos sofridos pelo leitor ao longo da leitura: considerar uma possível ingenuidade do autor ao imaginar que Gilberto Guedes buscou suas referências diretamente do universo cultural popular, sem qualquer mediação culta; considerar que o autor Rui Rocha desconhece uma relação direta entre o procedimento de Guedes e o pensamento de Costa, de uma obviedade ululante; e a desnecessária desilusão diante de uma inócua interpretação da casa Júlio, que se esgota depois de pouco mais de uma escassa página, denunciando a falta de assunto. Como Lúcio Costa está lá, no capítulo 3, parece que a estratégia narrativa foi infeliz, pois permite que o leitor pense coisas que serão posteriormente desmentidas ou relativizadas.
Mas não é só isso! Acredito que haja um prejuízo do avanço da interpretação. Também no capítulo 3, ao lado de Lúcio Costa, temos a presença da obra do escritório Brasil Arquitetura, que conta com a presença de Marcelo Ferraz, que trabalhou por muitos anos com Lina Bo Bardi, também ela admiradora da cultura popular. A Casa da Mantiqueira, de autoria de Ferraz e seu sócio Francisco Fanucci, apresenta elementos de enorme parentesco com as casas de Guedes: a implantação expandida, varandas, telhados de uma água conformando volumes trapezoidais, empenas voltadas para o exterior etc. A aproximação é corretíssima e confessamos que nos ocorreu o mesmo durante a leitura da descrição da casa 2. Contudo, nos ocorreu também a fonte óbvia dos dois projetos: a residência Saavedra, em Correias RJ, projetada e construída por Lúcio Costa no distante ano de 1942. Todos os elementos acima apontados, que estão presentes na Casa Maciel e na Casa da Mantiqueira, já estão lá na casa do mestre carioca, inclusive a implantação em “L”.
E a magrinha descrição da Casa Júlio poderia ficar mais vigorosa caso estivesse presente ali este e outro projeto de Costa, a residência Paes de Carvalho, erguida em Araruama RJ, em 1944. Ali seria encontrado o tipo “pátio”, que Rui Rocha aponta, mas não filia, e que é anterior ao projeto de Rino Levi para sua própria casa, de 1946, e ao projeto de Francisco Bolonha para a Casa Hildebrando Accioly, de 1950, ambos presentes na análise da casa 2.
E, por fim, gostaríamos de apontar uma questão relevante que está presente, mas subterrânea. Trata-se de uma discussão incompleta, de uma agenda a ser cumprida. Citamos duas afirmações do autor para apresentá-la:
“a vanguarda modernista disponibiliza um repertório que pode ser investigado e pode trazer uma nova leitura”;
“a confirmação de que o processo de projeto pode ser oriundo de diferentes fragmentos, que reunidos configurar uma nova arquitetura” (p. 134).
Ora, ambas as afirmações nos levam a mesma constatação: tanto o ato de retirar soluções formais pontuais, que originalmente faziam parte de um pensamento orgânico, para transformá-las em “repertório”, como o ato de reunir diferentes fragmentos para configurar uma nova arquitetura são procedimentos pós-modernos! Rui Rocha apresenta na introdução acertadas considerações sobre o pós-moderno no exterior e no Brasil, mas elas não se transformam em argumentos explicativos estruturadores da interpretação das quatro casas selecionadas de Gilberto Guedes (mas é bom que se diga que elas aparecem na leitura de outras obras do arquiteto paraibano).
Não devemos, contudo, ser demasiadamente severos nesta apreciação, pois o tema em si é delicado e a historiografia brasileira não conseguiu dar conta, de forma ampla e profunda, dos desdobramentos implícitos a ele. Paolo Portoghese, em texto de 1980, afirma que os dois princípios que unem as diversas manifestações pós-modernas seriam a reconciliação com o passado e a relevância do sítio natural (6). Para o arquiteto e crítico italiano seriam esquemas necessários para frear o novidadeirismo sem fim e o standard anódino do projeto moderno. Os retornos da história e da geografia seriam, portanto, características fundamentais do pós-moderno.
O projeto moderno de Lúcio Costa, pedra fundamental da arquitetura moderna brasileira, já nos anos 1930 prescrevia a aliança dos princípios modernos importados com a tradição e com a paisagem tropical. Os elementos que Portoghesi apontava como substâncias do pós-moderno constituem a própria essência do moderno nacional. Nele, curiosamente, podemos observar procedimentos de projeto atribuídos ao pós-moderno, em especial o recorte de elementos construtivos e tipológicos da tradição vernácula e sua transformação em vocabulário da nova arquitetura.
Talvez seja a hora de retomarmos a vereda aberta por Otília Arantes, que em diversos textos apontou para uma questão incômoda: o tão propalado formalismo da arquitetura moderna brasileira – índice fundamental da ausência de base social para o desenvolvimento pleno do projeto moderno no nosso país – não é um desvio do ideário dos grandes mestres, mas uma antecipação do que ocorreria, inevitavelmente, com o próprio moderno dos países centrais. Nesta perspectiva, o pós-moderno seria apenas um momento específico da evolução do moderno, o momento no qual ele revelaria sua essência profunda: seu formalismo radical.
Com perspectivas diferentes, Peter Eisenman e Helio Piñón afirmam o radical formalismo moderno, mas ambos com uma visão positiva e elogiosa, que os afastam irremediavelmente do pessimismo de Otilia Arantes. A questão está em aberto e temos aqui uma inesperada contribuição da dissertação de mestrado de Rui Rocha: nas fissuras argumentativas surge um problema que transcende o trabalho, por ser um problema de todos nós que nos interessamos pela história da arquitetura moderna em nosso país.
notas
NE
Texto baseado na argüição feita durante a banca de defesa de dissertação de mestrado de Rui Rocha Jr., intitulada Construção arquitetônica contemporânea. A obra de Gilberto Guedes, e ocorrida no dia 15 de março de 2012 no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Paraíba. A banca foi formada pelos seguintes membros: Nelci Tinem (orientadora), Marcio Cotrim (PPGAU/UFPB) Luiz Amorim (MDU/UFPE) e Abilio Guerra (FAU Mackenzie).
1
WISNIK, Guilherme. Exercícios de liberdade. In ACAYABA, Marcos. Marcos Acayaba. São Paulo, Cosac Naify, 2007; HARAGUCHI Hideaki. A Comparative Analysis of 20th-century Houses. Nova York, Rizzoli, 1989.
2
Nestes dois casos há uma apropriação forçada, em especial no caso de Ginzburg, cuja análise histórica tenta dar inteligibilidade sociocultural ao estranho encaminhamento da vida de um anônimo moleiro do Friuli italiano. A revelação do rio subterrâneo que transmite convicções pagãs da idade média ao renascimento pouco ou nada tem a ver com as evidentes conexões da obra arquitetônica de Guedes com a arquitetura praticada na atualidade ou em períodos muito próximos. O fato da obra de Gilberto Guedes ser reconhecida nacionalmente e ter enorme inserção regional afasta ainda mais a possibilidade de se observar alguma similitude com a trajetória anônima de Menocchio. Há, seguramente, a possibilidade metodológica de se apropriar do método indiciário de Ginzburg, mas esta questão não é tratada diretamente pelo autor da dissertação.
3
GUERRA, Abilio. O brutalismo paulista no contexto paranaense. A arquitetura do escritório Forte Gandolfi. Resenhas Online, São Paulo, n. 09.106.02, Vitruvius, out. 2010 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/09.106/3792>.
4
Não seria honesto de nossa parte omitir que o autor, em determinado momento, enumera de forma clara os “aspectos que foram identificados na formação do seu perfil profissional: 1. respeito às preexistências; 2. rigor técnico e atenção aos detalhes; 3. cuidado com o entorno; 4. influências dos cânones modernos; 5. influência da arquitetura pós-moderna; 6. admiração por elementos da arquitetura colonial luso-brasileira; 7. privilégio da estrutura formal” (p. 50-51). Contudo, esta lista não é retomada na conclusão e também não está livre de problemas: por que as arquiteturas moderna e pós-moderna são “influências” enquanto a arquitetura colonial luso-brasileira é fonte de “admiração”? Existe uma diferença de grau e intensidade? São manifestações históricas com distanciamentos temporais distintos?
5
Aparecem duas plantas de projetos de Rino Levi em outra situação, como possíveis referências para os pátios presentes na casa Maciel (p. 122). Se a primeira – Casa Rino Levi – pode ser considerada como tal, acreditamos que a segunda, a Casa Olivo Gomes, está por demais comprometida com a ideia de casa binucleada de Marcel Breuer para ser considerada aqui.
6
Portoghesi menciona outras características comuns do pós-moderno (ironia, predileção pelo universo popular etc.), mas estes dois temas – reconciliação com a natureza e com a memória histórica – são centrais em toda sua argumentação. PORTOGHESI, Paolo. Depois da arquitetura moderna. Coleção Arte & Comunicação, volume 19. Lisboa, Martins Fontes, 1982 (original: PORTOGHESI, Paolo. Dopo l’Architettura Moderna. Bari, Laterza, 1980.
sobre o autor
Abilio Guerra, arquiteto, professor da FAU Mackenzie e editor do Portal Vitruvius.