As viagens são um campo prolífico para a correspondência, legando-nos várias obras literárias que permitem melhor conhecer cidades, países, em diferentes épocas, por um olhar muito particular: o do viajante, o do turista. Eis o caráter, por exemplo, de Viagem ao Rio: cartas da juventude (1848-1849) (1), do pintor Edouard Manet (1832-1883).
Manet viajou ao Rio de Janeiro em finais de 1848, a bordo do navio-escola Havre et Guadeloupe, quando tinha apenas dezessete anos. Aspirante a futuro marinheiro, com esta viagem o jovem Manet visava preparar-se melhor para prestar, no início de 1850, as provas de admissão da Escola Naval. A viagem foi iniciada em novembro de 1848 e foi narrada dia a dia por Manet em cartas destinadas aos seus familiares.
O navio ancorou na baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, em fevereiro de 1849. Em sua apresentação do livro, o tradutor Jean Marcel Carvalho França faz um importante destaque: “Há de se ter em conta, entretanto, que Manet é uma das personalidades mais importantes que pisaram o solo carioca ao longo do século XIX”.
A primeira carta do futuro pintor a mencionar o Rio de Janeiro é destinada a sua mãe, datada de 5 de fevereiro de 1849, encabeçada, além da data, pela localização “Na Baía do Rio de Janeiro”. A baía é descrita aí com as seguintes palavras:
“A baía do Rio de Janeiro é encantadora, povoada de navios de guerra de todas as nações e cercada por montanhas verdes, nas quais se notam, aqui e ali, belas habitações” (2).
Sobre a vida urbana em si, há comentários de Manet sobre o comportamento de homens e mulheres, brancos e negros, policiais e civis, a guarda nacional, o carnaval, festas religiosas e algumas considerações sobre a estrutura física do poder. Esta última surge, por exemplo, quando relata, à sua mãe, em carta encabeçada pela localização “Do porto do Rio de Janeiro”, sem data, o que segue:
“Ia me esquecendo de comentar que o palácio do imperador é um verdadeiro casebre, bastante mesquinho. De resto, o governante quase não ocupa esse prédio, preferindo antes residir num castelo de nome São Cristóvão, situado a pouca distância da cidade” (3).
Se a arquitetura da cidade construída não parece fascinar Manet, que lhe dedica poucas descrições, a natureza envolvente o encanta, como pode ser comprovado no relato de seus passeios, que denotam também a riqueza de sabores naturais.
“Os passeios são encantadores, desfrutamos da mais bela natureza que se pode imaginar e temos à mão tantas frutas quanto desejamos. Diariamente, uma chalupa de terra vem a bordo carregada de bananas, laranjas, ananases, etc.” (4).
Em outro momento, em carta ao primo Jules, encabeçada pela localização “Do porto do Rio de Janeiro”, e datada de “segunda-feira 26 de fevereiro”, Manet reforça a beleza dos arredores da cidade, afirmando: “Os arredores da cidade são incomparavelmente bonitos, nunca vi uma natureza tão bela”. Descrevendo visita a uma “ilha situada no fundo da baía”, que o tradutor identifica, em nota, como provavelmente a Ilha de Paquetá, o futuro pintor narra passeio por uma “floresta virgem” (5). A correspondência é curta, mas significativa da prevalência da natureza sobre a cidade na apreensão do futuro pintor.
De edição primorosa, este pequeno livro tem um belo projeto gráfico, e conta com ilustrações do século XIX, que inclusive dão uma visão da época em que Manet esteve no Rio. Exemplar disso é a ilustração que reproduz o óleo sobre tela intitulado Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro, 1848, de Charles J. Martin (Museus Castro Maya/Iphan/MinC, Rio de Janeiro).
Há ainda uma série de desenhos de Manet feitos a bordo do veleiro Havre et Guadeloupe, entre 1848 e 1849 que encerra com chave de ouro a pequena joia que é este livro.
notas
NA – Este artigo integra a produção da linha de pesquisa Paisagens Epistolares.
1
MANET, Edouard. Viagem ao Rio: cartas da juventude (1848-1849). Rio de Janeiro, José Olympio, 2002.
2
Idem, ibidem, p. 68-69.
3
Idem, ibidem, p. 80.
4
Idem, ibidem, p. 83.
5
Idem, ibidem, p. 92.
sobre a autora
Eliane Lordello é arquiteta e urbanista (UFES, 1991), mestre em Arquitetura (UFRJ, 2003), doutora em Desenvolvimento Urbano (UFPE, 2008). Arquiteta da Gerência de Memória e Patrimônio da Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo.