Sempre tive certa habilidade para fazer contas e uma boa memória. Quando era criança acompanhava minha mãe, quando ela pretendia adquirir um eletrodoméstico à prestação. Calculava a taxa de juros de cabeça e dizia: “Mãe na outra loja os juros são mais baixos”. Assim, evitava que ela fosse enrolada. Quando vou à padaria comprar o lanche diário, já sei o total antes mesmo do caixa iniciar a conta. Mas, isso é apenas um detalhe da nossa estória.
Junto com estas “habilidades”, sempre fui um leitor contumaz. Desde criança ficava intrigado com a realidade e procurava na leitura compreender melhor o nosso mundo. Minha avó cedo percebeu e me presenteou com uma coleção chamada “Histórias da nossa História”. Eram uns livros grandes e bem ilustrados, que narravam capítulos da nossa história como o título já sugere. A Guerra do Paraguai era de longe o episódio que mais me impressionava e aterrorizava. As batalhas, as cenas grandiloquentes pintadas por Victor Meirelles, com o Duque de Caxias à frente bradando: “Sigam-me os que forem brasileiros”.
Minhas preferências pela história do Brasil foram crescendo e se diversificando. Como esse país continental foi constituído? O que explica simultaneamente a diversidade e a unidade de uma nação formada por tantos povos e etnias diferentes, falando centenas de línguas, entre indígenas, africanas e europeias? Aqui, pela primeira vez, diferentes povos – indígenas, africanos e europeus – fizeram contato entre si e com os outros. Os dois primeiros a ferro e fogo, sob a égide da escravidão que alimentava de braços a empreitada colonial.
O século 20, especialmente a partir de sua terceira década, traz ao país que iniciava sua urbanização a necessidade de se compreender e explicar. Não mais pela visão dos estrangeiros, cujo século 19 foi pródigo: Saint Hilaire, Rugendas, Eschwege, Richard Burton, Debret, Hercule Florence, Spix, Langsdorff, Taunay e tantos outros, mas por nós mesmos na maré antropofágica desencadeada pela Semana de Arte Moderna de 1922. O que vimos na primeira metade do século 20 foi uma produção de um conjunto de obras fundamentais, formadoras da ideia de Brasil e do que é ser brasileiro, nas quais ainda se assenta na atualidade nosso pensamento contemporâneo.
Os sertões
A abertura desse ciclo é inaugurada por Os sertões, de Euclides da Cunha, publicado em 1902, ainda influenciado pelo pensamento antropológico impregnado de darwinismo social do século 19. É assim por dizer uma obra pré-modernista, precursora das que vamos mencionar mais adiante. O que de forma alguma lhe tira o mérito e a dimensão histórica e épica. Dividido grosso modo em três partes, a Terra, o Meio e a Luta, mostra a desproporção de forças utilizada pela nascente República, para esmagar o “sebastianismo” de Antônio Conselheiro e seus seguidores, sob o pretexto de contestação a constituição. Um genocídio instigado pela mídia e as classes dominantes, assustadas com qualquer ameaça, mesmo que em um rincão isolado e sem importância econômica. É um livro marcante sobre todos os aspectos, em sua exaltação sertaneja corajosa e estoica em um ambiente marcado pela seca e poucos recursos naturais entre eles à água. A frase mais notória de Euclides é lapidar: “O sertanejo é antes de tudo um forte”.
Aguardamos três décadas para simultaneamente vermos publicados três livros que estão na raiz do que entendemos hoje ser o Brasil e o povo brasileiro. Gilberto Freire e seu Casa grande e senzala; Sergio Buarque de Holanda, com Raízes do Brasil; e Caio Prado Júnior, com Formação do Brasil contemporâneo. Foi uma década marcada pelos ventos modernizantes da revolução de 1930, pelo autoritarismo ditatorial do Estado Novo de Vargas e, no plano internacional, pela ascensão de regimes totalitários fascistas que iriam provocar a maior tragédia da humanidade, a II Guerra Mundial.
Casa-grande & senzala
Casa-grande & senzala de Gilberto Freire foi editado em 1933, quando os esteios da economia nordestina já haviam declinado ou desaparecido, embora traços permanecessem convivendo com as novas ordens: a monocultura da cana de açúcar e a escravidão. Freire em uma “harmonização de contrários étnicos e culturais” analisa um panorama das relações sociais, econômicas e culturais, centrado na relação entre senhor e escravo, como já anuncia o título do livro. Relação de submissão e rudeza, patriarcalista e patrimonialista, segundo Freire ao mesmo tempo de familiaridade e sexualidade. O livro causou enorme impacto por seu panorama do Brasil colônia e por sua visão positiva da miscigenação, sem dúvida uma de suas virtudes, em uma época onde prevaleciam concepções racistas e eurocêntricas. Nas últimas décadas a visão de Freire sofreu muitas críticas, advindas de novas pesquisas mais rigorosas e de conclusões acertadas sobre a desumanidade e horrores da escravidão, e de um senso bastante difundido de que ele abrandara e até “adoçara” a relação senhor e escravo. Passados 82 anos de sua edição, o livro continua uma referência obrigatória.
Raízes do Brasil
Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda, nas palavras de Antônio Cândido, é um “livro que se tornou um clássico de nascença”. Publicado em 1936 propõe-se a elaborar um panorama dialético da construção do país, a partir de nossas origens ibéricas até as primeiras décadas da República, com o declínio das oligarquias e do coronelismo calcado no latifúndio, frente ao avanço da urbanização e de novas realidades econômicas e sociais. A empreitada colonial é analisada com base no espírito aventureiro dos ibéricos e sua capacidade de mandar e obedecer. A escravidão de indígenas e africanos, assim como no livro de Freire, é pilar central tanto da ocupação do vasto território como nas atividades agropastoris e domésticas. O cenário social é dominado pelo rural, pela fazenda, em oposição às cidades subordinadas e reduzidas a condição de entrepostos de troca e de relações institucionais, entre a igreja, o Estado e os potentados.
Dois capítulos do livro de Sérgio Buarque assumiram dimensão própria descolada do livro. “O ladrilhador e o semeador” e “O homem cordial”. O primeiro onde o autor trata das cidades como instrumento de ordenamento e dominação do território, comparando as iniciativas urbanas de Espanha e Portugal, frente à ocupação de territórios distintos geomorfologicamente e na distribuição dos recursos naturais e riquezas. Como em relação ao livro de Freire, a evolução das pesquisas e o acesso a novos acervos e arquivos, permitiu uma percepção mais próxima do ocorrido. São elucidatórias duas citações. A primeira de Sérgio Buarque e a segunda de Paulo Santos em seu livro seminal, Formação de cidades no Brasil colonial, de 1968:
“A cidade que os portugueses construíram na América não é produto mental, não chega a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na linha da paisagem. Nenhum rigor, nenhum método, nenhuma previdência, sempre esse significativo abandono que exprime a palavra desleixo” (1).
“É que, naquela aparente desordem que leva a admitir, como fez o eminente historiador patrício, a inexistência de um traçado prévio ou de uma ideia diretriz, existem uma coerência orgânica, uma correlação formal e uma unidade de espírito que lhe dão genuinidade. Genuinidade como expressão espontânea e sincera de todo um sistema de vida, e que tantas vezes falta à cidade regular, traçada em rígido tabuleiro de xadrez” (2).
O capítulo do “O homem cordial” alcançou notoriedade graças à polêmica que ensejou nos meio intelectuais, especialmente com o poeta paulista Cassiano Ricardo. O homem cordial na acepção de Sérgio Buarque não pressupõe bondade e polidez, como nos recorda Antônio Candido. É sobretudo a dominância de atitudes e comportamentos afetivos, que podem não ser sinceros ou profundos, em oposição à ritualística imposta pelas relações em sociedade, marcadamente impessoais. A “cordialidade” de Sérgio Buarque tem suas origens na família e no patriarcalismo e perpassa tanto as esferas privadas como as públicas.
Formação do Brasil contemporâneo
Autor de Formação do Brasil contemporâneo, Caio Prado Júnior nasceu no seio da elite paulistana, descendente de duas das mais importantes famílias vinculadas à cafeicultura: os Penteado e os Prado. Rebelde às suas origens, cedo abraçou o marxismo, ferramenta teórica que utilizou em várias obras entre elas a que nos referenciamos. Foi um intelectual orgânico e combativo. Como um John Reed tropical, visitou a URSS em 1933, experiência que relatou em livros e conferências, e mais tarde se filiou ao Partido Comunista do Brasil, o que lhe rendeu várias prisões. Em sua obra Caio Prado analisa a formação do Brasil em seus três primeiros séculos, com ênfase nas relações econômicas, e – a exemplo de Sergio Buarque e Gilberto Freire, cujos livros já conhecia quando escreveu o seu em 1942 – analisa as relações entre capital e trabalho calcado ma mão de obra escrava.
No prefácio de seu livro afirma que ao fim do longo século 18, marcado pela descoberta do ouro em fins do 17 e a instalação do reino Unido em 1810, que o sistema colonial havia se esgotado por incapacidade de iniciativas e que o país já havia alcançado uma dinâmica tal, incompatível com o regime e as possibilidades do colonizador. Em sua concepção o capitalismo mercantil, a estrutura agrária e o imperialismo se constituíam ainda em meados do século passado em fortes entraves ao pleno desenvolvimento do país. Processo que até a atualidade ainda não foi superado.
Formação econômica do Brasil
Não é possível falar de economia no Brasil ou na América Latina sem falar de Celso Furtado. Sua vasta obra é dedicada aos problemas e mazelas do subdesenvolvimento: a pobreza, a industrialização tardia, as desigualdades inter-regionais e interpessoais, os mercados incipientes e a subordinação da substituição das importações à lógica da modernização dos padrões do consumo, processo perverso que acaba por criar e perpetuar circuitos com padrões diametralmente opostos, como nos ensina Milton Santos. Um superior, com padrões elevados e diversos de consumo atrelados às economias hegemônicas, e outro inferior, pobre, quase ao nível da subsistência, incapaz de satisfazer as necessidades elementares de alimentação, educação e saúde.
Formação econômica do Brasil, publicado em 1959 (3), é um marco no estudo, denuncia e compreensão dos problemas do subdesenvolvimento nas economias dependentes, cuja inserção na ordem econômica internacional ainda não superou o modelo centro-periferia com a importação de tecnologia e bens de consumo sofisticados e a exportação de matérias primas e comodites. Apesar de ter ocorrido o deslocamento do centro dinâmico da economia do setor agrário exportador para o de substituição de importações e pelo surgimento da indústria de bens de capital. A par dos progressos das duas últimas décadas, ainda está presente o fantasma da inflação estrutural que freia o desenvolvimento, inibindo o consumo e o acesso aos bens fundamentais.
Desde sua passagem pela Cepal – Comissão Econômica para a América Latina e Caribe e depois pela Sudene – Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste, o pensamento de Celso Furtado evolui incorporando as dimensões ambientais e culturais a sua vasta obra. Em um de seus últimos livros, O capitalismo global, ele afirma:
“Se a política de desenvolvimento objetiva enriquecer a vida dos homens, seu ponto de partida terá que ser a percepção dos fins, dos objetivos que se propõem alcançar os indivíduos e a comunidade. Portanto, a dimensão cultural dessa política deverá prevalecer sobre todas as demais” (4).
Bem, a esta altura o leitor deve estar perguntando o que tem a ver os livros que comento, com minha “habilidade” de memorizar e fazer contas. Vou explicar. Lendo sobre nossos autores, descobri que todos eles escreveram suas obras capitais entre 33 e 37 anos. Confesso que fiquei com inveja e percebi como a juventude, a determinação e o estudo persistente promovem prodígios. Portanto galera, mãos à obra.
notas
1
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro, José Olympio, 1936, p. 62.
2
SANTOS, Paulo (1968). Formação de cidades no Brasil colonial. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2001, p. 18. O texto foi originalmente publicado como separata do V Colóquio Internacional de Estudos Brasileiros, em 1968, em Coimbra, Portugal, e somente em 2001 convertido em livro.
3
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. Rio de Janeiro, Fundo de Cultura, 1959. Escrito em 1957 e 1958, o livro foi originalmente publicado em espanhol no México, em 1959, para logo a seguir ser publicado em português no Brasil.
4
FURTADO, Celso. O capitalismo global. 5ª edição. São Paulo, Paz e Terra, 2001, p. 70.
sobre o autor
Luiz Philippe Torelly é arquiteto e urbanista. Trabalha no Iphan.