No célebre item 9 das suas Teses sobre a filosofia da História, Walter Benjamin cria uma alegoria a partir do quadro Angelus Novus, de Paul Klee:
“Nele está representado um anjo, que parece querer afastar-se de algo a que ele contempla. Seus olhos estão arregalados, sua boca está aberta e suas asas estão prontas para voar. O Anjo da História deve parecer assim. Ele tem o rosto voltado para o passado. Onde diante de nós aparece uma série de eventos, ele vê uma catástrofe única, que sem cessar acumula escombros sobre escombros, arremessando-os diante dos seus pés. Ele bem que gostaria de poder parar, de acordar com os mortos e de reconstruir o destruído. Mas uma tempestade sopra do Paraíso, aninhando-se em suas asas, e ela é tão forte que ele não consegue mais cerrá-las. Essa tempestade impele-o incessantemente para o futuro, ao qual ele dá as costas, enquanto o monte de escombros cresce ante ele até o céu. Aquilo que chamamos de Progresso é essa tempestade” (1).
A mescla do discurso político materialista de base marxista e a teologia oriunda da Torá judaica presente nesta magnífica alegoria da História manipula com astúcia o tom épico e a mensagem trágica, com ecos das narrativas bíblicas. O vento tempestuoso que brota no paraíso impulsiona o anjo para um futuro desconhecido, enquanto as mazelas do presente se amontoam sem cessar “diante dos seus pés”. Os olhos arregalados do anjo vislumbram uma história humana sem sentido, desarrazoada, abandonada pela divindade. O seu desejo de uma nova chance não passa de uma promessa inócua de redenção.
Não seria abusado afirmar que a visão trágica da história presente na tese benjaminiana, em grande medida reflexo da condição judaica no século 20, é a pauta do pequeno romance O soprador, escrito a quatro mãos por Michel Gorski e Sílvia Zatz. Uma pauta de linhas desbotadas, quase apagadas, mas que estão lá, o tempo todo, e sobre as quais são escritas as melodias e o leitmotiv é desenvolvido. As forças da história são enunciadas como rumores ou, para ser mais preciso, como coisas consabidas, sobre as quais não há muito mais o que falar. Afinal, o que falar sobre as ignomínias humanas encenadas pelo nazismo ou pela ditadura argentina, experiências vívidas nas memórias dos personagens centrais, o velho Berko Kotler e seu filho Leopoldo?
Berko, cujo acaso de ser um bom padeiro lhe possibilitou passar incólume por diversos campos de concentração, sintetiza inúmeros judeus que se envergonharam por ter sobrevivido ao Holocausto. Leopoldo, que passou três anos preso pelos militares argentinos sem nada ter feito de “errado”, repete a história do pai ao sofrer uma pena injusta. Homens comuns, sem nenhum tino para atos heróicos, ambos recebem a maior punição que um homem pode sofrer: a solidão. Após a libertação do campo de concentração, Berko conhece a fundo a “solidão da alma, uma sensação de abandono, de estar totalmente perdido em meio a um mundo devastado e inóspito” (p. 89). Leopoldo, em sua cela, compreendeu que “estava só. Completamente só”, apesar da proximidade de outros presos (p. 120).
Talvez aqui resida a primeira chave de compreensão desse romance estranho, que abriga simplicidade narrativa e complexidade de significados. O passar do tempo irrecorrível, que a tudo degrada e extingue, que a todos impinge dores e sofrimentos, tem no “estar junto do outro” um sucedâneo momentâneo. São várias as passagens que trazem esta questão à tona, mas a mais bonita em sua singeleza é a confraria “os músicos de Bremen”, apelido dado por Fany, mãe de Leopoldo, para o grupo formado por seu esposo Berko e três amigos da comunidade judaica de Buenos Aires – Schmulik, Bergel e Meilech –, que se reúnem cotidianamente para passar o tempo. “Quem sabe se essa relação sólida construída ao longo do tempo não será capaz de afugentar toda a tristeza da vida? Ainda que seja por meia hora a cada dia, regada a vodca e bialys quentinhos?” (p. 76). Outra passagem, que tem Leopoldo e sua aluna Bia – uma militante política de esquerda – como protagonistas, ilustra a importância do “estar junto do outro” como resistência ao passar do tempo devorador. Após tórrido ato sexual, Leopoldo afirma que era “como se precisássemos extrair todo o possível daqueles momentos, como se me jogassem na cara todo o tempo a evidência da impermanência das coisas” (p. 100).
É nessa cifra da simplicidade da vida que se insere o bialy, um pão típico da comunidade judaica de Bialystok, no interior da Polônia. Berko faz parte de uma dinastia de padeiros que transmite há pelo menos cinco gerações, de pai para filho, o segredo do preparo do pão típico. Leopoldo, professor universitário antes da prisão, foi distanciado da profissão pela mãe, que lhe desejava um futuro afastado dos fornos e do cotidiano entediante do ofício. Com o desenrolar das ações e sua reaproximação do pai, sente-se culpado, como se “tivesse rompido um elo, interrompido uma corrente” (p. 40). Em outro momento, afirma categórico: “eu quebrei esse elo, essa cadeia” (p. 115). Esta é uma segunda chave de entendimento do romance: a importância fundamental da transmissão do legado cultural pela filiação (inclusive dos nomes, com os Leopoldos e Fanys que se repetem através das gerações), uma questão compartilhada com a humanidade em geral, sempre convulsionada por cataclismos naturais ou humanos, mas especialmente significativa para um povo fadado à diáspora. “Na terra nova de cada um, os filhos nem falam mais a mesma língua que os pais” (p. 80).
Já está mais do que hora de mencionar que Leopoldo, o professor universitário, é o narrador do livro. Como aquele que acompanha o raciocínio até aqui pode supor, este não é um fato corriqueiro; Leopoldo Kotler não é um narrador qualquer. No início se engaja na aventura do pai – que resolve voltar à cidade natal – por obrigação, quase a contragosto. O papel que se atribui, de registrar o desenvolvimento dos fatos, é condizente com sua formação universitária, mas ele só se descobre como um narrador adequado quando compreende a fundo as motivações do pai, um sobrevivente que havia se refugiado no acolhedor calor do seu forno de pães. Despertado para a vida pelo falecimento da esposa – caro leitor, não fique preocupado, essa informação não vai lhe tirar o prazer da leitura! –, o velho Berko assume para si um compromisso: “aquilo que ele jurou jamais fazer, voltar à Polônia, tornou-se, de repente, uma obrigação” (p. 34). Confessa a si próprio e aos outros: “Eu fiz minha obrigação, fiz o que precisava ser feito há muito tempo, uma mitzvá” (p. 30). Apartado da transmissão do ofício, Leopoldo descobre na narrativa a possibilidade de pertencimento e assume para si o motivo dado pelo pai para seus atos radicais: “pelos que vieram antes de nós, e para os que virão depois” (p. 30).
Leopoldo se habilita também a compreender a ambígua relação entre memória e esquecimento. Para aqueles que sofreram na própria pele e/ou na profundeza da alma a maldade humana em estado puro entendem o papel terapêutico da amnésia (2). “Nunca entendi quando ele dizia que colocar ‘as mãos na massa’ lhe causava uma sensação de esquecimento” (p. 72), afirma em um primeiro momento o filho, para depois, com clarividência, constatar: “suportar martírios terríveis e esquecer o que foi vivido para preservar sua sanidade” (p. 88). Portanto, o papel do narrador não é contar tudo, sem critério, em uma espécie de celebração inconseqüente da verdade a qualquer custo. O narrador muitas vezes deve saber silenciar diante das forças instransponíveis que negam a vida. Narrar é transmitir uma herança, legar ao futuro um sentido para a vida, uma razão de existir.
Esta constatação que chega o leitor durante a leitura o coloca diretamente em contato com os autores do romance, que agrupam suas experiências e as acomodam em uma história com começo, meio e fim, mas que são movidos por uma intenção maior: demonstrar a importância da vivência e de sua transmissão pela narrativa. Recorto um trecho maior, para que não se perca a beleza da passagem e para que o próprio texto comprove minhas afirmações:
“Não lembro exatamente o quanto contei a Claudine dessa história toda, quais os trechos mencionados, a quantidade de detalhes e a qualidade das descrições, mas é como se ali mesmo eu entendesse que de algum modo aquela era a minha história também, uma herança que me impregnava cada vez mais profundamente e talvez de uma forma definitiva. Espero que um dia você possa entender o que estou falando, sentir de verdade que esta história também é sua. É por isso que escrevo” (p. 91).
O “você” é Claudine, a repórter francesa que fará uma matéria sobre as peripécias do pai, mas pode ser um filho ainda inexistente ou mesmo você, caro leitor.
Sendo o já descrito papel da narrativa a terceira chave de compreensão deste romance, podemos passar para a quarta e última (mas, sem antes deixar de mencionar o óbvio: as chaves de leitura aqui apontadas são em grande medida imaginadas para abrir portas do meu próprio castelo; neste sentido, se explica por si só o fato de não ser abordada aqui a importância do idioma francês neste romance, afinal, não falo francês e nem de coisas que não sei).
Em um dado momento, ao descrever as carícias recebidas de Bia, sua amante, Leopoldo se expressa assim: “eu era um boneco que tinha acabado de receber o sopro divino” (p. 105). Ora, na tempestade que sopra do Paraíso não há ordem, bondade ou finalidade edificante. De onde então viria este “sopro divino”? Ao que tudo indica, ele brota da relação entre os homens movida pela bondade, mobilizada pelos valores da comunidade e do pertencimento. Leopoldo, ao reconhecer no pai a capacidade de produzir o “sopro divino” nas situações comezinhas do dia-a-dia, não só justifica o título do romance, mas também lhe dá a devida substância: “Esse jeito de assoprar era sua marca registrada, e era reconhecível em diversos momentos da nossa rotina. Assoprava meus machucados, quando eu era pequeno, e eu tinha a sensação de que era um sopro mágico, capaz de curar qualquer doença” (p. 73-74).
Como tudo o que é elevado e abstrato é convertido em prosaico e episódico neste romance, posso encerrar minhas considerações com a cena onde Berko, o Soprador, se encontra com Irena (ou Claudine, mas não vou explicar o motivo da duplicidade...), a repórter francesa, cena que sinaliza a crença no afeto, na fraternidade e na luta perene frente às forças desagregadoras da temporalidade:
“Tirando um bialy quentíssimo da assadeira com sua mão de dedos grossos, abriu-o ao meio, observou, assoprou com calma. Quando ia levar o primeiro pedaço à boca, Irena o interrompeu, triunfante, apanhando o pão antes que o velho o mordesse e dizendo celui-ci est à moi” (p. 133).
notas
1
BENJAMIN, Walter. Teses sobre a filosofia da História. In: KOTHE, Flávio R. (Org.). Walter Benjamin. Coleção Sociologia (direção de Florestan Fernandes). São Paulo, Ática, 1991, p. 159-160.
2
No registro específico do debate sobre o patrimônio construído, é muito interessante a defesa do esquecimento presente no seguinte artigo: SANTOS, Cecília Rodrigues dos; MARQUES, Sonia. Maldita memória. Sobre a tirania da memorização e os anacronismos de um patrimônio refém. Arquitextos, São Paulo, ano 15, n. 175.00, Vitruvius, dez. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/15.175/5373>.
sobre o autor
Abilio Guerra é arquiteto (PUC-Campinas), mestre e doutor em História pelo (IFCH Unicamp) e professor da FAU Mackenzie. Com Silvana Romano, é editor da Romano Guerra Editora e do Portal Vitruvius. É co-autor de Rino Levi – arquitetura e cidade (com Renato Anelli e Nelson Kon), autor de O primitivismo em Mario de Andrade, Oswald de Andrade e Raul Bopp e organizador dos Textos fundamentais sobre historia da arquitetura moderna brasileira (Romano Guerra, 2001, 2010 e 2010).