Se partirmos do pressuposto que a arquitetura é uma representação do tempo e da cultura, a erudita demonstração de Antoine Picon no seu penúltimo livro, publicado em 2013 – Ornament. The Politics of Architecture and Subjectivity – é exemplar, pois ele trata da “volta” singular do ornamento na arquitetura contemporânea inserindo-a nos avanços da tecnologia digital e convocando comparações para ressaltar as diferenças com o ornamento tradicional. A reinterpretação ou a inventividade ornamental do presente, em obra de arquitetos como Herzog & de Meuron, Sauerbruch Hutton, Farshid Moussavi (pioneiro em pesquisas sobre o tema), e de tantos outros citados no livro (e não citados como Rudy Ricciotti, MuCEM), decorre não apenas da importância crescente das texturas e padrões de uma geometria complexa que a manipulação de programas de design computadorizado permite hoje, mas de novas opções de políticas e subjetividades públicas ou individuais que marcam o mundo globalizado, dominado pela comunicação.
O texto denso e claro (168 páginas) de Antoine Picon, fruto da reflexão madura de um intelectual prolífico, aflora em múltiplas remissões que comprovam um conhecimento antológico e familiarizado com momentos da tradição histórica da arquitetura e das demais artes – texto que se associa a mais de uma centena de imagens explicadas em legendas inteligentes que dialogam em quase todas as páginas, reforçando a argumentação sólida sobre tema incomum, que se apóia em referências bibliográficas especificas e estimulantes. Como hoje os temas de pesquisa evoluem mais rapidamente que os conceitos criados para explicá-los, o pesquisador precisa estar atento e aberto para enfrentá-los, e passar aos alunos-arquitetos os instrumentos para compreendê-los.
Não se pode mais pensar o ornamento nos termos das antologias tradicionais, sem levar em conta a reflexão sobre suas acepções na contemporaneidade.Em 2010, Antoine Picon já havia lançado o livro Culture numérique et architecture: une introduction (que também conta com uma versão em inglês), introduzindo a discussão sobre o impacto das técnicas digitais na arquitetura e na cidade, a emergência e a experimentação de novas formas, graças ao computador (1). Abro um parêntese para ressaltar que a contemporaneidade na cidade e na arquitetura fascina este professor há um bom tempo, basta pensar em outro livro seu, La ville territoire des cyborgs, publicado em 1998.
Para muitos estudiosos Antoine Picon não precisa ser apresentado. Ele veio ao Brasil pela primeira vez em 1996, em jornada de estudos que organizei na FAU-USP no âmbito da exposição internacional, “Belo Horizonte, o nascimento de uma capital” (MASP), que resultou na coletânea Cidades Capitais do século XIX. Racionalidade, cosmopolitismo e transferência de modelos, organizada por mim e editada pela Edusp (2001). Na ocasião, refletíamos juntos sobre o século 19, sobre o haussmannismo, sua difusão, ou as condições de possibilidade de transferência e transformação de ideários e “modelos” arquiteturais, debruçando-nos nas leituras dos sansimonianos – tema que fascinou nossa turma na École des Hautes Études en Sciences Sociales no final dos anos 80 e inicio dos 90, quando fomos colegas –, e sobre os quais ele escreveria um livro de referência anos depois: Les saint-simoniens. Raison, imaginaire et utopie (2002).
Tivemos outras oportunidades acadêmicas de dialogar com Antoine Picon em São Paulo no final dos anos 1990 (Escola Politécnica), em Campinas (em colóquio internacional na PUC-Campinas) quando tratamos da “circulação de modelos urbanísticos e as transferências culturais entre Europa e Américas”, e, em 1999, no Congresso Internacional Paisagem e Arte (CBHA), cuja coletânea que organizei inclui um texto inédito de sua autoria sobre a paisagem da cidade contemporânea (2). Nessas ocasiões, Picon já alertava que estávamos entrando em uma nova era urbana e arquitetural que suscitaria uma redefinição de conceitos e categorias. Ao deixar a França para ensinar nos Estados Unidos, ele passaria a propor essas inovações metodológicas e temáticas em seus cursos na Graduate School of Design de Harvard.
Mais conhecido no Brasil por um dos seus primeiros livros, Architectes et Ingénieurs au siècle des Lumières (1988), muitas vezes citado aqui em teses, ou pelo dicionário monumental que acompanhou sua exposição no Centre Georges Pompidou, L’art de l’ingénier. Constructeur, entrepreneur, inventeur (1997), Antoine Picon, engenheiro-arquiteto pela École Polytecnique (Paris) e doutor em História pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, em 1991, tem nos brindado desde então com uma série de obras e artigos sobre a história da arquitetura e do urbanismo, as relações entre mudanças científicas e técnicas e as transformações da arquitetura e da cidade. Atualmente de volta a Paris (onde é pesquisador na École des Ponts et Chaussées e diretor da Fondation Le Corbusier), ele divide seu tempo com permanências em Harvard, onde continua a co-dirigir o programa de doutorado em arquitetura e urbanismo na famosa escola americana, além de ocupar o cargo de GWare Travelstead Professor of the History of Architecture and Technology. Feita esta introdução rápida a um dos historiadores da arquitetura mais produtivos da atualidade, voltemos à apresentação de seu livro sobre o ornamento na arquitetura contemporânea.
O livro contém quatro capítulos, cujos títulos falam por si sós de sua importância e do interesse do conteúdo discutido desde a Introdução, sob um título-questão instigante, “Arquitetura como ornamento?” – nela, o autor apresenta duas questões: a superação da relutância e da desconfiança do Modernismo em reconhecer o caráter crucial do ornamento na arquitetura e o indiscutível papel e difusão das ferramentas digitais na profissão do arquiteto – os softwares possibilitaram o jogo com texturas, cores e padrões altamente decorativos; reconhece, porém, tanto a complexidade desta evolução quanto o futuro da disciplina e da profissão, já que limites e posturas tradicionais vêem sendo ultrapassados. Por exemplo: a cultura digital trouxe importância à superfície, ao aspecto envoltório dos volumes, enquanto elementos estruturais adquirem caráter ornamental – o que é pura estrutura torna-se ornamento, como no estádio olímpico de Pequim (o chamado “Ninho de pássaro”, de Herzog & de Meuron, inaugurado em 2008), ou em obras em que o envelope parece importar mais do que a estrutura. É o caso do já “velho” Guggenheim de Bilbao (Frank Gehry, 1997), e de uma obra mais recente, que não entrou no livro em questão pois ainda não estava concluída, mas que Picon tem mencionado em palestras e entrevistas recentes: o MuCEM, Museu das Civilizações da Europa e do Mediterrâneo em Marselha (Rudy Ricciotti, 2013). Este museu é recoberto por uma espécie de renda de concreto vazado a efeito de paredes-moucharabieh, em que o pesado material dá a impressão de uma “pele superficial” que confere uma dimensão autônoma ao revestimento, anula a relação orgânica interior /exterior e cria visibilidades muito bem sucedidas do entorno da cidade e de seus monumentos.
O conteúdo do livro de Antoine Picon distribui-se em 4 partes todas amplamente ilustradas com exemplares da arquitetura de todas as épocas e da contemporânea, para mostrar que o que se entende hoje por ornamento é bem diferente das acepções dos períodos anteriores. O Capítulo 1 intitula-se “Um retorno problemático”, e se divide em três partes, que traduzo livremente do original em inglês: a) O revival do ornamento na arquitetura contemporânea; b) Texturas, modelos e topologia: um ornamento diferente; c) O subjetivo e o político. O Capítulo 2, “Ornamento de subjetividade”, desdobra-se em seis partes: a) O rosto da arquitetura; b) O arquiteto entre regras e invenção; c) Artistas, artesãos e a fabricação do ornamento; d) De clientes a observadores (passers by); e) Industrialização e impulso ornamental; f) O fantasma do ornamento. O Capitulo 3, “Políticas do Ornamento”, também apresenta três partes: a) Do econômico ao político; b) Comunicação e estilo; c) O poder da decoração arquitetural. O Capitulo 4, “Reinventando o significado do ornamento” fecha o livro, destacando: a) Novo tema arquitetural; b) Incertezas políticas; c) Significados e símbolos.
Sobre a referida “volta” do ornamento, Picon deixa bem claro: esta nada tem a ver com aquela “volta” que o pós-modernismo deu lugar; não se trata aqui de uma re-interpretação da tradição clássica, de “renascença”, mas de mutação inédita: consequência de uma revolução inimaginável há 30 anos atrás, a da instrumentação digital na prática do projeto que possibilitou entre outras coisas, a mudança do status do ornamento, tornando-o inseparável da superfície do edifício – o ornamento é a superfície e não mais o “suplemento”, ou o “acessório” execrado pelo modernismo (acepções hoje obsoletas graças às análises dos historiadores que revisaram o século 19 e a historiografia que o estigmatizava). Se o ornamento tradicional era localizado em certas partes (outra diferença fundamental), o ornamento na arquitetura contemporânea apresenta-se inseparável do envelope do edifício e, portanto, afigura-se indispensável, pois muitas vezes cobre toda a fachada: “a kind of global surface condition”, observa Picon ao responder sobre sua argumentação. Não se trata então de algo acrescentado, de “plumas no chapéu”, como ironizava Le Corbusier nos anos 1920, entre os modernos, que segundo Picon, não foram capazes de se comunicarem com o público, exporem a função de um edifício, ou seus significados institucionais.
O ornamento contemporâneo não é mais sinal de ranking social ou tem a ver com a compreensão imediata do seu papel simbólico, pois desligado da esfera de compreensão tradicional. Hoje, o ornamento que “volta” é um apelo ao prazer, à produção de efeitos que respondem à comunicação contemporânea, às novas subjetividades do observador, inaceitáveis no idealismo utópico dos modernistas e seus seguidores que queriam organizar o mundo à sua maneira. Antoine Picon observa que “o papel da arquitetura não é mudar o mundo, mas expressá-lo como ele é”.
Outras obras antecedem seu livro, embora em outras direções, conforme informa Picon: o livro de Farshid Moussavi e Michael Kubo, The Function of Ornament (3), Barcelona: Actar, 2006, confere importância a materiais e texturas como dimensões determinantes da arquitetura contemporânea, como se vê no estádio olímpico de Pequim já citado; a diferença é que esses autores negam qualquer simbolismo ao ornamento “globalizado”. Neste particular, Picon argumenta que no aeroporto de Djeddah (OMA, 2007), a referência à arquitetura árabe tradicional ou a citação de um passado cultural que lhe é próprio já era, porém, inegável (4). Observação que mostra a complexidade do emprego do novo ornamento, em que predominam “sensibilidades tecnológicas estruturantes e estruturadas”, e um “imaginário numérico de inovações arquiteturais”, a partir dos anos 1990.
Se antes o ornamento era exibido com as finalidades individuais de distinção, prestigio e hierarquia social, do puro deleite ao signo de status e riqueza, e como elemento de comunicação funcional, institucional, ou pleno de significados político-pedagógico em monumentos públicos (ligado à tradicional tríade vitruviana), hoje, o ornamento é indissociável das relações com a subjetividade, com a “sociedade ornamental altamente individualizada em que vivemos”, em que a comunicação pura e simples conta mais do que a mensagem (observação do autor em entrevista sobre o livro).
Ao longo das páginas deste livrinho denso, Antoine Picon nos dá uma lição magistral de cultura arquitetural e técnica para se compreender melhor tanto a complexidade histórica do ornamento, quanto seu significado paradoxal e onipresença atual. Este ornamento, inscrito nas sensibilidades perceptivas características da era digital é, sobretudo, inseparável das novas tecnologias que possibilitaram ao arquiteto jogar com texturas, padrões e tramas altamente decorativos, em resposta às aspirações subjetivas do observador do nosso tempo, que busca se comunicar mesmo sem ter uma mensagem explícita (5).
notas
1
Se antes o ornamento possuía um conteúdo escultural e simbólico, hoje, ligado diretamente à superfície, o ornamento é mais um envelope com motivos repetidos infinitamente do que uma decoração localizada, esculpida ou aplicada. Cf. PICON, Antoine. Culture numérique et architecture: une introduction, Basiléia, Birkhäuser, 2010, especialmente o capítulo “De la tectonique à l’ornement: vers une nouvelle matérialité”, quando ele apresenta a “reinvenção do ornamento”, tema central do livro a que estamos nos referindo nesta resenha.
2
Ver: PICON, Antoine. De la ruine à la rouille, les paysages de l’angoisse. In SALGUEIRO, Heliana Angotti (org.), Paisagem e arte. A invenção da natureza, a evolução do olhar. São Paulo, CBHA/CNPq/Fapesp, 2000.
3
Lembro que esse título já foi usado por estudiosos do século 19 como David Van Zanten e Win de Wit, no catálogo da exposição Louis Sullivan. The Fonction of Ornament em 1986. Apesar da originalidade de Sullivan ao estender o ornamento de terracota moldando superfícies inteiras de edifícios, a concepção era ainda presa ao papel escultural ou simbólico, localizado e tradicional do ornamento, embora industrializado. Sabe-se que o ornamento foi muitas vezes considerado “suspeito” ou “criminoso” – o século 19 foi o maior crítico de si mesmo e seu olhar negativo marcou a historiografia durante quase 100 anos, quando se passou a estudá-lo sem preconceitos nos anos 1980. Antoine Picon ressalta em seu livro algumas das diferenças entre esse e outros “impulsos” ornamentais do passado, em relação ao ornamento produzido na arquitetura contemporânea, fruto da instrumentação digital.
4
Ver a respeito, Robert Levit, “Contemporary ‘Ornament’: The Return of the Symbolic Repressed”, in Harvard Design Magazine, n. 28, primavera/verão 2008, p. 70-85.
5
Para saber mais: ver os seminários de Antoine Picon sobre Digital Technology and Architecture, gravados no You Tube, e a bibliografia do livro Ornament. The Politics of Architecture and Subjectivity, exemplar acessível em Wiley Online Library.
sobre a autora
Heliana Angotti-Salgueiro é historiadora da arquitetura e do urbanismo pela EHESS de Paris e possui livros e artigos publicados em várias áreas, como a história da arte, história urbana e história da fotografia moderna. Foi professora titular da Chaire Brésilienne en Sciences Sociales Sergio Buarque de Holanda (Maison des Sciences de l’Homme), e atualmente é pesquisadora com bolsa da CAPES junto ao PPG-AU da Universidade Presbiteriana Mackenzie.