Parece pouco usual um arquiteto fazer a resenha de um filme. Menos usual é um arquiteto não fazer resenha alguma. Há dois anos, o filme Flores raras, de Bruno Barreto, recebeu críticas de alguns arquitetos por ilustrar a Residência Edmundo Cavanelas (1954), de Oscar Niemeyer, e o Parque do Flamengo (1965), de Affonso Reidy, como obras de autoria da arquiteta Lota de Macedo Soares – protagonista da história – dentre outras quimeras, e com isso propagar certa incultura; um dos relatos “Fatos raros: quando a ficção não é melhor que a realidade” (1), de Kykah Bernardes, pode ser lido neste portal. Naquela ocasião, em artigo ao Jornal O Globo e posteriormente republicado no Vitruvius (2), o arquiteto Alfredo Britto lamentou que a produção cinematográfica do filme estimulasse a desinformação da platéia e faltasse com as devida consideração a seus parceiros culturais da arquitetura e urbanismo.
Obra não parte de nenhuma idiossincrasia do tipo. Pelo contrário, não fosse a excessiva exposição publicitária nos ambientes da arquitetura, provavelmente não suscitaria nem mesmo esta menção. Contudo, esta mesma intenção de um público cativo é que admite sua ponderação com naturalidade. O critério para que o filme fosse amplamente divulgado no meio da arquitetura é seu título – Obra –, e a história do arquiteto taciturno, João Carlos.
Na verdade, a contribuição do filme para a arquitetura é avessa ao que sua produção pensa ter concebido. Embora repleto de marcos arquitetônicos – para o ânimo dos arquitetos devotos –, a fotografia do filme é tão original quanto a imagem em preto e branco de um mendigo dormindo numa calçada do centro de São Paulo. Sangue diluíndo-se numa bacia d’água, elevadores em ascensão, imagens de ressonância magnética, são os intervalos entre uma fachada e outra, e o desejo ao fotogênico, em detrimento da própria coesão da montagem – imagens que não complementam, mas são belas. Vazias, mas belas. Chavões, mas belas. Um belo ensaio fotográfico de São Paulo.
A real contribuição é o personagem principal, um tipo típico no meio da arquitetura: um homem angustiado mas totalmente inativo frente aos problemas. Arquiteto, filho de arquiteto, neto de arquiteto. João Carlos, ao se deparar com uma ossada num antigo terreno de sua família, busca todos os subterfúgios que não a solução. A soberba do arquiteto é gasta toda na primeira cena quando proclama um dos maiores bordões de Charles Jencks sobre o fim do movimento moderno. A cena só perde em banalidade para quando a esposa inglesa balbucia a palavra sa-u-da-de deitada na cama.
Obra expõe a história de um homem na margem de nosso interesse, retrata um ser humano real que esperançosamente deveria ser fictício, pelo menos na cidade contempoânea. Resta a dúvida se a produção é consciente disso, ou se flerta com ele, sendo o próprio reflexo dessa circunstância enfadonhamente mimada do personagem.
Se fossemos classificar o filme dentro de um estilo arquitetônico, seria um exemplar neoclássico. A colagem de vontades fotográficas e narrativas – dor nas costas, mulher grávida, uma igreja em restauro, escolha do nome do bebê, avô a beira da morte –, não revelam a estrutura da história, nem a reforçam. As imagens-ornamento custam fazer superar sua construção técnica. De fato é um suspense; a audiência aguarda pelo momento em que o filme fará sentido, se condensará. E mesmo com o nascimento de um bebê no final da história, todos custam a deixar a sala de cinema. A um passo do Belas Artes, respira-se tranquilo – a São Paulo dinâmica.
notas
NE – O presente texto é uma resenha do filme Obra, direção de Gregório Graziosi, ficção, pb, 80’, Brasil, 2014.
1
BERNARDES, Kykah. Fatos raros. Quando a ficção não é melhor que a realidade. Drops, São Paulo, ano 14, n. 073.01, Vitruvius, out. 2013 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/14.073/4891>.
2
BRITTO, Alfredo. Flores raras e equívocas. O Globo, Rio de Janeiro, 07 set. 2013. Republicação: BRITTO, Alfredo. Flores raras e equívocas. Drops, São Paulo, ano 14, n. 072.02, Vitruvius, set. 2013 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/14.072/4864>.
sobre o autor
Felipe SS Rodrigues é arquiteto e urbanista. Colaborou com Rem Koolhaas no OMA de Roterdão (2013) e com o arquiteto Isay Weinfeld (2011). Fez intercâmbio na New Jersey Institute of Technology, em Nova Jersey (2012), e no Pratt Institute em Nova Iorque (2013).