Your browser is out-of-date.

In order to have a more interesting navigation, we suggest upgrading your browser, clicking in one of the following links.
All browsers are free and easy to install.

 
  • in vitruvius
    • in magazines
    • in journal
  • \/
  •  

research

magazines

reviews online ISSN 2175-6694


abstracts

português
O filme Que horas ela volta?, de Anna Muylaert, revela de forma crua as relações brutalmente desiguais entre patrões e empregados domésticos na realidade brasileira.

how to quote

GUERRA, Abilio. A piscina e a laje. Sobre o filme Que horas ela volta?, de Anna Muylaert. Resenhas Online, São Paulo, ano 14, n. 165.05, Vitruvius, set. 2015 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/14.165/5712>.


O filme Que horas ela volta?, roteiro e direção de Anna Muylaert, está obtendo surpreendente sucesso de público, após ser muito bem acolhido pela crítica e pelo circuito de mostras – abocanhou prêmios nos festivais de Berlim e Sundance, e representará o Brasil na disputa de melhor filme estrangeiro no próximo Oscar. A apreensão mais imediata do filme é a presença recorrente de par de opostos: o rico e o pobre, o culto e o popular, a sala e a cozinha, a piscina e a laje. Visto assim, o filme expressa uma certa pobreza de recursos conceituais e chega a incomodar por situações e personagens estereotipados, que parecem cumprir exclusivamente suas funções narrativas, sem muita profundidade psicológica ou ambiguidades nos atos e valores. Assim, a falsidade de “Dona Bárbara”, a patroa enérgica e controladora, ou a impotência psíquica de “Seu Carlos”, o frustrado e decadente marido, características que vão se revelando de forma previsível na evolução da história, aparecem como elementos narrativos cuja única finalidade é dar suporte à ingenuidade crédula de Val, a empregada dedicada que ofertou seus melhores anos para a vida da família alheia (situação que emblematicamente se revela na relação carinhosa que mantém com Fabinho, filho do casal do qual foi babá desde pequeno, e no vínculo frouxo com sua própria filha, que cresceu longe dela).

Cena do filme Que horas ela volta?
Foto Aline Arruda [divulgação]

A rotina da família abastada e de sua casa no Morumbi – onde Val “é praticamente da família”, segundo a patroa –, vai ser alterada com a chegada inesperada da filha da empregada. Jéssica sai de sua terra natal, Pernambuco, e vem para São Paulo prestar vestibular e ficará alojada no pequeno quarto da mãe, com autorização dos patrões. A moça quer ser arquiteta e, para surpresa da família moradora no Morumbi – e da maior parte do público –, deseja cursar a FAU USP, a mais importante escola de arquitetura do país. Confiante e engajada, encantadora e um pouquinho arrogante, Jéssica recusa o papel submisso que a circunstância lhe impõe, ocupando involuntariamente o papel de elemento desestabilizador – a “peripécia” aristotélica –, que romperá com a estabilidade inicial, garantida pela narcotizante alienação de Val, e empurrará a trama e a personagem central para uma superação, ou conscientização, para usarmos um termo mais engajado. Podemos dizer que trata-se da epiderme do filme, que funciona inclusive como “escada” para as graças que levam o público ao riso e a uma certa descontração. Contudo, há muitas outras formas de se abordar o filme, escapando da armadilha de entende-lo exclusivamente sob uma ótica imediatamente realista – e escamoteada – da realidade social.

Cena do filme Que horas ela volta?
Foto Aline Arruda [divulgação]

A dimensão histórica e sociológica pode ser a primeira ferramenta interpretativa a ser convocada, pois é ela que dá o suporte para a mencionada “pele”. Está ali, no subtexto, os grandes intérpretes do Brasil. De Gilberto Freyre temos Casa Grande & Senzala, mas também, e mais forte, Sobrados & Mocambos. De Sérgio Buarque de Holanda temos Raízes do Brasil. De Raymundo Faoro, Os donos de poder. De Caio Prado Júnior, Formação do Brasil Contemporâneo. Em síntese, a escravidão do Império, que acabou anteontem, legou à República uma sociedade de base patriarcal fundada nos laços de favor, com grande aversão às estruturas abstratas do estado moderno. Uma construção estamental, pouco permeável, onde códigos não impressos valem mais do que leis e regulamentos. As camadas populares, sem acesso a direitos universais, têm sua sobrevida garantida pelos desígnios dos indivíduos da elite, servindo-os de forma irrestrita dentro de uma relação fundada na intersubjetividade, cujos limites são dados pelos desejos e vontades dos patrões (1).

Cena do filme Que horas ela volta?
Foto Aline Arruda [divulgação]

E, como todos nós sempre soubemos, dentro das responsabilidades dos empregados domésticos do sexo feminino estão inclusos, obviamente, serviços sexuais. Este Brasil brasileiro, diagnosticado nos anos 1930 e 1940, não teve seu prazo de validade expirado, como o filme nos faz questão de lembrar a cada cena. Por ser óbvia a situação, não prejudicará em nada o prazer (ou desprazer) de quem ainda não assistiu o filme descrever aqui parte da cena onde, de forma magistral, a diretora anuncia o que virá (mas que não necessariamente será o que o leitor estará logo mais imaginando...). Como o silêncio que antecede as guerras nas narrativas épicas, o convite da família para a Jéssica conhecer a piscina se converte em uma cena memorável, onde se apresenta a tensão que se instalará de ora em diante. Pai e filho, ondulando em torno da jovem no auge de sua formosura, como dois animais demarcando o território e conduzindo a presa para o lugar do abate, é de uma carga erótica quase obscena. Os risos nervosos incontidos da plateia sinalizam que Anna Muylaert cravou seu punhal com destreza de expert.

Cena do filme Que horas ela volta?
Foto Aline Arruda [divulgação]

Mas estamos falando de um filme, de uma obra de arte, não de um tratado sociológico ou antropológico. Se por um lado a condição social é o conteúdo difuso, por outro ele se revela na trama vivida pelos poucos personagens em cena; e é justamente na forma de contar a história que se encontra o maior mérito do filme. Antes de avançar nesse sentido, seria bom antes situar de onde se narra. Mesmo que aderente e solidária à protagonista – a empregada doméstica Val –, a história é contada do ponto de vista dos patrões. Há alguma semelhança com o documentário Santiago, de João Sales, que ao contar a vida do seu personagem, o mordomo argentino que passou décadas servindo a família, abre espaço para tratar dos traumas oriundos da opressão dos qual ele, o diretor, é partícipe. Ou seja, no discurso de Salles, oriundo das classes dominantes, se vislumbra um pedido de perdão. Sendo quem é, a catarse provocada no público é muito limitada, afinal é raro ter dois cineastas na família, mas é muito mais raro ainda dois filhos de banqueiro se tornarem cineastas. O “me desculpe” de Anna Muylaert é mais efetivo, pois ela fala a partir e para extratos médios das classes dominantes – fala para “os seus”, público maior das salas de cinema no país – e é quase impossível não se identificar com ela, nem que seja de forma retórica. Se há algum espaço para falsidades, que evaporarão rapidamente nestes tempos de memória curta e calor intenso, há também um aporte de enorme importância: conforme nos ensina Elias Canetti em Massa e poder, a única forma de se redimir do aguilhão que enfiamos no peito de nossos adversários é retirando-os. Do ponto de vista da luta de classes, significa assumir as mazelas que foram feitas por nossa própria classe social e não se esconder por detrás do argumento de que se trata de passado, coisa de gente morta. Evidente subterfúgio, tal discurso, que se envereda pela meritocracia, acaba se confrontando com as políticas públicas de inclusão social (2). Assim, Que horas ela volta? não é apenas uma manifestação de solidariedade ao discurso de justiça social, pois o lugar de onde se narra apresenta de forma corajosa o assumir a culpa pela opressão (3).

Cena do filme Que horas ela volta?
Foto Aline Arruda [divulgação]

O balcão panóptico

A forma de expressão do filme é muito elaborada e se sustenta por um rígido controle do que é visto pela plateia. Anna Muylaert é muito cruel, pois recusa mostrar ao público o que os personagens estão vendo. Assim, quem está sentado na cadeira do cinema, em alguns momentos vê menos do que a empregada quando ela se esconde por detrás da parede para ouvir conversas dos patrões. Tal economia tem ao menos um motivo importante: impedir que as tomadas de vistas interessantes, seja da cidade, seja da casa burguesa, se transformem em apaziguamento dos conflitos. Com esta obliteração do olhar – que vê parcialmente o que está ocorrendo, uma técnica que se apoia na sinédoque, figura da retórica clássica, que abarca o todo pela parte –, o filme poderia ser classificado como “suspense”, onde o expectador fica o tempo todo sobressaltado, a espera da aparição do que é sugerido pelas situações e falas dos personagens. É um filme que se assiste embalado por um mal-estar contínuo e constante, onde a diretora não nos dá nenhuma colher de chá: com precisão cirúrgica, nos obriga ao incômodo permanente, nos faz sentir um amargor que perdura após o final da projeção (o que justifica, nos parece, o “não gostei do filme” mencionado por parte da assistência).

Cena do filme Que horas ela volta?
Foto Aline Arruda [divulgação]

As “cenas urbanas” do filme são reguladas por esse princípio da escassez. A câmera registra a ansiedade de Val tentando descobrir no desembarque do aeroporto a filha que não via há anos, ou então mãe e filha dentro do ônibus enquanto ele trafega junto ao rio Tietê. Não se vê nem a multidão do aeroporto, muito menos o rio e suas pistas expressas. Ganha especial importância a passagem do veículo pelo Largo da Batata, quando a protagonista diz não saber mais o que é aquele espaço imenso integralmente pavimentado, que tomou o lugar dos festivos encontros da comunidade nordestina. Aquilo que os sociólogos chamam de gentrificação – a expulsão das comunidades mais pobres com a justificativa de “revitalização” ou “reabilitação” urbanas – é o contraponto da fala nostálgica da empregada doméstica, que só vai encontrar o lugar de encontros e diversões equivalente na periferia da cidade. O Largo da Batata como espaço da memória afetiva aparece na fala de Val, mas o espaço urbano real, aquele que foi pavimentado pelas forças do capital, não nos é mostrado. E, em uma das cenas mais fortes do filme – que acontece dentro de um apartamento vazio no Copan – a jovem vestibulanda olha extasiada para os “edifícios que não acabam” do centro da cidade, mas a câmera registra a cena interna, onde o “Seu Carlos”, patrão de sua mãe, se mostra mais interessado em “paisagens” mais próximas e sensuais. Do lado de fora, enquadrado pelas lâminas do brise-soleil da edificação, vislumbra-se apenas um pequeno recorte da metrópole.

Cena do filme Que horas ela volta?
Foto Aline Arruda [divulgação]

Mas é o ambiente doméstico que se converterá no espaço de conflito. Os cômodos da casa – salas, quartos, corredores, área de lazer e fundamentalmente a cozinha, em geral apresentados de forma parcial – e os mobiliários e equipamentos ali instalados – mesas, geladeiras, sofás, camas e piscina – são convertidos em trincheiras da guerra desigual que vai ser travada entre os protagonistas. Sentar na cama ou à mesa interditada, comer a guloseima proibida, entrar no espaço indevido, servir o café aos convidados da festa com xícaras inadequadas, qualquer uma dessas ações pode desencadear reações de enorme violência moral por parte dos patrões. Ao ver a filha sentada ao lado do patrão na mesa de jantar, Val sussurra para Edna, a faxineira: “Onde já se viu a filha da empregada sentar na mesa dos patrões?” O conflito se estende para dentro da trincheira mais desguarnecida: à afirmação da filha – “Não sei onde tu aprendeu estas coisas de ficar falando não pode isso não pode aquilo” –, Val retruca com sua visão submissa: “Isso não precisa explicar; as pessoas já nascem sabendo o que pode e o que não pode”.

Cena do filme Que horas ela volta?
Foto Aline Arruda [divulgação]

A maior parte dos conflitos se dá na cozinha, espaço do trabalho, onde se desenha de maneira cada vez mais clara a fronteira entre as classes antagônicas. Contudo, de forma mais simbólica, os momentos cruciais do embate ocorrem na piscina, lugar do ócio exclusivo dos proprietários, onde os serviçais só adentram para limpar ou servir. O sítio sacro é controlado pelo balcão do quarto do casal, um espaço ambíguo, pois tanto pode ser tomado como uma alusão ao panóptico descrito por Foucault – a essência do controle está na introjeção da possibilidade ininterrupta de estar sendo vigiado –, como pode ser visto como a torre alta de onde são ordenadas as vontades do rei autoritário. É do balcão que a sentença definitiva será proferida por Seu Carlos e Dona Bárbara, e será na piscina que a subversão se manifestará de forma surpreendente. Os desdobramentos seguintes, até o fecho da narrativa, se originam ali.

Cena do filme Que horas ela volta?
Foto Aline Arruda [divulgação]

Na sequência final do filme ecoa um certo anacronismo, que revela o longo período de captação de recursos e viabilização econômica da aventura cinematográfica no Brasil. Claramente concebido e redigido no momento de desenvolvimento econômico e incorporação de contingentes mais pobres no mercado consumidor via políticas públicas do governo Lula, o roteiro sugere um final feliz que a crise atual não reitera. As novas possibilidades de engajamento no sistema produtivo se restringem cada vez mais, em velocidade avassaladora, fechando as possibilidades de emancipação social. Assim, as desculpas podem ficar isoladas e inoperantes diante da reparação histórica abortada. Fica no ar a pergunta retórica do meu amigo Renato Anelli ao terminar o filme: “será que as empregadas vão voltar para o quartinho?”

Cena do filme Que horas ela volta?
Foto Aline Arruda [divulgação]

E é justamente o quartinho que me permite os últimos comentários que envolvem a arquitetura, em especial a brasileira. Em nossa tradição, o quarto de empregada se localiza na parte menos nobre do casarão da família rica, em regra carente das qualidades ambientais dos outros cômodos, como Jéssica pôde observar na planta da residência. Do ponto de vista de uma jovem pobre, que quer ser arquiteta, ter o próprio “quarto” – sua casa ou sua “laje” – é uma questão vital, que se sobrepõe às outras necessidades. A presença de Vilanova Artigas, nesse sentido, paira o tempo todo quando a arquitetura surge no filme, de forma indireta quando o quarto de empregada é evocado – é de amplo conhecimento o quanto se preocupou com este tema em seus projetos residenciais – ou de forma direta, quando o edifício da FAU USP, por ele projetado é visitado pela vestibulanda. O sentido político destas presenças é dado no início do filme, quando Jéssica diz convicta que escolheu arquitetura por sua ação eficaz na transformação social. Resta aqui dizer, de forma melancólica, que após sua formatura a jovem arquiteta poderá conhecer o outro lado da profissão, a face negra, onde os laços de companheirismo entre arquitetos borram uma realidade horrível: a má remuneração e o trabalho informal.

Cena do filme Que horas ela volta?
Foto Aline Arruda [divulgação]

notas

NA – Ficha técnica do filme: Que horas ela volta? Roteiro e direção de Anna Muylaert. Produção de Gullane, Africa Filmes, Globo Filmes, Brasil, 2015, 1h51’. Com Regina Casé (Val), Camila Márdila (Jéssica), Michel Joelsas (Fabinho), Karine Teles (Bárbara), Lourenço Mutarelli (Carlos), Helena Albergaria (Edna), Luis Miranda (empregado) e Theo Werneck (motorista).

1
Uma recorrente interpretação equivocada apresenta o conceito de “homem cordial” proposto por Sérgio Buarque de Holanda como uma pessoa que aceita de forma passiva as ignomínias que sofre nas suas relações com a estrutura de poder. Contudo, o que o historiador aponta é algo muito diferente; segundo ele, a cordialidade é o sistema de relações organizado em torno da família patriarcal, onde favorecimentos e arbitrariedades não abrem espaço para valores pautados em relações abstratas entre iguais.

2
O discurso da meritocracia não passa batido na obra. Na primeira metade do filme, Anna Muylaert  nos leva crer que na relação do casal prevalece a bem sucedida Bárbara sobre o submisso marido Carlos, um artista frustrado, doente e deprimido. Contudo, a real situação é revelada em dois momentos distintos; no primeiro, em uma entrevista para um programa de TV de variedades, a resposta que a esposa dá para a pergunta sobre o que é estilo revela uma pessoa superficial e despreparada; no segundo, Carlos revela a Jéssica que ele sustenta a família com a herança recebida do pai. Ou seja, a boa vida da família é sustentada pela acumulação feita em outra geração, com a transmissão dos benefícios da exploração.

3
Em uma postagem no Facebook, Renato Anelli sugere uma aproximação da obra de Anna Muylaert com o filme inglês The Servant (Joseph Losey, 1963). A relação me parece muito sugestiva, em especial o componente psicológico presente no servilismo voluntário, tão estudado no quadro histórico europeu. Contudo, nas relações que aqui nos propusemos estabelecer, a base histórica é mais recente e remonta ao século 19 e ao modelo escravagista.

sobre o autor

Abilio Guerra é professor de graduação e pós-graduação da FAU Mackenzie e editor, com Silvana Romano Santos, do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora.

comments

165.05
abstracts
how to quote

languages

original: português

share

165

165.01

João Batista Vilanova Artigas, Curitiba, 1915-2015

Exposição “Nos pormenores um universo" no Museu Oscar Niemeyer

Giceli Portela

165.02

Catálogo de nada

Ou o que acontece entre pessoas, carros, ônibus e pombos

Ricardo Luis Silva

165.03

A beleza salvará o mundo?

O capitalismo artista e as descrições de um mundo estético

Thiago Barros

165.04

Obra

Um filme sob a ótica da arquitetura

Felipe SS Rodrigues

newspaper


© 2000–2024 Vitruvius
All rights reserved

The sources are always responsible for the accuracy of the information provided