Identidade brasileira é assunto recorrente. É natural que assim o seja dada a complexidade da nossa formação como povo e como cultura. O início do século 20 – principalmente as quatro décadas que antecederam a segunda guerra – viram uma produção intelectual intensa investir na tentativa de compreender, afinal, o que seria “brasileiro”. De Mário de Andrade a Sérgio Buarque de Holanda, das artes à política e à literatura, houve no período uma intensa convergência de ideias estimulada, em muito, pelas possibilidades de agregação e interação trazidas pela urbanização do país e pelas facilidades de conexão com o exterior. Este texto busca refletir sobre o pensamento de dois destes intelectuais: o arquiteto Lúcio Costa, e o cineasta Humberto Mauro. Tanto Lúcio quanto Mauro são pioneiros. Mas o são destituídos de qualquer caráter novidadeiro que possa ser adotado de forma superficial. Ambos lançam um olhar crítico, em maior ou menor medida erudito, mas sempre reflexivo sobre a identidade do país.
Formado em 1924 pela Escola Nacional de Belas Artes, Lúcio Costa “logo percebeu que a adoção de um estilo não bastava para resolver os problemas. [...] Enquanto muitos de seus colegas incorriam no erro de querer imitar fielmente os detalhes da arquitetura da época colonial, [...] ele tinha compreendido que era preciso não se ater à interpretação literal, mas procurar também encontrar o espírito que presidira ao nascimento dessa arquitetura colonial: ora, seu principal valor era o de ter trazido, principalmente para a construção civil, uma resposta satisfatória aos problemas decorrentes das necessidades da época” (1). É com esta mesma abordagem que Le Corbusier será recebido em sua segunda passagem pelo Brasil. Uma abordagem que atribui ao moderno, por um lado, a virtude dos meios disponíveis no tempo presente para solucionar problemas de ordem perene, mas por outro permite-se buscar na tradição respostas para questões novas. Trata-se de uma relação de meios e tempo, de disposição de um manancial de conhecimento, por assim dizer-se atemporal, dependente manifesto sempre em relação à contemporaneidade à qual está vinculado.
Lúcio “afirmava, na sua memória de 1936 sobre o projeto da Cidade Universitária do Rio de Janeiro, que as características internacionais do estilo moderno corbusiano podiam coexistir com traços locais manifestos sob a forma de particularidades de planta, elevação, materiais e detalhes” (2), e faz uso de alinhamentos e eixos vinculados à geometria e aos condicionantes do lugar em um projeto cuja matriz é moderna e inspirada no colega francês.
Esta autonomia em relação ao cânone dá-se em total alinhamento com sua visão de uma arquitetura brasileira, mas também é exemplar de sua visão acerca da própria modernidade e do espírito de seu tempo. Assim como o havia feito em relação ao neocolonial, negando-se a assumir valores de face como verdades absolutas, aqui também Lúcio parte de grandezas universais, manifestadas com suas condicionantes locais para manipular o fazer arquitetônico.
Humberto Mauro produziu, na Cataguases dos ano 1920, cinco filmes. Já no Rio de Janeiro, trabalhando para a Cinédia, realizou três filmes, dos quais ressalta-se Ganga Bruta como sua obra mais abrangente.
Segundo André Bazin, há, no cinema dos anos 1920 aos 1940, “diretores que acreditam na imagem e diretores que acreditam na realidade”. O trabalho de Mauro, com seus retratos de um “território imagético do pastoral, com suas recorrências ao mundo natural e ao universo rural” (3), busca ali a realidade de um Brasil em transformação. Uma realidade contraditória e complexa, que tem na sua base agrária, natural, a complementariedade necessária ao progresso urbano na formação de uma ideia abrangente da nação que se desenha no início do século 20.
O que Mauro representa nas telas como decadente não é o rural ou a natureza, é sim o arcaico, em um primeiro momento a estrutura social que insiste em não adequar-se ao moderno e progressista. Por outro lado nenhuma ressurreição moral ou virtuosa é garantida pelos avanços de uma sociedade progressista e urbana. Em última instância, “campo e cidade, natureza e progresso são territórios de conflitos antes de tudo humanos, em que o sujeito é dilacerado entre a permanência e a mudança” (4).
Para as lentes de Mauro, há uma realidade brasileira a partir da qual se pode estabelecer uma ideia de modernidade. Esta modernidade não se dá a partir de elementos importados ou copiados. Ela evolui, contraditória e complexa, formando uma identidade que entende urbano e natural como complementares e por vezes contraditórios. Se o filme Sangue Mineiro apresenta tomadas no interior do Solar de Monjope, de José Mariano Filho, não o é por alinhamento com o que Lucio chamaria de um “falso testemunho” (5), e sim por recurso de tipagem representativo daquele Brasil pregresso, de cuja tradição emerge o moderno.
O ciclo de Cataguases, exploratório e em si vinculado com a descoberta da técnica cinematografia pelos brasileiros, é pautado pela orientação de Adhemar Gonzaga, que através da Cinédia estabelece os parâmetros de filmagem e montagem. É Gonzaga quem insiste para que Mauro manipule a realidade filmada, que faça uso de tomadas sugestivas que definam uma nova possibilidade de leitura da realidade. Influenciado pelo cinema norte-americano, Gonzaga se aproxima do primeiro grupo enumerado por Bazin, entendendo a imagem como narrativa em si transformadora da realidade.
Humberto Mauro se apropria da técnica, refina sua narrativa, mas não concede a ela nenhuma dúvida entre o autêntico e o não autêntico, a constrói desde o que vê como real, não desde o que, externamente, poderia ser visto como ideal. Não abraça o novo mundo tido como civilizado – europeu ou norte-americano – e urbano, mas sim faz um retrato justamente do encontro entre o novo mundo mecânico e o natural.
Lucio Costa parte da tradição barroca e colonial brasileiras para fundamentar uma arquitetura moderna brasileira, e consequentemente apresentar uma leitura profunda do que poderia ser a própria identidade do país. Constrói, primeiramente durante o intervalo entre as duas visitas de Le Corbusier ao Brasil, e posteriormente como funcionário do Iphan e na sua produção de ofício, o que viria a ser uma atuação intelectual e prática transformadora e definidora dos destinos, tanto daquela mesma arquitetura, quanto da ideia de nação que se iniciava a estabelecer. Para Comas, “a opção estilística feita por Lúcio implica compreensão profunda das potencialidades instrumentais e representativas do vocabulário e sintaxe corbusianos, baliza para resolver a demanda da intelligentsia brasileira pela afirmação de modernidade assente na tradição e identidade nacional integrada à comunidade internacional. A afirmação de modernidade á assinalada pela opção mesma, a afirmação de nacionalidade é facilitada pela assimilação dos elementos corbusianos de arquitetura a elementos da arquitetura brasileira colonial. Em quatro obras fundamentais – Ministério e Pavilhão Brasileiro de Nova York em coautoria, em voo solo o Hotel de Friburgo e o Parque Guinle – Lúcio desenvolve e enriquece a gramática corbusiana delimitando um estilo brasileiro de arquitetura moderna” (6).
Humberto Mauro faz em Cataguases o esforço de filmar o Brasil. Registra sua natureza não como ferramenta retórica, mas sim como um retrato. Não insere o moderno e o progresso como reflexos de um futuro a se desejar, mas sim como parte de um realidade posta, que se conjuga ao natural para representar a própria contemporaneidade que se dispõe. Registra, processa e monta – o próprio processo fílmico – porém tratando de devolver ao plano do real uma narrativa que lhe seja um recorte apenas, que lhe sirva de base para a representação dos dramas humanos. Na natureza filmada, “há exuberância, mas ela não está a serviço apenas da beleza ou de um diferencial exótico nacional. [...] ao contrário, realiza ‘uma compreensão dos valores objetivos da paisagem física e social. Sendo entendimento e não êxtase frente à exuberante paisagem brasileira’” (7). Já os elementos urbanos – edifícios, automóveis, trens, usinas, movimento – vinculam-se à ideia de modernidade. Não como um elemento externo desejável ou refutável, mas como fato dado, naturalizado e imbuído de seus conflitos e contradições cujo juízo de mérito não denota simpatias apaixonadas, mas sim opção coerente face o que a própria realidade traz. Há progresso na natureza, ela não é vinculada ao arcaico. Há, também, uma naturalização da máquina, uma extensão e uma integração entre o campo e a cidade.
Lúcio e Mauro parecem compartilhar a mesma visão de Brasil, calcada em uma observação profunda e reflexiva tanto da tradição quanto do novo, não na importação ou na criação de uma realidade desejável, mas como uma resposta contemporânea para problemas contemporâneos. Na apropriação crítica de Le Corbusier por um, e na divergência com Adhemar de Barro, por outro, residem tanto o vínculo com as formas e estilos internacionais, quanto a afirmação de uma identidade própria. Eles viriam a convergir, talvez até se encontrar, no Ministério de Educação de Gustavo Capanema. Um como realizador do Instituto do Cinema Educativo de Roquette Pinto, o outro como chefe da equipe de projeto da própria sede do ministério e diretor do Iphan. Ambos engajados na preservação e na divulgação de um Brasil possível.
notas
1
BRUAND, Yves. Arquitetura contemporânea no Brasil. São Paulo, Perspectiva, 1991, p. 58.
2
COMAS, Carlos Eduardo Dias. Identidad nacional y caracterizacion arquitectonica. in AAVV. Modernidad y postmodernidad en America Latina. Bogotá, Escala, 1991, p. 35-40.
3
BAZIN André, 1975, p. 63. Apud SCHVARZMAN, Sheila. Humberto Mauro e as imagens do Brasil. São Paulo, Editora Unesp, 2004, p. 19.
4
ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1963, p. 29. Apud SCHVARZMAN, Sheila. Op. cit., p. 83.
5
“O Solar Monjope é um falso testemunho”, parecer de veto ao tombamento do Solar Monjope - Lúcio Costa, 1973, ata da 56ª reunião do Conselho Superior de Planejamento Urbano do Rio de Janeiro <www.jobim.org/lucio/handle/2010.3/3532>.
6
COMAS, Carlos Eduardo Dias. Da atualidade de seu pensamento. AU – Arquitetura e Urbanismo, São Paulo, n. 38, out./nov., 1991, p. 69.
7
ROCHA, Glauber. Op. cit., p. 29. Apud SCHVARZMAN, Sheila. Op. cit., p. 16.
sobre o autor
Luciano de Topin Ribeiro é arquiteto e urbanista (FAU Ritter dos Reis, 2000), mestre em Teoria, História e Crítica com a dissertação A utopia maquinista no urbanismo e no cinema : a construção de um discurso (Propar UFRGS, 2013). É professor de Projeto Arquitetônico FAU – UNESA e professor substituto da FAU UFRJ, ambas no Rio de Janeiro.