Brasília parece ocupar um espaço outro entre as cidades projetadas pelo Homem nos últimos séculos, sendo certo afirmar que poucos projetos de arquitetura no século 20 chamaram atenção do grande público como a nova capital brasileira. Após ampla divulgação, a imagem construída foi a de que o então país periférico abria alas à modernidade, agora com uma capital de acordo com seus desejos progressistas, o que ia na contramão histórica da ocupação de origem colonial e desbravava o interior do país (1). Dentro da disciplina arquitetônica, que trabalharia em grande medida com uma perspectiva inversa, a cidade manifestou uma série de percepções e análises, em grande parte vinculando sua formulação a uma lógica de Estado, apresentando os impasses da constituição da modernidade no Brasil. Mais de cinco décadas após sua inauguração a cidade é ainda dividida – os críticos e os que fazem apologia – e polemizada constantemente, o que justifica o desenvolvimento e a publicação de novos trabalhos sobre a mesma.
O livro organizado por Julio Katinsky e Alberto Xavier busca destrinchar os temas relacionados à nova capital, através da publicação de textos de diferentes autores escritos entre os anos de 1957 e 2010. O trabalho, publicado pela Cosac Naify (2), tem a perspectiva de acalorar a discussão crítica à cidade, complementar à outros livros do catálogo da editora que tem a arquitetura moderna e a própria cidade como tema.
Fugindo de artigos realizados unicamente por arquitetos e urbanistas, a seleção abre espaço para outros debatedores que contribuíram à discussão da nova cidade. De características diversas, os textos transitam entre várias possíveis interpretações a serem realizadas acerca de Brasília, considerando ainda o recorte de mais de cinco décadas de trabalho investigativo. Agradável surpresa é encontrar textos de Clarice Lispector, Gilberto Freyre, Milton Santos e Mário Pedrosa, com direito à fala do incentivador do empreendimento, o presidente Juscelino Kubitschek. Os textos de nossos grandes intelectuais e políticos, associados a pesquisadores respeitados por todo o país dão uma linha fértil de construção de debate.
Para além da utopia de uma cidade que objetivou manifestar o marco de um outro país em pleno desenvolvimento, Brasília é hoje em grande parte desencanto para a classe dos arquitetos. Primeiro (e mais óbvio), pela falência do projeto moderno. Em relato de grande sensibilidade, Clarice Lispector (p. 180) afirma suas impressões acerca da cidade: "Foi construída sem lugar para ratos. Toda uma parte nossa, a pior, exatamente a que tem horror de ratos, essa parte não tem lugar em Brasília. Eles quiseram negar que a gente não presta." E mais adiante "Aqui é o lugar onde meus crimes não seriam de amor." A cidade, planejada e distante de uma construção espacial que seja resultado de uma construção histórica no tempo, perde a dimensão humana, sempre necessária, descobriríamos poucos anos mais tarde.
É essencial mencionar que, como enfatizam alguns trabalhos, a arquitetura moderna formulada em Brasília já estava sendo revista na Europa. O momento da construção da nova capital do país é um espaço de intensa atividade cultural e ideológica em parte expressiva do planeta: "Na segunda metade dos anos 1950 e início dos anos 1960, o grupo de jovens arquitetos conhecido como Team X propunha uma clara reorientação na análise e no tratamento dos problemas urbanos, deslocando a ênfase da grande para a pequena escala" (3). Simultaneamente surgiam os situacionistas, reelaborando formas de apreensão urbana como a deriva e a psicogeografia (4). Por aqui, dávamos atenção ainda à lógicas construtivas dos CIAM, construindo uma cidade 'moderna' por excelência, onde os térreos livres, as grandes escalas, os elaborados eixos viários e a setorização urbana da cidade contribuíram para criar um espaço artificial, pobre como artefato e que pouco conforta e suporta atividades humanas. Essas interpretações seriam fundamentais para compreender, sob uma perspectiva, a dimensão do projeto Brasília e seu desmonte heroico a partir de uma análise dos desdobramentos da arquitetura moderna em contextos distintos dos existentes na América do Sul.
Outras interpretações também são possíveis e não tão óbvias assim, que interpreta o caso de Brasília dentro dos limites da disciplina no Brasil e a partir de um contexto histórico e social que é dado. A cidade que tinha como objetivo coroar um país novo, desconectado com lógicas originais do Brasil colônia portuguesa deixa transparecer, ironicamente, traços de subdesenvolvimento. Acaba "afinal se revelando a verdadeira capital de um país que em princípio ela deveria ajudar a subverter", afirma Otília Arantes (p. 343).
A apresentação do conjunto edificado de Brasília como um dispositivo simbólico (5) que apresenta um outro país, moderno, aparece em vários artigos presentes na publicação. E, de antemão, pode-se encabeçar comentários a respeito. Ultrapassando opiniões acerca do governo de Juscelino Kubitschek, fato é que, como observado por Prestes Maia no ensaio que abre a edição (p. 21), o desenvolvimento nacional se configura de forma plena através de investimentos intensos durante décadas em setores diversos da sociedade e da economia, que resultariam futuramente em um país socialmente mais equilibrado e mais afastado de problemas sociais. Brasília aparenta ter se desenhado como símbolo de um Estado empreendedor, interessado na construção de grandes obras que simbolizassem um período de governo.
Deve-se lembrar que a construção da capital marca um outro momento da arquitetura brasileira. Em um primeiro momento, o percurso trilhado por Lúcio Costa - que tem, como se sabe, o nome de Oscar Niemeyer como um dos mais eloquentes desdobramentos - se desvirtua em declínio. Nomes que participaram ativamente da construção da nova capital do país se tornariam arquitetos importantes nos debates da disciplina nas décadas seguintes e trabalhariam com hipóteses distintas das apresentadas por Lucio Costa e Oscar Niemeyer.
João Filgueiras Lima e o Grupo Arquitetura Nova, ambos arquitetos jovens na época da construção de Brasília, marcam a constituição de outras lógicas de projeto, já que a vivência nos canteiros da capital de Juscelino se apresentou como frustrante. Lelé, como é assim conhecido no meio profissional, deriva sua atividade para trabalhos onde a pré-fabricação seria a temática norteadora de todo o processo, desenvolvendo projetos que seriam destaque graças às inovadoras hipóteses construtivas desenvolvidas pelo arquiteto. A Arquietura Nova, igualmente inquieta com as condições de trabalho existente nos canteiros da capital desenvolverá trabalhos com uma dimensão oposta à existente em Brasília: abandonando uma crença cega pela tecnologia construtiva em concreto armado os arquitetos desenvolveriam nas décadas posteriores projetos próprios ao terceiro mundo, partindo de materiais utilizados nas mais comuns construções do país (6).
Esse recorte da arquitetura brasileira indica que a disciplina arquitetônica visualizou os impasses e as contradições de sua construção – nossa modernidade 'epidérmica' – ainda na vivência nos canteiros de obra. O relato de Aldo Paviani conforma esse descompasso estrutural do projeto Brasília, maturado e desenvolvido nas décadas posteriores de ocupação e desenvolvimento da cidade. Como observa (p. 429), 60% dos postos de trabalho se encontra no plano piloto, que detém apenas 8,17% da população. Restam 40% dos lugares para trabalhar para os demais núcleos urbanos, detentores de quase 92% dos habitantes do Distrito Federal. Brasília, definitivamente, não contribuiu para a construção de uma outra hipótese de cidade, que ultrapassasse grandes desenhos e perspectivas. O direito à cidade foi abandonado: a renda per capita dos moradores do plano piloto – elevada para os padrões brasileiros – é grosseiramente distante da totalidade dos habitantes do Distrito Federal (7). Colocar os socialmente menos favorecidos às margens de uma cidade que deveria ser o marco de um Brasil moderno é um dado que não pode ser ignorado.
O livro de Alberto Xavier e Julio Katinsky presenteia ainda o leitor com declarações inusitadas. Lina Bo Bardi (p. 136) reconhecendo os argumentos apresentados anteriormente, afirma: "É pobre, é lunar, é desesperadamente miserável, mas é a realidade de um país, e não se pode julgar Brasília, que representa um impulso de libertação de um grande país. [...] É feio, é errado em 'um sentido' - mas qual é o OUTRO sentido? Por que o juízo formalista prevalece sobre a avaliação justa, histórica e real, do esforço de uma humanidade que procura o seu caminho no mundo desencantado da realidade de hoje?" Para a surpresa de todos, Lina Bardi, que ao longo de sua trajetória profissional elaborou formulações de projeto distintas em absoluto da arquitetura heroica elaborada em Brasília nos faz essa pergunta pertinente por completo. Existe um sentido de impulso, de desejo, de ambição e de projeto que é necessário reconhecer no projeto Brasília, mesmo que as contradições permaneçam ainda latentes.
Buscando uma descrição do conjunto dos textos publicados, pode-se afirmar que a publicação apresenta um mosaico diverso das reflexões estabelecidas sobre a capital antes, durante e após sua construção. Sem apresentar um juízo de valor que seja absoluto, mas tendo em suas páginas as diversas versões do que foi dito sobre a nova capital do Brasil, se torna um dispositivo fundamental para aqueles que desejam adentrar nas discussões acerca de Brasília, encontrando outros percursos e possibilidades através de perspectivas críticas, oferecendo textos importantes para alçar vôo em outras atividades de pesquisa.
notas
1
Na apresentação de Milton Santos (p. 125), o Geógrafo lembra a expressão usual e otimista de seus idealizadores, que se referiam a cidade como 'uma imagem do Brasil do futuro'. E por ser a imagem de um novo país por vir, André Malraux (p. 53) a denomina 'capital da esperança'.
2
A editora divulgou recentemente que, para a infelicidade de inúmeros leitores, finalizará suas atividades no final do ano de 2015.
3
WISNIK, Guilherme. Apud BRAGA, Milton. O concurso de Brasília. São Paulo, Cosac Naify, 2010, p. 11.
4
Idem, ibidem.
5
O próprio desenho do plano piloto proposto por Lucio Costa reforça a idéia do simbólico e não estrutural do projeto de Juscelino, reforçado ainda mais intensamente pelo conjunto arquitetônico de Niemeyer. Algo mais simbólico de um país que anseia por um projeto modernizador (às avessas) do que um projeto urbano com uma forma semelhante a um avião, símbolo da modernidade tecnológica dos anos 1950? Ou, como no memorial do concurso, que traça um 'X' no solo como se demarcasse um território novo, recém descoberto e a ser feito do zero, um recomeço? Que contradição não se configura quando comparamos as condições reais de vida e trabalho dos construtores de seus inúmeros monumentos.
6
É importante também mencionar que uma geração de arquitetos, formada após Brasília, partiu da noção de uma função social da arquitetura como força principal, onde a FAU USP é seu palco estrutural. Em relatos de alunos do período é recorrente a lembrança de uma relação de estranhamento com relação à prática de projeto, considerando sua dimensão - em muitas vezes - polêmica e com categorias de transformação bastante limitadas.
7
Tornou-se recorrente afirmar que as cidades satélites de Brasília são semelhantes a qualquer outra periferia brasileira. É importante lembrar que as cidades brasileiras foram constituídas dentro de um amplo tempo histórico, livre de qualquer tipo de ambição ou de uma perspectiva de futuro clara e absoluta, como existiu com Brasília. A discrepância entre o plano piloto e as cidades informais que se desenvolveram ao seu redor se tornam gritantes e pertinentes, já que reproduz as lógicas de outras cidades do país e indica perspectivas de ruptura com as ambições transformadoras que estava no discurso de Brasília.
sobre o autor
Luiz Gustavo Sobral Fernandes é arquiteto e urbanista pelo Mackenzie e Graduando em Geografia pela Universidade de São Paulo.