Aviso do editor: a resenha contém “spoilers”, ou seja, revela fatos importantes e o próprio desfecho do filme resenhado, portanto não é adequada sua leitura aos que pretendem assistir o filme sem o prévio conhecimento da trama.
O último western de Quentin Tarantino, Os oito odiados (1), inicia-se com uma narrativa principal linear, que revela, como desenlace, a história que a antecede. Dá-se, assim, a trama do filme, estabelecida em seis capítulos, para 187 minutos, em que o exagero sempre esperado do diretor ou, no caso, seu exagero maior, sua hipérbole exemplar, acontece no desenlace da história, no interior do espaço de uma estação de diligências, com o envenenamento, pelo café, de duas personagens, numa sequência que confirma uma suspeita de Marquis Warren e John Ruth (caçadores de recompensas) desde sua chegada à estação: algo havia acontecido naquela estalagem em que chegaram, ao lado do cocheiro da diligência e uma prisioneira de Ruth, e encontraram hóspedes desconhecidos e posteriormente revelados como da gangue da prisioneira de John Ruth, Daisy.
A gangue lá aguardava o comboio para, a qualquer custo, resgatar Daisy Domergue. Embora Warren e Ruth suspeitassem do ambiente mudado no Armazém de Minnie, Warren, diferentemente de Ruth, analisou, seguida e solitariamente, toda a situação suspeita. O mesmo não se deu com Ruth e tal falha redundou em sua morte por envenenamento. Warren faz-se, também por isso, no porta-voz da narrativa de Os oito odiados: sagaz, com o senso do mistério que envolve o já acontecido e, ao mesmo tempo, mentiroso, inconfiável.
A hipérbole, o exagero, uma forma recorrente de Tarantino dialogar com seus espectadores, desta vez está, principalmente, na ingestão, por Ruth e o cocheiro, de um veneno e nos jorros de vômitos de sangue provocados pela substância nas vítimas até suas mortes. Tal hipérbole assenta a progressão final da narrativa, intensificando o que acontecia lentamente entre os capítulos, além de instalar a terceira espacialidade da história, a do porão da estalagem, lugar do mistério, pressuposto pela narrativa, local em que o chefe da gangue se encontra para desatar, em momento preciso, o nó da intriga – o resgate de sua irmã, a prisioneira de Ruth, que esteve ao lado do caçador de recompensas desde o primeiro capítulo.
Os primeiros capítulos apresentam, com magnitude, o espaço da viagem dos caçadores, de neve pesada, com tempestade anunciada, até a estação de troca da diligência, instantes em que os caçadores se conhecem, diante de um solto humor entre eles. Uma vez na estalagem, o movimento e a dificuldade da viagem pela neve pesada são trocados, em salão aquecido, pelos movimentos de olhares suspeitos, calados, entre viajantes e componentes da gangue que os esperavam para o ataque e resgate.
Os oito odiados trama uma narrativa cerrada, bem composta. Lemos no Dicionário de Fritz Lang: “A moral dos westerns: ela é muito simples. O western concebe da maneira mais simples os atores, os cenários, a luz, e tudo isso recai sobre seus filmes seguintes” (2).
Tarantino, certamente, de maneira constantemente confessa, aproxima situações de suas narrativas de situações já realizadas e presentes na história cinematográfica. John Ford, em No tempo das diligências e Legião invencível, respectivamente de 1939 e 1949 (3), mostrou para Tarantino como modular a câmera e filmar de modo distante ou próximo e em detalhes uma diligência, com pormenores do seu interior e exterior, de seus cavalos: suas ancas, cabeças e patas; mais, seu vigor, ainda quando extenuados (Warren e Chris, protagonistas de Tarantino, como Ringo, em No tempo das diligências, fizeram-se passageiros do comboio no curso da viagem). John Ford nunca deixou de atrelar em seus carroções ou diligências três juntas de dois cavalos, modelo seguido por Tarantino, que estabelece o mesmo para a diligência de Os oito odiados.
Ao lado disso, percebemos que No tempo das diligências, no momento em que interrompe, para descanso, a viagem, Ford reúne um mesmo clima de tensão durante a parada, num conflito entre humores e moralidades do grupo de viajantes que também já passou por uma nevasca (John Ford, de forma desbragada, confessou que tal situação, Dudley Nichols, seu roteirista, retirou do conto Bola de sebo, de Guy de Maupassant).
No western, a paisagem, lembrando-nos das observações de Fritz Lang, é um lugar de imagens que encenam atos com clareza moral: de aventura, coragem, força; os espaços internos ficam reservados para a encenação da surpresa e do mistério. No último western de Tarantino, a surpresa surgida do sótão do Armazém de Minnie derrotou o mais bem construído entre oito detestáveis anti-heróis do diretor norte-americano: o major Marquis Warren que, de forma atrevida e abusada, descobrira, mediante mudas observações, quase toda a história que envolvera o desaparecimento de Minnie e seus familiares.
notas
1
Os oito odiados (“The Hateful Eight”). Roteiro e direção de Quentin Tarantino. Com Samuel Lee Jackson, Kurt Russell, Jennifer Jason Leigh, Walton Goggins, Michael Madsen, Tim Roth, Demian Bichir e Bruce Dern. Estados Unidos, 2015, ficção, 2h48min.
2
LANG, Fritz. Dicionário. In NOGUEIRA, Calac; PAIXÃO, João Gabriel (org.). Fritz Lang: o horror está no horizonte. Catálogo de exposição no Centro Cultural Banco do Brasil (São Paulo, Brasília, Rio de Janeiro). Rio de Janeiro, Raio Verde Filmes, 2014, p. 71-75. Disponível em <http://culturabancodobrasil.com.br/portal/wp-content/uploads/2014/08/fritzlang_catalogo_site.pdf>.
3
No tempo das diligências, direção de John Ford. Com John Wayne, Claire Trevor, Thomas Mitchell. Estados Unidos, 1939, ficção, 1h37min; Legião invencível, direção de John Ford. Com John Wayne, Victor McLaglen, Ben Johnson mais. Estados Unidos, 1949, 1h43min.
sobre o autor
Luiz Gonzaga Marchezan é professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, Campus de Araraquara.