Conheço Carlos Almeida Marques há alguns anos e temos desenvolvido atividades de pesquisa e colaboração acadêmica. Sua atividade como docente e pesquisador, que exerce junto ao Centro de Administração e Políticas Públicas do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa, nos animou a desenvolver alguns projetos acadêmicos em parceria. Não porque ele trabalha na área do Planejamento Urbano, mas porque em seus ensaios e reflexões sua visão e postura é sempre a de um arquiteto do projeto. Nossa afinidade, portanto, vai além do fato de ele ter nascido e compreender o Brasil, mas se baseia em um substrato de raciocínios que se constroem a partir da ação do projeto.
Este ano, através da publicação de algumas de suas obras, passo a conhecer, além do estudioso, o arquiteto do projeto. Não me surpreendo com o esmero construtivo, o refinamento estético e a generosidade de seu desenho, pois reafirmam o dedicado pesquisador que já conhecia. Mas sua arquitetura, afastada da monotonia e da ausência de surpresas do espaço racional stricto sensu, reclama algumas considerações sobre postura e dimensão ética.
Pensar e projetar arquitetura têm sido nas últimas décadas afirmação de autoria e descaso pela construção da cidade. Na contramão deste cenário, a obra de Carlos Almeida Marques não se faz sem o apego a uma experiência prévia, seja a apropriação da paisagem local e da geometria do contexto urbano, seja ainda o diálogo com um edifício existente ou a interpretação de uma atividade peculiar à determinada comunidade.
A publicação das obras do arquiteto é mostra uma conversa com várias escalas que compõem o universo do habitar e abrange do detalhe arquitetônico ao urbano, do enfoque social à sofisticação do encontro entre materiais, da casa à composição da paisagem. O projeto de publicação, assim estruturado, apresenta obras das últimas quatro décadas e privilegia alguns temas: escolas e equipamentos sociais – de 2004 a 2010; esquinas de Lisboa – de 1995 a 2000; habitação – 1982 a 1985; desenho da paisagem – de 1998 a 2004.
Nas obras de caráter social, a experiência das arquiteturas é uma questão que privilegia espaços anímicos, alternâncias de luz e sombra, percepção do tempo, contraste entre volumetrias opacas e transparentes. Nas escolas e no centro comunitário paroquial, os projetos, mais que somente atender a funções específicas, promovem o encontro. Não somente em um recinto programático necessário que agrega a função de reunir, mas propõem passeios internos inusitados, privilegiam a dinâmica dos deslocamentos por promenades architecturales que fazem com que a percepção de si, do outro e da paisagem sejam parte de uma sensação de pertencimento. A biblioteca, por sua vez, de volumetria e composição clássica, apresenta uma espacialidade mais formal, simétrica e iluminada por luz zenital. Uma arquitetura recôndita, portanto, mas que se abre, em determinados ambientes de estudo, à possibilidade de uma perspectiva da tranquila paisagem ao redor com a qual dialoga.
No capítulo "Três esquinas de Lisboa" a poética do caminhar pelo espaço citadino, como atividade estética e de caráter cidadão, cativa o olhar pelos detalhes, pelos materiais, pelas geometrias inspiradas nas nunca repetitivas morfologias das cidades mais antigas e povoadas de tradição urbana. A esquina é a surpresa da cidade tradicional, abandonada pela cidade moderna em pro da visibilidade total. Imprime sua presença na memória. E merece destaque, capricho e a boa leitura de um desenho legível com evidência e vigor da materialidade. Como desenha Carlos Marques e como ensinou Carlo Scarpa.
Além das esquinas, o desenho que respeita a qualidade da matéria também comparece nas arquiteturas que compõem o "Desenho da paisagem". A natureza, já antes presente, é agora mais inteligível e tão mais próxima pela definição e generosidade da disposição espacial: praças e caminhos sugeridos à experiência do espaço e à contemplação, sutis desenhos de água, pedras e esculturas.
A temática da habitação apresenta um único projeto de um conjunto de nove casas em Albufeira que, a partir de um cubo de 9x9x7m, exercitam a composição clássica como unidade na diferença, marcada, principalmente, pelo contraste entre sobriedade e adição/subtração volumétrica. O resultado é uma conversa entre Le Corbusier e Robert Venturi. Mas também uma referência às casas mediterrâneas, brancas. E às tradicionais moradas portuguesas de algumas arquiteturas vernáculas do sul de Portugal, caiadas, marcadas pela geometria e pelo ritmo variado das aberturas.
O arquiteto que observa e releva características e condutas como algo que antecede o raciocínio de projeto é uma figura desejada. Há muito que aprender com os espaços que projetam. Na arquitetura de Carlos Marques, os exercícios combinam um cultivado repertório erudito que prioriza aspectos plásticos e sensoriais da arquitetura. Uma arquitetura autoral, eloquente, que almeja status artístico e propõe uma discussão sobre linguagem, interpretação, leitura. No entanto, a autonomia que a composição possa pressupor está, nos projetos, menos afeita ao comentário crítico do que à poética do uso e apropriação na produção de significado. Nuances estas propostas não somente na forma, mas em considerações antropológicas e sociológicas que podem ser apreendidas nas possibilidades de uso, condicionadas pelas diferenças do caráter público ou privado do espaço. Nos ambientes de uso coletivo que agregam encontros e privilegiam ver e ser visto na paisagem. Nas esquinas que reverberam na memória. Nas casas semelhantes que agregam um mesmo tipo de público, mas individualizadas em seus espaços. Nas novas paisagens informadas pela natureza e o contexto da coletividade que ali habita.
A sofisticada delicadeza das obras de Carlos Marques, no que respeita o envolvimento a uma experiência previa, se revela na arquitetura que se projeta com o lugar. Por contraste à natureza, as geometrias são regulares, os volumes são puros. Por acordo, as implantações são desdenhadas na topografia, as alturas ajustadas pelo gabarito do entorno, as direções das perspectivas orientadas pelos panoramas do contexto onde se inserem. Uma arquitetura que assim se propõe não só tem apreço pela apropriação de uma circunstância localizada, mas quer envolver e ser apropriada.
nota
NA – essa resenha teve a colaboração dos comentários de alunos da pós-graduação do curso "Projeto e Critica na Arquitetura e na Cidade", no qual Carlos Almeida Marques ministrou uma aula em setembro de 2015. São eles: Ana Maria Sala Minucci, Edison Ribeiro, Edson Machado Filho, Janaina A. Stédile, Marcia S. Gregori, Pâmella M. Cruz, Rafael Peres Mateus, Renata Carboni Bueno, Renata Targino, Sandra Escridelli Siqueira, Sandra Maalouli Hajli, Simone Souza, Thais Anastacio, Thiago Lorente.
sobre a autora
Maria Isabel Villac é arquiteta e urbanista pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Doutorado pela Universitat Politècnica de Catalunya. Pós-Doutorado no IUAV – Istituto Universitario di Architettura de Venezia. Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Como pesquisadora atua principalmente nos seguintes temas: arquitetura e cidade; arquitetura, arte e cultura; arquitetura e cidadania; ensino de arquitetura.