Vivemos num mundo pragmático, tecnicista, financista e utilitarista. Um mundo física e mentalmente ordenado por aquilo que ficou conhecido como razão manipulatória, técnica ou instrumental, a qual regula até nosso corpo e nosso ambiente. Esse mundo é o “moderno” e o seu modo de ver as coisas é o de Le Corbusier avaliando a casa, o habitar e as colunas do Parthenon, como sugere o Epílogo deste pequeno, mas precioso, ensaio que o professor Mário D’Agostino e a Annablume Clássica nos oferecem. Em A coluna e o vulto encontramos outro mundo, ordenado por uma geometria simbólica, ética e imaginária que impregna desde os espaços em que habitamos até os nossos corpos e as suas proporções. Essa ampliação do campo semântico da arte de edificar é operada, nesse ensaio, analisando aquele que é o elemento mais emblemático da arquitetura clássica: a coluna, cuja matéria e cuja forma não são feitas apenas daquilo que apalpamos na madeira, na pedra, no cilindro ou nas pirâmides de ontem e de hoje, mas também daquilo que queremos saborear na nossa alma e nos “pétreos arcanos”, dos quais fomos desligados (1).
Desde o século 19, a arché que distingue as construções propriamente “arqui-tectônicas” foi progressivamente subsumida na techné. A técnica fez-se a própria arché. Isso era adequado ao contexto moderno, sobretudo depois da Segunda Guerra, quando os problemas se tornaram mundiais e exigiram dispositivos globais para serem resolvidos. Contudo, tais dispositivos deixaram de ser apropriados e de funcionarem para a construção das culturas, das famílias, dos sujeitos e de sua identidade, liberdade e cidadania. Ao contrário, fomos nós que acabamos sendo apropriados por esses dispositivos e pela racionalidade técnico-instrumental. Quando isso acontece o dispositivo não nos liberta mais, mas nos violenta (2). E a casa e a cidade modernas e contemporâneas, sendo também dispositivos, tornaram-se instrumentos dessa violência “dessubjetivadora” e de um constante “desenraizamento”. D’Agostino nos devolve um tempo arcaico ou arcano onde o valor da casa e da coluna era, ao contrário de Le Corbusier, “providenciar raízes e profundas fundações”, comemorar vínculos consangüíneos, difundir a virtude, sustentar o “lar” e introduzir noções de permanência e fixidez das quais o mundo moderno, “líquido”, movediço e fugaz como um fogo-fátuo tanto carece. O livre-docente da FAU USP e estudioso dos tratados clássicos de arquitetura, o que é raro entre instituições e pesquisadores brasileiros, nos remete ao território da arché quando ele ainda não havia sido absorvido pelo da techné e funcionava como prefixo e princípio desta.
O termo arché tem três sentidos que se interpenetram: origem, comando e princípio ético (3). Os três capítulos que compõem esse ensaio remetem a esses três universos erigidos na história “arcana” e antropomórfica da coluna, investigada por D’Agostino com o rigor, a erudição e a perspicácia que são comuns em suas pesquisas, sempre instigantes por confrontarem nosso presente e nossas práticas com o passado e com os tratados e pela liberdade que esses textos clássicos promovem em nossa mente e em nosso olhar. Depois de uma rápida introdução delineando o que é a compositio na teoria vitruviana e os seus intercâmbios com o corpo humano seguem-se os três capítulos do ensaio. Cada um deles é dedicado a uma categoria e a um sentido que a coluna tomou na história da arquitetura.
No primeiro deles, sobre a “coluna-firmamento”, comparece a arché como “origem”: a coluna é erigida para fundamentar o lar ou altar da casa e da religião quando ela era ainda doméstica e primitiva, como a viu Fustel de Coulanges (4). Ao mesmo tempo, a coluna “olha ou sopra para o céu”, como faz o corpo humano ereto, e preserva o fogo sagrado que torna o lar e os laços familiares tão firmes como os esteios da casa. Analisando literatura, mitos, esculturas, vasos e edificações desde o período micênico grego, como os palácios de Tirynthos e de Pylos (século 14 a.C), D’Agostino prova como a função das colunas ia além dos aspectos de sustentação, ordenação e antropométricos dos edifícios: elas proporcionavam também o enraizamento, a permanência espaço-temporal e a fertilidade da casa e dos seus habitantes. A coluna conferia fundamentos simbólicos à edificação, servia para marcar a posse da terra e providenciava referências de permanência e de estabilidade sem as quais a travessia entre tempos e espaços, como as do deus Hermes, seria impossível. Ela ligava os ínferos aos céus, servia como meio de comunicação entre os vivos e os mortos e permitia a eles se reunirem e manterem-se juntos, como em torno do fogo sagrado doméstico. Ao demonstrar isso, o autor filia-se a uma tradição que envolve também Leon Battista Alberti e Joseph Rykwert (5): edifícios e cidades não são apenas abrigos da humanidade, mas a condição primeira para que a humanidade exista.
A “coluna majestática” é o tema do segundo capítulo e se relaciona com o sentido de “comando” também abrigado na arché. A ênfase, agora, recai na arquitetura, na arte, na mitologia, na política e na cultura da Roma Antiga. Nessa cultura há uma proeminência da persona, cujas imagens difundem-se com ordenação e decoro nos átrios das casas, nos palácios, nos prédios públicos e na cidade. Através dessas imagini, os antepassados continuavam a frequentar e participar do lar doméstico e do lar público. Nelas, eram imantados valores exemplares de conduta, difundidos e aceitos pelos cidadãos e pelos descendentes. Também estátuas de antigas celebridades gregas eram feitas para que com elas os sábios, como Sêneca, continuassem a conviver e a “conversar”. Dessa “procissão de imagens” resulta a columnationis da arquitetura romana – examinada, por exemplo, no Forum Cæsaris de Roma (51 a.C.) – e as colunas sobre as quais eram erguidas as estátuas-retratos, como a coluna honorífica que Otaviano recebeu do Senado (cerca de 30 a.C). A “coluna-firmamento” servia à origem, à fundação e à permanência. A “majestática”, tal como os arcos triunfais, celebra o engenho, a ação, a virtūs romana, os acontecimentos notáveis e as proezas de um Estado que se coloca acima do plano dos mortais. Mas a profusão dessas colunas majestáticas revela também como esse Estado, sobretudo no período tardo-republicano, se corrompe e decai, junto com os costumes: em disputas entre facções políticas e poderes particularistas, em faustos e luxos como nas festas dinásticas, nas grandes colunas privadas e nos mármores importados que algumas residências particulares passaram a ostentar no século I a.C. Aí, então, já não era o proprietário que dignificava a casa, como supunha Cícero, mas o contrário. Perde-se a sobriedade e perde-se o decor e a distributio tão caros a Vitrúvio, a Alberti e a D’Agostino: a magnificência dos edifícios privados começa a rivalizar com as obras públicas e a sobrepor-se a estas. É proveitoso ler a parte final desse segundo capítulo não apenas como uma análise histórica daquele período romano, mas também como uma veemente advertência aos valores (ou falta de) que dominam a produção do espaço urbano e dos edifícios atuais, incapazes de “medirem-se” entre si. Em vez de serem pautados por esse “co-medimento” eles se orientam, ao que parece, para fazer do espaço público a arena onde são projetados mundos privados que digladiam entre si. As causas que arruinaram a república romana são as mesmas que estão a arruinar as nossas. Basta isso para demonstrar a atualidade de A Coluna e o Vulto e o cuidado com que ele deve ser lido.
Mas há ainda um último sentido de arché: o de “princípio ético”, o qual comparece no terceiro capítulo sobre a “coluna virtuosa”. Nele, percorremos a polis e o espaço da ágora, do logos e do ethos humano da época clássica grega. Construir o “co-medimento” entre os homens e construir a justiça que deveria servir à sua sociedade, mais do que aos deuses, foi o projeto comum da retórica, da religião e da filosofia, como as de Sócrates e Platão, analisadas no início do capítulo. Também a busca das verdadeiras e sólidas razões (συμμετρία, “simetria”), e não da pompa e do encanto aparentes, era o projeto da arquitetura, da arte e da educação desse período grego. A base disso era o “decoro” e o direcionamento dos melhores esforços para a construção e para a harmonia do mundo público e comum. Ao reunir os elementos “justos” com competência e com um “severíssimo senso de limite”, como escreve D’Agostino, a arquitetura e o urbanismo são instrumentos para edificar esse mundo e a virtude pretendida por ele, mas que falta aos nossos tempos atuais. Perdemos o senso de limite e perdemos a capacidade de dialogar e de “co-medirmos” entre nós. Desapareceu de nosso horizonte o valor das origens e da permanência e banalizamos nosso universo simbólico, imaginário e real. E transferimos todas essas perdas também para a construção de nossas cidades e edifícios, nos quais múltiplas geometrias e dimensões da existência que antes ressoavam juntas como as notas de um acorde, foram achatadas num plano único pragmático, tecnicista, utilitarista e financista.
Em nosso mundo, as virtudes são consideradas vícios e os vícios, virtudes. Nele, o que é relevante para nós e para nossas ações, inclusive as edilícias, foi tornado irrelevante e o que é irrelevante adquiriu importância capital. A coluna e o vulto é um dos poucos trabalhos que questiona esse estado das coisas e a forma mentis atual. Ele nos descortina uma arché que se encontra velada, mas sem a qual a “arqui-tectura” é substituída por seu simulacro, e nos convida a prosseguir essa tarefa. É uma tarefa árdua, pois nosso tempo, tão moderno e avesso aos arcanos, lhe é extremamente hostil. Contudo, basta ver uma coluna a suportar a viga sobre si para que perseveremos em prossegui-la: quanto maior a carga a ser suportada, mais ereta e firme se faz a coluna que a sustenta. Essa mensagem é o que ornamenta todo esse belo ensaio de D’Agostino.
notas
1
Essa minha resenha integra a produção de pesquisa desenvolvida com apoio de bolsa do CNPq, ao qual agradecemos.
2
Sobre o “dispositivo”. Cf. AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo? In: O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, Argos, 2009. p. 25-151.
3
Cf. PAYOT, Daniel. Le Philosophe et l’Architecte. Paris, Aubier Montaigne, 1982; BRANDÃO, Carlos Antonio Leite. A formação do homem moderno vista através da arquitetura. Belo Horizonte, UFMG, 1999.
4
COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. São Paulo, Martins Fontes, 2004.
5
É do professor Mário D’Agostino, por exemplo, o prólogo à edição brasileira de” RYKWERT, Joseph. A casa de Adão no paraíso. São Paulo, Perspectiva, 2003.
sobre o autor
Carlos Antonio Leite Brandão é arquiteto (UFMG, 1981), mestre e doutor em Filosofia (UFMG, 1987 e 1997), especialista em Cultura e Arte Barroca (UFOP, 1985) e pós-doutorado (estágio sênior) junto à Fundation Maison des Sciences de l’Homme e École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris, 2010, bolsa Capes). Atualmente, é professor titular da UFMG e pesquisador do CNPq.