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Abilio Guerra comenta livro de Luiz Philippe Torelly, Memória e patrimônio Crônicas e outros escritos, recém-lançado pela Verbena Editora, contendo textos diversos sobre vivência, patrimônio, memória e cultura.

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GUERRA, Abilio. O boteco, a sala de estar e o gabinete. Resenhas Online, São Paulo, ano 15, n. 178.05, Vitruvius, out. 2016 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/15.178/6248>.


Marco Zero de Brasília
Foto Mário Fontenele [Arquivo Público do DF]

“Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Ori Villegaignon print terre. Montaigne. O homem natural. Rosseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista, à revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling. Caminhamos”.
Oswald de Andrade, Manifesto antropófago

Os textos desse volume flertam com os gêneros da crônica e do ensaio leve, o que justifica a estruturação do livro em duas partes. A primeira explora as memórias da infância, adolescência e juventude, as predileções culturais, artísticas e políticas, alguns causos saborosos e marcantes. Na segunda vêm à tona a formação profissional de Luiz Philippe Torelly na área do patrimônio arquitetônico e seus pendores filosóficos, que revelam suas preocupações com a preservação do passado, a injustiça social do presente, a sustentabilidade cultural e ambiental do futuro. Nos ensaios da segunda parte, as incursões no âmbito mais crítico e teórico não se enveredam pelas necessidades acadêmicas de se comprovar a argumentação apoiando-a pari passu na fortuna crítica preexistente ou no levantamento sistemático de novos dados. Ao contrário, prevalece o tom coloquial de quem quer ser lido e entendido. Parte desses artigos foi selecionada pelo autor dentre artigos já publicados e é sintomático que os dois artigos publicados na revista científica Arquitextos tenham ficado de fora (1), certamente por conta do tamanho excessivo e construção complexa, características do texto acadêmico, que ultrapassam o escopo de um livro que prioriza os textos curtos e a leitura fácil.

Mesmo com a separação dos gêneros narrativos e a divisão capitular, é possível detectar com certa facilidade um fio que costura os textos, conferindo-lhes feição unitária: uma visão de mundo particular amparada em uma concepção de história que parte da eterna luta de classes, em uma opção política que prioriza as camadas mais vulneráveis da sociedade, em uma predileção cultural que combina como se fosse um coquetel profissional a boemia, a produção crítica da contracultura e as alternativas filosóficas democráticas e socialistas. Saqueando um dos autores favoritos do autor, o filósofo judeu-alemão Walter Benjamin, pode-se arriscar dizer que estamos diante de uma constelação, onde as estrelas, com tamanhos e distâncias diferentes, se articulam diante de nossos olhos segundo uma ordem que se expressa no brilho distinto de cada uma.

Concentrada nos textos iniciais, mas também visíveis em outros ao longo do livro, uma espécie de arqueologia da memória insufla vida às lembranças de épocas e lugares diferentes, que acabam construindo, de forma miúda, o campo dos valores simbólico, afetivo e existencial do autor. Da infância brotam imagens e sensações nítidas: o cheiro inesquecível da baleia morta e encalhada na praia de Itacoatiara, o encontro vigoroso das águas visto com entusiasmo a partir da casa do bisavô em Manaus, o horizonte sem fim do planalto central que o deslumbrou na sua chegada a Brasília, a japona de flanela azul que a avó costurou para ele com amor, quem sabe a mesma que habitava a casa onde todo ano ele ajudava a desmontar a árvore de Natal após cerimônia mística e frugal do Dia de Reis, talvez a mesma avó que tinha uma varanda de onde ele olhava empolgado a nata da elite carioca e artistas de Hollywood entrando na boate Sacha’s. Da adolescência e juventude, marcada pelas presenças constantes do Rio de Janeiro onde nasceu e da Brasília para onde se muda com apenas cinco anos de idade, chegam lembranças engraçadas e emotivas – por exemplo, a família numerosa de onze pessoas rodando de um lado para outro dentro de uma Kombi, “um pão de forma sobre rodas” – ou fraternais e amorosas (e, por que não dizer, sensuais), caso dos luais no Lago Paranoá, marcados pela bebida barata e farta, conversa alta dos amigos e o slepping bag para agasalhar os casais fixos e fortuitos no final da noite, afinal ninguém é de ferro.

Esplanada do Ministério em construção, Brasília, final dos anos 1950
Foto divulgação [Arquivo Público do DF]

 

Mesmo que originalmente não tenham sido concebidos com esse fim, afinal são artigos escritos e eventualmente publicados ao longo dos anos, há uma concatenação subterrânea entre os textos mais memorialísticos, onde os fatos corriqueiros se tornam a matéria-prima de uma vivência específica e consolida uma forma particular de habitar o mundo, de conviver com os próximos, de entender a alteridade, de compreender os mecanismos sociais; em síntese, um jeito de articular o específico e o universal, de transportar a experiência individual ao âmbito coletivo, uma escrita que se aproxima de técnicas narrativas da micro-história (2). Assim, a beleza e a decrepitude do casarão do bisavô em Manaus acompanham em simetria o apogeu e a decadência do ciclo da borracha. Ou a vivência da primeira infância na praia de Copacabana, guardada como registro do familiar, do habitual, do caseiro, que é violentada pela implantação do magnífico calçadão desenhado por Roberto Burle Marx, reflexo na pequena escala da vida pacata de bairro transformada sem cerimônia pelas forças da modernização em curso na capital do país.

A experiência também serve para estruturar uma espécie de coleção de situações exemplares prenhes de valores positivos ou de pessoas que carregam em suas trajetórias atos ou ideias fraternas, que podem servir de referências para si e para os outros. Seu pai, que mergulha no mar para desvencilhar um puça das pedras se transfigura no próprio autor, que auxilia os filhos na dura tarefa de enterrar o gato Romeu à sombra da mangueira frondosa no quintal da casa em Brasília. E é extenso o rol de seus heróis – Karl Marx, Che Guevara, Leon Trotsky, Vladimir Lenin, Charles Fourier, Robert Owen, Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Darcy Ribeiro, Charles Baudelaire, Albert Camus, François Truffaut, Frank Sinatra, Jack Kerouac, John Fante, William Burroughs, Charles Bukowski, John Reed, Sergei Eisenstein etc. –, lista aparentemente sem pé nem cabeça; contudo, Torelly abre o segredo de sua taxinomia borgeana ao classificar Jean-Paul Sartre como “combativo, polêmico, boêmio”. As afinidades eletivas traduzem, portanto, as predileções pessoais do autor que convergem para uma vida proativa, construtiva e festiva.

Nos pequenos ensaios, as preocupações de Luiz Philippe Torelly são abrangentes, mas têm em geral o tema do patrimônio como polo de irradiação e o enraizamento cultural como tacão de medida. A constituição das Faculdades de Direito e Medicina no início do século 19 e vinda da Missão Francesa são temas relevantes do período imperial, mas os registros em tela da vida social escravagista realizados por Debret ganham mais destaque. O autor mostra-se informado sobre o debate conceitual da passagem do barroco ao rococó durante o século 18, mas se mostrará mais interessado na figura de Aleijadinho, não apenas pela excepcionalidade de sua obra arquitetônica e artística, mas principalmente pelo o que ela tem de representativo, em especial sua capacidade de elevar à condição de arte o “fervor religioso” dos conterrâneos e o apelo que lhes causava a “vida celestial”.

A aposta na cultura como expressão legítima da base social explica a evidente preferência do autor pelas manifestações mais populares da nacionalidade, cujas raízes são africana, cabocla e caipira. Em ao menos dois pontos o modernismo brasileiro se aproxima dessa aposta: as viagens de redescoberta do Brasil – tanto a realizada em 1924 por Mário e Oswald de Andrade, Paulo Prado, Tarsila do Amaral e Blaise Cendrars pelo interior de Minas Gerais, como as de 1927 e 1928, quando o turista aprendiz Mário de Andrade se enfronha solitariamente pelo norte e nordeste do país –, que têm como objetivo fundamental a coleta dos elementos constitutivos de nossa nacionalidade resumidos na expressão “herança cultural brasileira”; e a postura já presente na Semana de Arte Moderna de 1922, mas que ganha mais nitidez e abrangência a partir do Manifesto Antropófago promulgado por Oswald de Andrade em 1928, a deglutição da cultura importada em busca de uma síntese genuinamente nacional, a produção coletiva vista como fruto de misturas e sincretismos.

Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, com doze profetas esculpidos por Aleijadinho dispostos no adro da igreja
Foto Luiz Philippe Torelly

 

O compromisso com a realidade histórica brasileira, com o passado formador, o passivo da sociedade escravocrata e os desdobramentos aos longos da década até os dias de hoje levam o autor a buscar amparo na visão acurada dos intérpretes do Brasil – Euclides da Cunha, Mário de Andrade, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., Celso Furtado e outros –, escarafunchando temas delicados em suas ambiguidades estruturais: o milenarismo arcaico do sertanejo e seu genocídio pelas tropas federais, a busca de uma identidade nacional em uma cultura onde seu herói maior não tem caráter, a positividade da miscigenação em contradição com a barbárie do trabalho escravo, a riqueza cultural recalcada pelo subdesenvolvimento econômico.

Dois desses intérpretes são mais presentes e importantes. Ao tratar do desenvolvimento mais recente das teorias sobre o patrimônio em confronto com a tradição brasileira em privilegiar “a pedra e o cal”, Torelly eleva ainda mais a figura múltipla de Mário de Andrade ao lembrar que seu documento que embasa a fundação do Iphan já previa, em 1937, conceitos atualíssimos como “patrimônio imaterial” e “paisagem cultural”. E é em Celso Furtado e na relevância que o economista dá à dimensão cultural quando trata do desenvolvimento econômico, que o autor se apoia para refutar energicamente o crescimento econômico como um valor em si, sem se preocupar com a cultura popular, a erradicação da pobreza, a inclusão social, a sustentabilidade econômica e a conservação do meio ambiente. Na visão de Torelly, o grande vilão contemporâneo é o consumo – “o verbo consumir é mais conjugado do que o viver”; “o consumo parece enfeitiçar a todos”; “Não mais somos. Consumismos”; “o consumo substitui cada vez mais a cidadania” –, valor social que coloca em risco o futuro imediato da humanidade. Se não mudarmos nossos hábitos de consumo, reitera o autor, entraremos em colapso. Ou, na frase mais poética e sombria de Hobsbawn citada por Torelly: “a alternativa para a mudança da sociedade é a escuridão”.

São muitas as boas sacadas de Luiz Philippe Torelly, com histórias que pouca gente conhece. Uma lembra que é de Simon Kuznets a tese do crescimento do bolo antes de reparti-lo, outra evoca a carta de Auguste Glaziou para Luiz Cruls sugerindo a criação do Lago Paranoá em Brasília, o que só se concretizou décadas depois. Mas a sacada mais interessante talvez seja trazer à cena, no artigo “Filosofia e desigualdade: a festa brasileira em Rouen – 1550”, o texto de Fernand Denis “Uma festa brasileira celebrada em Ruão em 1550”, publicado originalmente em 1850 e republicado recentemente pelo Senado Nacional. Denis, por sua vez, evoca a “Narrativa da suntuosa entrada”, escrita por Maurice Sève em meados do século 16, que comenta a festa onde os reis da França são surpreendidos com a incompreensão manifestada pelos índios brasileiros sobre a realidade francesa: a pobreza extrema de parte da população em contraste com a opulência da nobreza, e a submissão voluntária dos oprimidos (antecipando em dois séculos as razões que levaram à guilhotina). Esse encontro improvável gerou a tradição do relativismo cultural presente na filosofia francesa, que se inicia com Montaigne e seu famoso texto “Os canibais”, passa por Jean-Jacques Rousseau e sua visão sobre o bom selvagem, se dissemina socialmente após a vitória da revolução francesa. Torelly nos fornece a surpreendente informação que a riqueza europeia se concentra por séculos no seio das mesmas famílias, o que significa que a justiça social e a divisão igualitária da renda originadas pela visão de mundo tupi-guarani permanecem bandeiras inalcançadas até hoje no mundo desenvolvido, mesmo que nem de longe sejam tão perversas como em países pobres.

Reforma Kaiser-Wilhelm Gedächtniskirche, Berlim. Arquiteto Egon Eiermann, 1957-1963
Foto Luiz Philippe Torelly

Os textos de Luiz Philippe Torelly que habitam esse livro estão embebidos de nostalgia, alegria e engajamento e parecem ter sido escritos em horas e lugares distintos. Parte deles, em restaurantes, bares e botecos do Rio de Janeiro, Brasília, Porto Alegre ou Buenos Aires, em noitadas regadas por cerveja, vinho ou steinhaeger. Alguns outros, na sala de estar de sua casa em Brasília, no apartamento da avó em Copacabana ou no solar do bisavô em Manaus, folheando álbuns de fotografia e conversando com os antepassados. Outros, seguramente, foram redigidos no seu gabinete no Iphan de Brasília, sacando livros, revistas, relatórios e documentos das prateleiras. Oscilando entre a descontração séria das crônicas memorialistas e a seriedade descontraída dos ensaios patrimoniais, a narrativa vai fluindo franca e tranquila pelo terreno comum da valorização humanista da experiência coletiva e da crença irresoluta na harmonia futura da sociedade.

notas

1
Artigos de Luiz Philippe Torelly publicados no portal Vitruvius e não incluídos na coletânea: TORELLY, Luiz Philippe. Patrimônio mundial e desenvolvimento sustentável. Desafios para o século 21. Arquitextos, São Paulo, ano 15, n. 177.04, Vitruvius, fev. 2015 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/15.177/5488>; TORELLY, Luiz Philippe. Patrimônio cultural. Notas sobre a evolução do conceito. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 149.04, Vitruvius, out. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4539>.

2
Na bibliografia são hegemônicos livros e autores de outras vertentes, mas é significativa a presença de um historiador maior, o italiano Carlo Ginzburg, com seu livro Os fios e os rastros: verdadeiro, falso, fictício.

sobre o autor

Abilio Guerra é professor de graduação e pós-graduação da FAU Mackenzie e editor, com Silvana Romano Santos, do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora.

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resenha do livro

Memória e patrimônio

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Memória e patrimônio

Crônicas e outros escritos

Luiz Philippe Torelly

2016

178.05
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178

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