A primeira coisa que nos vem à mente, quando nos deparamos com a publicação de um livro – que supomos não ser o pioneiro sobre um determinado assunto – é fatalmente: A que veio? O que trouxe de novo sobre o assunto? No caso deste belo livro de Lara e Carranza, muita coisa. Tudo ou quase tudo. É o primeiro livro sobre o assunto, desde o clássico livro de Henry Hitchcock Russell de 1955, que como anunciava o título, Latin American Architecture since 1945, apenas cobria dez anos de arquitetura. Num trabalho fantástico de documentação, Carranza e Lara absorvem narrativas precedentes, reorganizam-nas e, sobretudo, as enriquecem com exemplares inéditos. Eles são, deste modo, muitíssimo mais amplos, em todos os sentidos, no tempo, espaço, nos objetos considerados.
O critério topográfico e a perspectiva inclusiva
Como nos esclarece o prefácio de Jorge Francisco Liernur, o livro fecha as narrativas prévias, pelo deslocamento do objeto, que se evidencia desde o título escolhido, uma vez que, em lugar da tradicional denominação Arquitetura Moderna Latino Americana, os autores propõem Arquitetura Moderna na América Latina. Diferença sutil mas que faz toda a diferença. É o abandono de um conceito que pretende ser um atributo – a latino-americanidade – em prol de outro que é um suporte geográfico. Carranza e Lara fogem da narrativa aos moldes da difusão, como havia feito Russel Hitchcock (1), esclarecendo logo de início – América Latina é um território, uma região geográfica. Em outros termos, neste livro, passamos de um adjetivo, de uma qualificação, que evoca identidades, raízes, regionalismos para uma outra dimensão mais neutra, topográfica; pouco importando a nacionalidade do autor dos trabalhos apresentados, o que permite incluir obras de Le Corbusier, Mies van der Rohe, Gio Ponti, Charles Correa.
Adotando uma narrativa cronológica para os 100 anos que vão de 1903 até 2002, no livro, cada evento é apresentado, no seu contexto nacional e sob a ótica de um dos três temas: Arte, Tecnologia e Utopia. São cerca de 2000 obras em onze países: Argentina, Brasil, Cuba, República Dominicana, Porto Rico, Chile, Columbia, México, Peru, Uruguai e Venezuela. Os capítulos, com textos relativamente curtos e eficientes, sempre acompanhados de alguma imagem, podem ser percorridos em sequência ou de modo independente; um convite a múltiplas possibilidades de leitura, por temas, por tempos, por países, guiado pelo interesse do leitor. Sinalizando entrelaçamentos existentes entre os diversos eventos narrados, ao final de cada capítulo, há sempre indicações de leituras complementares.
Surpreende também a corajosa perspectiva adotada de uma narrativa sobre a modernidade que inclui o pós-modernismo e neomodernismo. Ela certamente agradará aos seguidores de Habermas, na medida em que implicitamente registra que o modernismo não acabou, como postula o filosofo alemão.
A classificação temática: a reunião arte, arquitetura e urbanismo
A tríade classificatória é igualmente instigante: Arte, Tecnologia e Utopia. Ela é gratificante porque inclusiva: os autores trataram de edificações, paisagismo, artes plásticas, projetos, ideias. Assim, começando os cem anos do relato, em 1903, a partir da cidade com as reformas cariocas de Pereira Passos, o livro adota, desde o início, um outro modo de contar a modernidade, sem separar urbanismo de arquitetura, como fez Yves Bruand, para o Brasil, em 1973 (2). Também é prazeroso ver os trabalhos de Hélio Oiticica e Jésus Rafael de Soto que convidam a uma reflexão sobre as novas relações entre arte e arquitetura a partir do inicio dos anos sessenta.
No entanto, aqui e acolá, há possibilidades de questionar a taxonomia adotada, uma vez que arte refere-se ao objeto, enquanto tecnologia e utopia, seriam respectivamente qualidades materiais e conceituais dos objetos tratados. Então porque Pampulha está classificada com o T de tecnologia, por exemplo? Ou porque Estridentópolis, está na rubrica Arte não em Utopia? Além disso, uma certa tendência a classificar tudo que se refere a urbanismo na rubrica Utopia leva a juízos de valor discutíveis. Claro, utopia pode assumir um sentido amplo, na busca de possibilidades de um novo mundo, como é sugerido na introdução. Mas parece-nos difícil enxergar utopia tanto no propósito civilizador, (devidamente aspeado no texto) do projeto de Pereira Passos quanto na indicação de Lucio Costa por Getúlio Vargas em 1930.
Em tempos de distopia, é compreensível que os autores não tenham resistido à tentação de atribuir a várias realizações uma dimensão utópica, associada a objetivos sociais e redentores, o que foi muito comum nas descrições da saga modernista por gerações anteriores como Kopp. Donde a ênfase que é dada à natureza politica da arquitetura e o aplauso às recentes intervenções nas favelas. São apreciações que, se, por um lado, confirmam a generosidade dos jovens autores, por outro, por vezes aproximam-se de uma visão populista, como ao considerar a realização do sambódromo de 1983 uma arquitetura mais próxima das necessidades populares (sic – grifos nossos).
Sobre o tema, parecem-nos controvertidas afirmações como a de que o governo militar teria posto fim às investigações de arquitetos como Delfim Amorim e Acácio Gil Borsoi no nordeste. Igualmente destoante é a referência à prisão deste último, bem como a escolha da foto do projeto de Cajueiro Seco, completamente atípico na trajetória profissional do arquiteto, fora de uma análise do ambiente cultural nos idos 1964 em Pernambuco. Erigidos a heróis, estes arquitetos, cujas orientações ideológicas eram bastante distintas, infelizmente, comparecem na publicação de uma forma que não faz jus ao que realizaram. É um detalhe ao qual as autoras desta resenha são certamente mais sensíveis por viverem em cidades onde eles atuaram.
As hegemonias: Brasil e São Paulo
Os cem anos da modernidade na América Latina são abordados do ponto de vista dos centros hoje hegemônicos: o Brasil e neste, São Paulo. O Brasil comparece com o maior número de realizações, seguido do México; o que também é compreensível, tendo em vista o tamanho destes países bem como as excelentes pesquisas empreendidas há anos pelos autores.
A liderança brasileira confirma-se no plano qualitativo, a partir da imagem da capa, de autoria de Nelson Kon, escolha que, como se sabe, nunca é anódina, nem arbitrária. Não é, portanto a toa que a belíssima foto do MuBE – Museu Brasileiro das Esculturas, de Paulo Mendes da Rocha, tenha sido convocada para ilustrar a quintessência da Arquitetura Moderna na América Latina. Os autores sacramentam, portanto, um movimento que consagrou São Paulo como centro hegemônico cultural do Brasil – quiçá da América Latina? Sendo o brutalismo paulista o novo grande produto nacional com visibilidade internacional. Permitem, desse modo, absorver as narrativas sobre a diversidade de modernidades, que, no Brasil, foram trabalhadas por Hugo Segawa em 1997 (3), e, mais recentemente, Ruth Verde Zein e Maria Alice Junqueira Bastos em 2011 (4) e que vem substituindo o discurso genealógico que afiliava a modernidade brasileira ao barroco, gerado por Lúcio Costa e repetido por Bruand em 1973.
Então, dentro da linha cronológica, uma leitura é claramente sugerida: a arquitetura moderna começa em São Paulo, em 1925, com o manifesto de Warchavchik e Rino Levi. Perspectiva bem explicitada na conclusão quando os autores apontam que, no século 20, desafiou-se a gravidade com leveza – mencionando Felix Candela, Oscar Niemeyer e Eladio Dieste – e que, no século 21, o desafio à gravidade se expressa pelo peso tectônico, material e o esforço que se faz para sustentar a estrutura.
Conclusão
Sem descuidar do rigor da pesquisa, o texto é agradável e acessível a um grande público, a todos que tenham interesse pela cultura de uma maneira geral e, em particular pela América Latina. Esta é uma qualidade raríssima em publicações da área que cada vez mais destinam-se apenas a especialistas. Estes, por sua vez, sentirão falta da escala gráfica para uma melhor leitura dos desenhos técnicos.
O livro está disponível no formato impresso, com design e formatação muito bem cuidados, e no formato digital, e-book. Vale a pena ter os dois porque os manuseios permitem leituras para funções e públicos diferentes. O exemplar impresso, pelo tamanho e a quantidade de páginas, é para estantes. Já o e-book é extremamente agradável, os capítulos, as notas, as indicações de entrelaçamento de temas se apresentam como links muito funcionais. Indo e vindo, pulando muitas páginas, ágil, ele torna a leitura bastante dinâmica favorecendo uma melhor apreensão das imagens, que podem ser abertas em tela à parte e respondem a comandos de ampliação (zoom).
Os autores merecem todo reconhecimento pela qualidade do trabalho realizado, pelo cuidado com que enfrentaram o desafio de escrever sobre um século da arquitetura moderna na América Latina preenchendo uma lacuna através de uma obra extremamente bem documentada. Instigante, provocador e polêmico, a visão generosa dos autores repousa sobre um sólido conhecimento e árduo trabalho. O olhar é amplo, as bases concretas. É uma leitura imprescindível para o conhecimento dos profissionais da área e enriquecedora para qualquer público.
notas
1
HITCHCOCK, Henry-Russell. Latin American Architecture since 1945. New York, The Museum of Modern Art, 1955.
2
O ano de 1973 é a data de defesa da tese de Yves Bruand, que foi publicado apenas alguns anos depois: BRUAND, Yves. Arquitetura contemporânea no Brasil. São Paulo, Perspectiva, 1981.
3
SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil 1900-1990. São Paulo, Edusp, 1997.
4
BASTOS, Maria Alice Junqueira; ZEIN, Ruth Verde. Brasil. Arquiteturas após 1950. São Paulo, Perspectiva, 2011.
sobre as autoras
Sonia Marques, Arquiteta e Urbanista (UFPE, 1973), Mestra (1983, UFPE) e Doutora (1996, EHESS, Paris) em Sociologia. É professora da UFPB, no curso de artes visuais e na Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo. Foi professora visitante de várias Universidades (UFBA, Montreal, Tours na UT, Universidade do Texas em Austin (Bolsa Fulbright, 2014).
Wylnna Vidal, Arquiteta e Urbanista (UFPB, 1996). Mestra em Engenharia Urbana (2004, UFPB) e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFPB. Professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFPB (desde 2010). Pesquisadora vinculada ao Laboratório de Pesquisa Projeto e Memória (LPPM-UFPB).