Os olhos da pele é a obra mais famosa do arquiteto finlandês Juhani Pallasmaa. Numa censura a parte da arquitetura contemporânea e ao senso comum sobre o que seria uma arquitetura bela, ele utiliza essa obra para criticar a primazia do olhar não só na avaliação estética da arquitetura, mas também a ligação que fazemos do olhar comum com um conhecimento quase positivo do mundo. Com uma linguagem simples e seguindo um caminho traçado pela fenomenologia existencialista de Merlou-Ponty, fenomenologia hermenêutica de Heidegger e estudos da neurociência e da antropologia, Pallasmaa defende que o tato é o sentido primordial que serviu de base para os outros sentidos e que o corpo por completo é o centro de todas as nossas experiências com o mundo e no mundo.
A proposta de que o corpo é o centro de todas as nossas experiências com e no mundo pode até parecer simples num primeiro momento, mas traz para a arquitetura uma discussão importante da filosofia, sobre como nos relacionamos com outros entes e com o mundo. Por mais abstrata que possa ser essa discussão, ela traz reações imediatas ao processo de concepção da arquitetura. Segundo Pallasmaa, pré-determinando a arquitetura como algo para a visão, arquitetos “tem adotado a estratégia psicológica da publicidade e da persuasão instantânea; as edificações se tornaram produtos visuais desconectados da profundida existencial e da sinceridade” (p. 29).
A discussão sobre a relação do homem com o mundo e o que podemos extrair daí vem desde a filosofia antiga, mas as propostas que Pallasmaa se aproveita nessa obra nascem com o filósofo alemão Husserl, passam por Heidegger, também filósofo alemão e discípulo de Husserl, e continuam com o filósofo francês Merleau-Ponty.
Husserl em seus estudos percebe que toda consciência é um fluxo que parte de nós e vai até a coisa. “Todo estado de consciência em geral é, em si mesmo, consciência de alguma coisa” (1). Não há fenômeno que não seja fenômeno para uma consciência, e não há consciência que não seja consciência de algo, o que torna a consciência um fluxo que tem o ser como criador da intencionalidade. Disso temos que o que existe segundo Husserl não é um sujeito separado do objeto, mas sim a relação entre ambos.
Heidegger, buscando se desconectar de pré-concepções do senso comum, cunha durante a primeira fase de sua filosofia o seu famoso termo ser-aí, ou Dasein, para separar o sujeito solipsista do “penso, logo existo”, que nega o mundo e os entes em seu entorno, do que ele propõe como sujeito fatídico. De forma simplificada, mas esclarecedora, Heidegger define ser-aí em sua Introdução à filosofia como “nada além do que designamos até aqui por ‘sujeito’, o sujeito que se encontra na dita relação com objeto” (2). Com o termo ser-aí, ele concebe um termo para pensar o ser diretamente em sua relação essencial com os entes do mundo, separando-o da discussão do sujeito da filosofia não-fenomenológica e do sujeito do senso comum. Heidegger em seus estudos chega à conclusão de que o humano é um ente jogado num mundo com uma ontologia pré-existente a ele, espaço e tempo definidos, e que conquistou suas essências através da relação espacial e temporal com outros entes. A partir disso, do seu modo de ser extraído dessa ontologia pré-existente e da relação espacial e temporal com outros entes, o ser-aí entraria em contato com entes por si subsistentes e dele desvelaria características, verdades.
Partindo do fato do humano ser alguém em mundo e que nossa relação com o mundo se dá, de modo primário, através da percepção, Merleau-Ponty decide se utilizar da fenomenologia e de estudos de diversos campos da ciência a fim de entender como acontece a nossa percepção do mundo e como isso se transforma em conhecimento. Ele, assim como Husserl e Heidegger, não concebe uma consciência separada dos objetos, coisas ou entes. A diferença é que ele apreende que o corpo é o centro de relação desse humano com o mundo, o local onde ocorre a percepção e onde a mesma é sintetizada, o que leva o corpo a ser o local onde a verdade nasceria e seria sensível a nós. Corpo e consciência estão juntos. O papel do corpo é sentir em primeira pessoa, enquanto a consciência cria as estruturas de mundos e cria paisagens através dos dados percebidos (3). O que abre espaço para que a cultura (a ciência enquanto cultura também entra aqui) e o comportamento, entendido de modo amplo, do ente perceptor altere a sua percepção do que é desvelado do ente percebido. Contrapondo a ideia de que a visão seria o sentido primordial e que mais extrairia dados do espaço, em Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty descreve que todo o corpo não só extraí, mas reage em conjunto a todos os dados que os sentidos em conjunto extraem do espaço de forma a dar dados suficientes para a consciência criar estruturas e paisagens. A simples leitura da palavra “quente” exigiria que o corpo se prepare e desenhe a quentura que a palavra expressa para que a quentura seja passada para a mente (4).
Tendo em conjunto, como sociedade comum e arquitetos, uma ideia de que somente o olhar capta todo o conteúdo estético de uma obra arquitetônica, experimentamos somente parte da experiência estética da arquitetura e do espaço. Ou seja, através de nossa ideia pré-determinada de que o mundo deve ser apreendido e desvelado pelo olhar, nós reduzimos a arquitetura somente ao foco da visão. Com base em um conceito de apreensão e desvelamento multissensorial da arquitetura, podemos entender e conceber obras que abranjam melhor o corpo do usuário por completo dentro do espaço definido pelas paredes projetadas, de modo a conceber um local que não se transforme num mero instrumento após a apreensão visual de determinadas perspectivas do mesmo.
notas
1
HUSSERL, Edmund. Meditações cartesianas. São Paulo, Mandras, 2001, p. 50.
2
HEIDEGGER, Martin. Introdução à filosofia. Tradução Marco Antonio Casanova. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2009, p. 76.
3
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo, Martins Fontes, 1999.
4
Idem, ibidem.
sobre o autor
Felipe Azevedo Bosi é doutorando em arquitetura pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura da Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestre e bacharel em Arquitetura e Urbanismo pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Espírito Santo, tendo como especialidades história e teoria da arquitetura e estética da arquitetura.