Le Corbusier (1887-1965) esteve no Rio de Janeiro nas três oportunidades em que veio ao Brasil: 1929, 1936 e 1962. A viagem mais produtiva terá sido a segunda porque foi nela que colaborou com o projeto do Ministério de Educação e Saúde, cujo “risco original” lhe foi atribuído por Lucio Costa. Foi também a mais longa estendendo-se por 35 dias: de 10 de julho a 15 de agosto. Muito se escreveu sobre esta estadia uma vez que Le Corbusier interagiu com a intelectualidade brasileira – não só com arquitetos. Manuel Bandeira, por exemplo, tem crônicas memoráveis a respeito.
Parece quase desconhecido o texto que outro intelectual da época – Agrippino Grieco – escreveu sobre a visita do grande arquiteto, texto que foi recolhido no livro Carcaças gloriosas, publicado pela primeira vez em 1937, e que está reproduzido abaixo, na integra (1). O texto mostra as agruras que Le Corbusier passou no Rio com os insistentes professores da Escola Nacional de Belas Artes – ENBA, próximos, “colegas”, mas contrários ao que ele pensava e defendia. Grieco dá um testemunho importante disso e conta, dentre outros aspectos curiosos, que o pintor Di Cavalcanti levou Le Corbusier, que conhecera em Paris em 1923 (no grupo de Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade), para a zona do meretrício, talvez para salvá-lo dos outros (cabarés da Lapa?). Mas será preciso recordar Agrippino Grieco (1888-1973) que, completamente esquecido, acabou se tornando ele mesmo uma carcaça como aquelas que ele quis ridicularizar. Esta observação aguda é de João Luis Lafetá que o considera um escritor “ágil, malicioso e divertido” (2).
Grieco foi um combativo crítico literário carioca da primeira metade do século 20, também diretor da revista de literatura Boletim de Ariel (“mensário crítico-bibliográfico” da década de 1930). Sabia unir humor cáustico e crítica ferina e era temido pelos escritores, mas não sobreviveu porque não chegou a nenhuma solidez de análise, assumindo posições dúbias como, por exemplo, em relação a Machado de Assis (objeto de controvertida obra de 1959). No entanto, mofando nos sebos, os livros de Grieco são uma delícia, assim como eram os seus artigos diários na imprensa carioca entre 1930 e 1950. Mais do que isso: são de grande erudição fazendo com que o leitor não abandone nunca a leitura, o que é a marca do bom jornalismo – e é precisamente nesta dimensão é que Grieco deve ser visto na atualidade.
Ainda assim, na correta opinião de Alfredo Bosi, promoveu uma renovação de nossa crítica cultural (3) ao torná-la menos séria e mais espirituosa, menos retórica e mais irreverente com sua “língua afiadíssima, capaz de tirada mais humilhante para a vítima de ocasião” (4). Nunca se discutiu sua competência analítica, amplamente reconhecida por todos. A comprovar tal reconhecimento e importância, teve as obras completas publicadas pela prestigiosa editora José Olympio no final dos anos 1950, em onze grossos volumes. As Carcaças gloriosas, reeditadas, aparecem como o volume 7, de 1956.
No texto abaixo, a vítima de Grieco – ou, no caso, a “carcaça gloriosa” – não é Le Corbusier, citado por 15 vezes, mas José Fléxa Pinto Ribeiro (1884-1871) que, como conta, quis “monopolizar” o visitante ilustre, tomando o lugar do “cacique” do título. Nascido no Pará, Fléxa Ribeiro (o primeiro nome com acento agudo) foi, por mais de três décadas, professor de história da arte da Escola Nacional de Belas Artes – ENBA, que dirigiu entre 1948 e 1952. Ingressou na escola com uma tese sobre “Rubens e os flamengos”, de 1917. Depois escreveu muitas obras, hoje completamente superadas, como Narciso (da arte, do amor e da morte), nos anos 1920, e, no final da vida, vários volumes de uma História crítica da arte (publicada a partir de 1962) que de “crítica” não tem nada, sendo antes um catálogo de conceitos, estilos e escolas. No primeiro volume, em capítulo de página e meia denominado – pretensamente - “princípios gerais da arquitetura” define-a como a “reunião de leis científicas e de modalidades industriais com finalidade artística”. Impiedoso, Grieco o chama de macaco com fala (“loquela”) de papagaio. Não pode ser confundido com Carlos Octávio Fléxa Ribeiro, seu filho, que foi deputado federal pela Arena.
O texto ainda cita, de passagem, outro professor “passadista” da ENBA. Trata-se de Adolfo Morales de los Rios Filho, cujo pai, professor de Lúcio Costa, projetou o próprio prédio da escola em 1906, considerado, à época, o edifício mais belo da Avenida Central. Pai e filho foram arquitetos renomados. Adolfo Morales de Los Rios Filho (1887-1973), professor de história e teoria da Arquitetura na ENBA desde 1928 (sucedendo ao pai), é autor uma obra extensa – e totalmente acadêmica e clássica, ou, numa palavra, antimodernista – denominada Teoria e filosofia da arquitetura (1955), em dois volumes, na qual define a Arquitetura como “a arte, a ciência e a técnica de conceber, projetar e erigir edifícios e cidades, com utilidade e beleza”. Esteve por longo período na presidência do Conselho Federal de Engenharia e Arquitetura – Confea (1936/1960) e, antes, entre 1929/1930, presidiu o Instituto Central de Arquitetos do Brasil que, fundado em 1924, transformou-se no Instituto dos Arquitetos Brasileiros – IAB, em 1934. No texto é chamado por Grieco de “cidadão ventrudo” com mentalidade de mestre de obras.
Há ainda a citação de outro docente da ENBA. Trata-se de Archimedes Memoria (1893-1960) que se notabilizou pelo projeto “marajoara” para a sede do Ministério da Educação e Saúde, atual Palácio Gustavo Capanema. Ele venceu o concurso de 1935, recebeu o prêmio, mas, por decisão do ministro Capanema, foi preterido na execução pelo projeto modernista de Lúcio Costa e equipe. Dirigiu a ENBA com a destituição de Lúcio Costa em setembro de 1931, por força do revolucionário Salão de Belas Artes, o célebre salão modernista de 31. Foi o momento em que, no dizer de Mário de Andrade, “tudo explodiu” (crônica no Diário Nacional de 4 de outubro de 1931 em que defende o retorno de Lucio Costa à direção da ENBA).
Repleto de mordacidade e ironia em relação aos três professores sabichões (Fléxa Ribeiro, Adolfo de los Rios Filho e Archimedes Memoria), não se pode esquecer, por outro lado, que eles formaram arquitetos-urbanistas como Oscar Niemeyer, Lúcio Costa, Affonso Reidy e outros. Ademais, durante seus estudos, o jovem Costa estagiou no escritório de Heitor de Mello, entre 1919 e 1921, então dirigido por Memoria. Distantes no mundo das ideias, os partidários do neocolonial e do moderno conviveram harmoniosamente nos anos 1920: depois é que se deu a ruptura. Como é consabido, Lúcio Costa só aderiu aos princípios modernistas no projeto da casa Ernesto Gomes Fontes, de 1930.
O texto foi retirado da primeira edição do livro, de 1937, apenas com atualização da grafia original. Optou-se por não se fazer muitas notas para permitir maior agilidade na leitura de documento de 80 anos que, com certeza, terá sido escrito para jornal, ou seja, no calor da hora. Sobre a ENBA, em outro texto do mesmo livro (“Ai do nosso dinheiro!) Grieco critica a aquisição de obras pela escola dizendo que “os cinqüenta contos que se vêm de aplicar na aquisição de produtos dos Verdier [Petrus Verdier, escultor], dos Amoedo [Rodolfo Amoedo, pintor] e dos Brocos [Modesto Brocos, pintor] aí estão evidenciando a fome canina de lucro que move todos esses marceneiros e tintureiros transviados na pintura e na escultura”. Como se vê, ele não contemporizava com o academicismo reinante, devendo-se acrescentar que os três artistas citados foram professores da mesma ENBA, em períodos diferentes.
notas
1
GRIECO, Agrippino. Carcassas gloriosas. Rio de Janeiro, Livraria H. Antunes, s/d (1937), p. 166-173.
3
LAFETÁ, João Luis. Agrippino Griecco. In A dimensão da noite e outros ensaios. Organização de Antonio Arnoni Prado. Prefácio de Antonio Candido. Coleção Espírito Crítico. São Paulo, Duas Cidades/Editora 34, 2004, p. 532.
3
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 3a edição. São Paulo, Cultrix, 1987, p. 547.
4
LAFETÁ, João Luis. Op. cit., p. 532.
sobre o autor
José Roberto Fernandes Castilho é professor do Departamento de Planejamento, Urbanismo e Ambiente da FCT/Unesp.
ENTRE O FLÉXA E A TABA (1)
Agrippino Grieco
Se alguém dá a sensação do talento avulso, fragmentário, talento aos saltos, aos golpes e aos arranhões, esse alguém é Le Corbusier. Nele não são raras, em bruscas improvisações, as intuições que deixam sulco, que abrem janelas para paisagens ignoradas.
Alto, magro, louro, com jeito de inglês, o inovador da “habitação-máquina” seria inteligente e espirituoso até discursando no Clube de Engenharia. Sem aplicar-lhe os adjetivos desonrados pelos repórteres de poucas letras, forçoso é convir que tal arquiteto, um pacote de nervos, um feixe de molas feito homem, diz sempre coisas úteis, mesmo com um bocado de pilhéria, mesmo quando afaga o leitor ou o ouvinte com uma luva de box. E não vai sem certa ideologia em matéria de arquitetura, embora a queira essencialmente senão exclusivamente prática, com mais comodidade que ornamentos, mais preocupação da salubridade que de festões, astrágalos e outros esbanjamentos decorativos.
Para ele, uma usina, uma estação de trem de ferro, valem as catedrais góticas, e acha que o cimento armado colabora em tantas epopeias quanto o mármore ou o granito. Cremos que, nos últimos tempos, as páginas mais interessantes sobre processos de edificar foram lançadas por esse europeu que vê os edifícios não em linhas brancas no papel azul, mas na luz, no ar puro, na sua utilidade humana.
Os nossos ruminadores de Vitrúvio e Vignola que, em assuntos de arte contemporânea, são apenas testemunhas por ouvir dizer e absolutamente nada presenciaram de fato, devem prestar mais atenção a Le Corbusier, um amigo das varandas abertas, que concilia conforto, aproveitamento do terreno e poupança de material, tudo de acordo com o inevitável amontoamento e acotovelamento da cidade de hoje, e arranja para tudo isso uma solução bem novecentista, bem centralizadora, achando, ao contrário da Semiramis dos jardins suspensos, que o jardim pode ficar num vão embaixo do prédio, e achando também que o canapé de madame Récamier (2) pode ser trabalhado com o conteúdo de uma barrica vinda de Portland.
Pois o Sr. Le Corbusier, com suas pernas longas e suas roupas de brim, apareceu por aqui a gesticular, a parolar, entusiasta, vibrante, disposto a escrever sobre o Brasil, a levantar casas para o Brasil. Todavia, desembarcou aqui com a decepção de saber que não lhe pagariam as conferências, diversamente do que acontecera na Argentina, onde suas considerações sobre técnica urbana haviam sido estipendiadas pelo governo. Os nossos engenheiros receavam melindrar o viajante, falando-lhe prosaicamente em dinheiro, e proclamavam que estas palestras deviam ter apenas um caráter de desinteressado intercâmbio cultural (Intercâmbio? Pobre França! Como não seria roubada na troca! Estamos a ver o Sr. Archimedes Memória retribuindo a visita de Le Corbusier e arengando na Sorbonne, a dizer com o ar inspirado de quem soltasse o memorável “eureka”: “Architecte moi-même”...).
Um cidadão ventrudo, simples mentalidade de mestre de obras, acentuava que não ficaria bem isso de pagar a um colega. (Colega? Ainda o pai desse senhor, se é responsável pelo desabamento dos pavilhões da famosa Exposição de Aparelhos a Álcool, no Campo de Santana, e pela queda, mais recente, da torre de uma igreja no Méier, era um homem culto e simpático, havendo construído o edifício da Escola de Belas Artes, talvez o mais belo da Avenida Central, e sendo, com a sua barba e as suas banhas, uma figura pitoresca, senão picaresca, que parecia evadida de uma novela de Quevedo. Mas o herdeiro, herdeiro do nome e dos cobres, só se recomendou até agora, como arquiteto, pela perfeição do Não-Feito, e, a rigor, não tem feito outra coisa na vida senão engordar).
Quanto aos demais confrades, concordaram, contentes em aferrolhar os arames da sociedade de classe. Confrades, aliás, com os mesmos méritos do ilustre Sr. Filho e que têm tanto direito a chamar-se colegas de Le Corbusier como uma tartaruga pode ser equiparada ao corredor de Maratona. Mas o caso é que esses pobres zeros atacados de megalomania, esses canhotos em matéria de estética, acharam já ser muito munificentes pagando as despesas da estada de Le Corbusier entre nós.
Por sinal que o visitante se indignou ao ver-se enjaulado num banalíssimo hotel cosmopolita, viveiro de gralhas e gansos internacionais, ele que preferia alojar-se numa hospedaria barata, característica, à brasileira, restando-lhe a liberdade de mover-se sem ser importunado, podendo comer nas casas de pasto, olhar de perto as raparigas douradas da terra, fazendo, em suma, aquilo que lhe aprouvesse. Isto sem ser agredido pelos entrevistadores mais ou menos pernósticos, papalvos destinados a provar que, se o horizonte do espírito é limitado, o zênite da besteira jamais será atingido e o último que chega irá sempre mais alto que o seu antecessor...
E afinal Le Corbusier falou, na Escola de Belas Artes, sobre a beleza das cidades modernas. Lá estavam a ouvi-lo alguns funcionários (3) do ensino oficial. Falou duas horas e tanto e, para a maioria o auditório, foi como alguém que falasse em grego a um tupiniquim surdo, sendo apenas entendido por meia dúzia e intelectuais em dia com o assunto, tal o irônico e sutil Castro Rabello (4).
Mas o pior é que à saída foi abordado pelo inevitável Fléxa, que espeta em quanto europeu transite por estas plagas. Fléxa, depois de curvar-se em arco diante do pregoeiro de uma arte que, a tornar-se vitoriosa, começaria logo por suprimir os professores à Fléxa – Fléxa convidou Le Corbusier para um jantar em restaurante de luxo. Le Corbusier mal o ouvia, preferindo combinar com o Di Cavalcanti uma refeição na “Cabaça Grande” (5), onde já se tinham empaturrado na véspera, e não passou sem murmurar alguns conceitos desfavoráveis à insistência de Fléxa, macaco com loquela de papagaio. Todavia o nosso camelo Mauclair – sabe-se que ele, muitas vezes, ainda que com o atraso de algumas semanas, se expressa com as mesmas palavras do outro (6) –, o nosso biógrafo de Rubens não ficou contente enquanto não aderiu ao grupo que ia à “Cabaça Grande”. E em caminho, rebolando nas sílabas, extasiava-se com o nome de Le Corbusier, belo nome contorcionado, curvilíneo, nome em voluta, nome que é já em si uma expressiva figura arquitetônica.
No restaurante, tudo lhe era pretexto para editar erudição, a fim de deslumbrar o conviva. A propósito do prato de frios, deteve-se na rodela de salame, falando em Salamina e em Salambô. Perdigotava na sopa do vizinho, e, como lhe trouxessem um pouco de cabrito assado, recusou-se a comer, talvez para não ser antropófago, para comer o seu semelhante. Com uns modos doces de boticário paraense que faz o preconício [= publicidade] do Elixir Agrionado para doentes do peito, o falso esteta começou a tirar o apetite do próximo, recitando pensamentos (?) do seu “Narciso”. Esse mestiço, vaidoso e inútil como um tenor constipado, entulhava-se nos acepipes de resistência e cada vez se tornava mais petulante, qual se tivesse pastado o Larousse e o trouxesse inteirinho na barriga. Não contente em servir amostras de seus produtos literários ao hóspede notável, caiu no terreno da patranha, dizendo, entre outras coisas, que, a fim de exercitar-se em datilografia, costuma traduzir Homero do original para o alemão, em verso alexandrino, isto ao correr dos dedos no teclado da máquina...
O pobre Le Corbusier sentia a digestão estragar-se-lhe e, ouvindo o cacete, fazia uma cara triste de quem chupa um favo de fel. É sempre fatigante o prazer de ouvir o Fléxa e Le Corbusier limitava-se a sussurrar entre bocejos: “Très joli, très joli!...” No fim, o selvagem-humanista, mais sincero do que ao meter-se a dançar o minueto, atirou-se ao maxixe, ameaçando com os cotovelos várias terrinas e inquietando um sujeito caolho que tocava guitarra ao fundo e que nesse dançarino improvisado temia um possível concorrente à espórtula [= gorjeta] dos fregueses.
No dia seguinte à noitada no “Cabaça”, almoço fúnebre no palácio do Jockey, nos domínios onde figura a aristocracia bípede que cultua a aristocracia quadrúpede do picadeiro, aristocracia esta para que falou o arcebispo dom Aquino, fazendo um sermão aos cavalos como Santo Antonio fizera um sermão aos peixes e São Francisco de Assis um sermão aos pássaros. Por sinal que Le Corbusier passou a manhã amoladíssimo com a perspectiva dessa deglutição solene. Chegou tarde, com as calças brancas meio enlameadas, e, sem se desculpar, foi desde o primeiro prato desfechando insolências nos anfitriões, careteando ao engolir um pikles tóxico, que parecia fabricado pelos Bórgias, e vários pratos químicos em que é fértil a cozinha elegante do clube. Quanta gente feia em torno dele, gente que ele desconcertou com as suas tiradas escarninhas!
Ao sair dessa comezaina, uma verdadeira Quaresma do Bom-Humor, o arquiteto deveria estar pensando lá dentro de si próprio que a expressão bíblica “render o espírito” é coisa bem pouco freqüente nestes trópicos e que por aqui os senhores ricos morrem quase todos sem nada restituir, nesse particular, ao Criador. “Ils n’auront pas d’esprit à rendre...”
E, numa caminhada Avenida afora, Le Corbusier, danado da vida, embarafustou por uma tremenda descompostura aos nossos fabricantes de casas de cartonagem, de uma cenografia barata, com amostras de todos os estilos, num furioso delírio de decalque, casas menos interessantes, e denotando menos engenho inventivo que as casas de castor ou mesmo as simples casas de cupim. Foi ao extremo de desejar um pavoroso ciclone para derrubar tudo isto e, enquanto não vinha a catástrofe, arrasou um urbanista que por aqui anda com melenas de pianista de botequim de Montmartre, um pobre diabo classificado em quinto lugar num concurso de arquitetura na Austrália e que, absolutamente míope, sempre de nariz a esborrachar-se de encontro aos mapas, vive a falar em visões de conjunto, em largas vistas panorâmicas (7).
Num dado momento, meteu a mão no bolso e, vendo que só lhe restava algum dinheiro francês, observou que não devia trocá-lo, que não viera ao Rio para gastar, porque afinal o Rio não é nem Atenas nem Florença, e pediu a um dos “confrades” lhe cedesse alguma moeda brasileira. O tal arquiteto ventrudo, Miguel Angelo pelo sovaco, uma vez que as fortes emoções só se manifestam nele através de uma copiosa exsudação axilar, teve, embora rindo amarelo, um gesto heróico, e passou-lhe uma pelega de quinhentos mil reis. Pelega [= cédula de papel-moeda] que Le Corbusier, pouco depois, foi em parte gastar (devo dizê-lo? Ao menos é Di Cavalcanti quem o afirma...) lá para uma zona suspeita em que se levantam palmeira onde nunca ninguém ouviu cantar o sabiá de Gonçalves Dias...
notas
1
GRIECO, Agrippino. Entre o Fléxa e a Taba. In: Carcassas gloriosas. Rio de Janeiro, Livraria H. Antunes, s/d (1937), p. 166-173. Fora de catálogo, o livro está à espera de nova edição.
2
Esta famosa dama parisiense foi retrata por Jacques-Louis David em (c.) 1800, reclinada num canapé. O quadro está no Louvre.
3
No original, “mamamouchis”, título de dignidade, supostamente turco, inventado por Molière em “O burguês fidalgo” (1670) para enganar o Monsieur Jourdain, personagem principal da comédia.
4
Parece referência a Edgar de Castro Rabello, advogado, político de esquerda e professor da faculdade de Direito, tendo sido professor e amigo de Sérgio Buarque de Holanda quando este ingressou no curso da rua do Catete em 1921.
5
Restaurante da rua do Ouvidor, ainda existente, especializado em peixes e frutos do mar.
6
Camille Mauclair (1872-1945) foi historiador do simbolismo, crítico de arte e literato francês.
7
Referência a Lucio Costa? Como se sabe, Costa foi encarregado pelo governo para acompanhar o arquiteto franco-suíço na visita ao Brasil, tendo ido recebê-lo no hangar do Zeppelin.
sobre o autor
Agrippino Grieco (Paraíba do Sul, 1888 – Rio de Janeiro, 1973) foi crítico literário e ensaísta, colaborador de diverso jornais na primeira metade do século 20. Foi um dos fundadores, ao lado de Gastão Cruls, da editora carioca Ariel, que durante os anos 1930 editou a importante revista literária da época, Boletim de Ariel. Seus primeiros artigos publicados em jornais foram são reunidos em dois livros, Fetiches e Fantoches, de 1921, e Caçador de Símbolos, de 1923. Suas Obras completas foram publicadas pela editora José Olympio nos anos 1950, mas sua última obra, Memórias, foi publicada em 1972, pouco tempo antes de sua morte.