A dedicada filha do arquiteto folheia os livros velhos e usados do pai. As anotações marginais ao texto, pequenas e cifradas, algumas em línguas estrangeiras, permitem rastrear o que leu e como assimilou. Filosofia em especial, mais do que arquitetura. E muitas dedicatórias, algumas sérias, solenes, outras brincalhonas, como a de um físico dublê de crítico de arte: “Esse livro é muito pior do que pode parecer à primeira vista”. Fecha o volume, passa as mãos lentamente sobre ele para retirar uma poeira imaginária, convoca lembranças pessoais e coletivas de uma passagem fugaz pela vida, mesmo que duradoura, condição de todos nós, mas que deixou histórias com sentido, com moral, como as fábulas.
A obra
Era uma vez um arquiteto que adorava construir. Em uma bela tarde, acompanhado de um experiente engenheiro calculista e de um jovem estudante, embarca no carro velho e ruma para bairro distante. O sol já se punha quando chegam ao destino. As luzes dos faróis do automóvel revela no breu uma construção de concreto à vista apoiada em apenas quatro apoios, com rampas articulando as lajes dispostas em meios pisos. O engenheiro olha orgulhoso a obra livre das formas de madeira recém retiradas e lhe ocorre que o descimbramento é um momento de suspense maior do que um filme de mistério. Com riso de satisfação revelando os dentes travados, o arquiteto faz uma auto-exaltação: “acaba de ficar pronta a casa moderna de nossa província”. O estudante observa e guarda a lição para a vida.
O escritório
No dia seguinte, logo cedo, o arquiteto que adora construir se posta diante da prancheta e começa a projetar. Com lapiseira de grafite 6B faz traços sobre o papel, articula espaço e estrutura, puxa detalhes no canto do papel, observa os rabiscos, medita com o queixo apoiado na palma da mão e o cotovelo encravado sobre o tampo da mesa, retoma as linhas, para e continua... Chama uma estagiária, sua aluna no curso de Arquitetura e Urbanismo, a quem conhece desde pequena, quando transformou as garatujas do pai em um projeto exemplar de residência. Coisa de amigo, de companheiro, de camarada. A menina atende de pronto, ouve com atenção as recomendações e começa a passar a limpo os croquis do arquiteto usando tecnígrafo, esquadros, compasso, escala. Sabe que terá que fazer mais do que uma vez, pois a primeira versão nunca passa pelo crivo exigente do chefe. Mas sabe também que ele explicará cada detalhe, como desenvolver corretamente a ideia, uma aula só para ela, impossível de se ter na escola. A porta se abre e entra um rapaz risonho e comunicativo, acompanhado de outro, da mesma idade, mais introspectivo. Ingressaram juntos no curso de arquitetura, mas o primeiro abandonara a escola para se dedicar ao teatro. Tinha passe livre no escritório – o arquiteto havia projetado a casa onde crescera, era amigo do seu pai – e trazia o ex-colega para mais uma conversa sobre arquitetura. Mesmo estudando na escola rival, o estudante introspectivo poderá dizer no futuro, quando for arquiteto dono de obra consistente, que foi aluno do mestre.
A escola
O arquiteto que adora projetar e construir gosta muito de ensinar. Enquanto lá fora, do outro lado dos muros da universidade, o Reino vive anos de ebulição social e política, o arquiteto dublê de professor se coloca a missão de organizar a Tese de Graduação Interdisciplinar – o TGI. Naquela tarde, depois de passar a manhã no escritório, chega especialmente animado, sem ainda saber que era seu último dia no ateliê do quinto ano. Dispõe os alunos em roda e pergunta a cada um “qual é sua tese?” Diante das respostas, indica a bibliografia específica e geral – a geral é em regra a mais importante em sua avaliação, pois conecta o aluno com o pensamento crítico, fundamental para atuar na sociedade. Para animá-los, mostra alguns dos livros que está lendo e exibe com sorriso satisfeito as páginas lidas e anotadas. Se ele, professor e arquiteto renomado, estuda com dedicação, por que os meninos não o fariam também? As conversas semanais estão apenas começando, faz um mês e meio que iniciou o ano letivo. Afobada, sem se desculpar, entra uma funcionária sacudindo uma folha de papel com timbre e texto datilografado. O professor pega o documento e lê seu conteúdo com atenção. Lê e relê por diversas vezes. “Eu acabo de ser aposentado compulsoriamente” – diz, cortando o silêncio constrangido dos alunos – “não sou mais professor de vocês”. A um dos alunos ocorre que a possibilidade fantástica de participar dessas conversas e desenvolver seu trabalho ao longo de um ano já não se cumprirá.
A festa
A porta se abre pela enésima vez e retardatários entram na festa que já rola solta, com o vozerio estridente ecoando pelos espaços integrados de salas e varanda. Grupos aqui e acolá, misturando arquitetos, artistas, intelectuais, políticos. Eufóricos, os jovens estudantes comentam a maquete que estão terminando do pavilhão brasileiro para exposição internacional no extremo oriente. Estavam incumbidos do terreno ondulado, que abriga atividades no subsolo e sustenta a estrutura arrojada de concreto armado que esvoaça em vão imenso. O autor da obra prima, jovem promissor, vinha da outra escola, mas já estava totalmente atrelado às novas ideias e sua obra era um elogio ao mestre. O arquiteto que gosta de projetar, de construir e de ensinar, anfitrião da festa e autor da casa onde mora com esposa e casal de filhos, se posta diante do piano e pergunta quem toca o instrumento. Se apresenta um jovem estudante, nissei, tímido, que ouve com atenção o que murmura o professor em seu ouvido. Os dedos tocam as teclas com destreza e as músicas do cantor e compositor carioca que encarna o samba preenchem o ambienta com ginga e alegria, acompanhadas pelo canto miúdo do arquiteto, logo seguido pelo coro dos convivas. O arquiteto circula entre os amigos cantarolando no ritmo da música. Seu sorriso não esconde o olhar grave diante da tragédia pessoal que acaba de lhe acometer. Sem saber que o pior ainda está por vir – o exílio e a escassez de trabalho – serve da garrafa que traz nas mãos vinho aos convidados mais próximos. E a todos, palavras de conforto: “isso passa, isso vai passar...
nota
NA – Essa pequena fábula é baseada nos depoimentos de Rosa Artigas, Paulo Mendes da Rocha, Marcos Acayaba, Ruy Ohtake, Vera Lucia Domschke e Francisco Petracco por ocasião do lançamento do livro Vilanova Artigas – casas paulistas, de Marcio Cotrim, edição da Romano Guerra Editora, que aconteceu no dia 6 de abril, quinta-feira, das 19h às 22h, no IAB-SP. Foi apresentado aos convidados o convite para comentarem situações compartilhadas com Vilanova Artigas, que pudessem apresentar ao público seu modo de ser mais cotidiano. O texto omite os personagens e adultera a ordem cronológica fundindo fatos de épocas diferentes com a finalidade de se apresentar a “moral da história”, como toda fábula.
sobre o autor
Abilio Guerra é professor de graduação e pós-graduação da FAU Mackenzie e editor, com Silvana Romano Santos, do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora.