As teorias de restauro, seus pensadores – mestres e militantes –, os inúmeros documentos e cartas com prescritivas de salvaguarda e conservação do passado vêm, ao longo da história, observando e analisando as ações de intervenção e buscando encontrar o equilíbrio entre antigo e novo; buscando encontrar os limites para a ação diante do monumento. Esses limites derivam da consciência e compreensão adquiridas a partir do conhecimento a fundo sobre o monumento, seu reconhecimento como obra de arte, juízo crítico de seus valores artísticos, históricos e simbólicos e garantia de sua transmissão às gerações futuras.
No livro Architettura d’Oggi e Restauro. Un confronto antico-nuovo, Giovanni Carbonara procura definir justamente esse papel da arquitetura contemporânea junto aos monumentos do passado, como forma de avaliar o diálogo entre antigo e novo em intervenções na preexistência edilícia. Partindo da argumentação dos principais teóricos do campo, o autor reflete sobre o cenário atual concluindo que há uma falta de unidade de método entre restauro e projeto do novo e enfocando que é necessário um conhecimento especializado das teorias de restauro, crítica arquitetônica e conceitos da filosofia para afrontar as ações de conservação.
O ponto central desse diálogo é o limite que se coloca sobre a criatividade projetual e o restauro arquitetônico. Recordando que o restauro é uma atividade crítica e criativa, o arquiteto necessita de sensibilidade, competência, respeito e capacidade de “escutar” o monumento. Ou seja, o que o monumento quer dizer ao arquiteto? Quais são seus valores de arte e de história? Quais são seus valores espirituais? São esses valores que justamente estabelecem o limite entre a criatividade e a ação de intervenção.
Quando não sabemos escutar não conseguimos estabelecer o diálogo e, segundo o autor, entre antigo e novo se cria uma relação ambígua onde a preexistência é manipulada para que possa dar condições do agenciamento do novo projeto.
A breve introdução discorre sobre premissas que definem o campo disciplinar do restauro atual, com ênfase para os princípios do Restauro Crítico Conservativo (1), herdeiro direto do Restauro Crítico e da Teoria da Restauração (2) de Cesare Brandi, que tem em Giovanni Carbonara seu maior expoente na atualidade.
Nos dois primeiros capítulos, o autor aborda o estado atual da questão em torno das discussões do confronto entre antigo e novo – tema central do livro, reunindo não só suas considerações, mas de outros teóricos do campo, como Francesco Dal Co, Ascención Hernandez Martinez, Claudio Varagnoli, Vittorio Gregotti, Leonardo Benevolo, Renato de Fusco, Beatriz Mugayar Kühl, Paolo Portoguesi, Peter Blake, Marc Augé, onde traça um panorama do cenário internacional atual, confrontando opiniões e principalmente exemplificando os debates através da própria produção arquitetônica. Obras como Auditorium Niccolò Paganini de Renzo Piano em Parma, Museu do Ara Pacis em Roma de Richard Meier, Torre Agbar em Barcelona de Jean Nouvel e B720 Arquitetos, Centro Histórico de Varsóvia, Sede da Worshipful Company de Haberdasher em Londres de Michael Hopkins, Ministério da Cultura e das Comunicações de Paris de Francis Soler, Abu Dabi, Teatro Marrinsky em São Petersburgo e Dominique Perrault, só para citar alguns, ilustram a discussão e exemplificam os diálogos diversos entre as arquiteturas de diferentes épocas seja na escada do edifício ou da cidade.
Chama atenção para os atuais abusos em relação ao patrimônio, frutos da indústria do consumo, do ócio e da arquitetura midiática, que dão um novo papel ao passado frente à arquitetura do presente: servir como suporte para essas novas manifestações de grande carga simbólica.
Embasado na Teoria da Restauração de Cesari Brandi, Giovanni Carbonara coloca que a obra a ser restaurada deve ser reconhecida primeiramente como obra de arte e nesse sentido se pergunta: com qual direito se inserirá algo de novo em uma obra de arte do passado? (p. 70)
É correto afirmar que qualquer ato de conservação ou de restauro provoca uma modificação na matéria original. E esse é o problema central do restauro: como operar essa modificação mantendo a premissa “conservar e revelar valores”? O capítulo 7 faz uma profunda reflexão sobre a metodologia de restauro, propondo ainda a conceituação do termo e de outros como repristino, refazimento, reparação, reinvenção, revitalização, reciclagem, reuso, recuperação. O autor é preciso em suas definições e sua narrativa não deixa dúvidas ao leitor: cada termo tem seu significado e cada significado representa uma ação diferente materializada na obra de arte.
Tendo o problema exposto, a teoria como suporte e a unidade de método, Carbonara inicia um percurso sobre os limites da modificação do antigo face à aproximação do novo e constrói categorias de intervenção, como metodologia de análise das obras e compreensão da produção internacional.
Ao introduzir suas categorias e exemplos de intervenção, Giovanni Carbonara faz referência aos estudos de Claudio Varagnoli (3) que, em 2002 foi o primeiro a traçar uma tentativa de definição de categorias de análise de interpretação das intervenções na preexistência (4) e a Lucia Serafini que, no Congresso Antico e Nuovo. Architetture e Architettura, realizado em Veneza em 2007 (5), faz um breve aceno sobre algumas modalidades de intervenção.
Carbonara embasa sua classificação em categorias distintas do diálogo antigo-novo, algo que o próprio autor chama de provisório pela natureza do tema, “fenomeni osmotici dove tutto dipende dalla concentrazione salina dei diversi liquidi messi in comunicazione” (“fenômenos de osmose, onde tudo depende da concentração salina dos diversos líquidos em comunicação”, p. 111). São cinco categorias que, por sua vez, são divididas em subcategorias que partem, no sentido progressivo, da avaliação da capacidade de respeito, do compromisso com o monumento, do juízo crítico do mesmo ao rigor metológico aplicado na intervenção.
A primeiras delas “Autonomia / Dissonanza”(autonomia / dissonância), é dividida em três subcategorias – Contrasto / Opposizione; Distacco / Indifferenza; Distinzione / Non Assonanza (Contraste / oposição; destaque / indiferença; distinção / não assonância) – e caracteriza-se por intervenções que vão da discordância linguística entre antigo e novo, inserções que assemelham-se a contaminações ou convivência parasitária à total autonomia entre a arquitetura do passado e a nova arquitetura (p. 111-115). Em geral, essas intervenções são pautadas na mudança de uso do monumento original e em menor respeito pelas instâncias estética e histórica. Em um panorama geral, aproximam-se mais de uma mera intervenção na preexistência e afastam-se do que poderia ser chamado de restauro. Exemplos dessas categorias são os projetos Royal Ontario Museum (Toronto, Canadá), Museu de Moritzburg (Halle, Alemanha), Mercado Velho de Ortigia (Siracusa, Itália).
Na categoria “Assimilazione / Consonanza” (assimilação / consonância), também dividida em três subcategorias – Mimesi / Ripristino; Analogia / Tradizione; Restituzione tipológica (Mimese / repristino; analogia / tradição; restituição tipológica) –, as intervenções baseiam-se na apreensão do repertório linguístico fornecido pelo passado através do repristino, da recuperação dos princípios compositivos ou do arquétipo linguístico do monumento (p. 115-118). Nesses casos, há uma prevalência da manutenção do uso original do edifício, porém o rigor e juízo crítico em relação aos princípios de restauro e às instâncias estética e histórica ficam comprometidos. Entre os exemplos citados estão: Igreja Frauenkirche (Dresden, Alemanha), Banco da Espanha (Madri, Espanha), San Michele in Borgo (Pisa, Itália).
A terceira categoria é aquela onde se encontram as modalidades do verdadeiro e próprio restauro crítico-conservativo. Em “Rapporto dialettico / Reintegrazione dell’immagine” (relação dialética / reintegração da imagem) onde encontramos as subcategorias Dialettica critico-creativa / Reinterpretazione; Filologia Progettuale / Coestensione e Reintegrazione dell’immagine / Accompagnamento conservativo (Dialética critico-conservativa / reinterpretação; filologia projetual / coextensão; reintegração da imagem / acompanhamento conservativo), há um maior rigor na aproximação do antigo-novo; as intervenções são fundamentadas na correta leitura do monumento, na compreensão da sua história e seus valores estéticos pois, nas três tipologias, com cargas diferentes de interpretação, é o próprio monumento que dá as diretrizes para a arquitetura contemporânea interagir com o passado. Nas subcategorias citadas encontramos os projetos Passarela do Campo Carleo (Roma, Itália), Ospedale de Santa Maria della Scala (Siena, Itália), Igreja da Santa Cruz de Medina de Rioseco (Valladolid, Espanha).
Na categoria “Non-intervento direto” (intervenção não direta), dividida em Conservazione imateriale / presentazione e Intervento ‘ambientale’ / sistemazione indireta (Conservação imaterial / apresentação; intervenção ambiental / ordenamento indireto) são agrupadas as ações de caráter minimalista, onde a intervenção edilícia sobre o monumento é quase inexistente. Os exemplos citados incluem os projetos da organização dos restos da Chiesa Madra e Piazza Alicia em Salemi (Trapani) e o caminho arqueológico do Muro de Cefalù (Palermo).
A última categoria – “Casi Particolari” (casos particolares), engloba intervenções na preexistência de caráter especial e não inseridas em nenhuma das categorias anteriores. É o caso do “restauro do moderno” –, uma vez que o moderno passa a fazer parte da história e está sujeito à ação do tempo e ao juízo de valor adquirindo caráter de monumento. O restauro do Edifício Pirelli em Milão é descrito como exemplo paradigmático nessa categoria.
Ainda encontramos as subcategorias “restauro urbano”, “restauro de parques e jardins” e “cópia dos monumentos históricos”, cada uma delas inserida na discussão inicial descrita, mas, também, sujeitas a um alargamento das questões com características particulares em cada caso.
O restauro urbano não trata mais do monumento como um só, mas também do conjunto formado pelos monumentos e pela ambiência dos mesmos no tecido urbano. Os agentes e critérios envolvidos são mais complexos e diversificados, podendo envolver desde a intervenção em uma praça, uma quadra, ou um bairro inteiro. Exemplos não faltam: Praça do Complexo de Santo Stefano em Bolonha, Mercado de Santa Caterina em Barcelona, centro de Colletta di Castelbianco (Savona).
No caso do restauro de parques e jardins, os protagonistas são matéria viva e em constante mutação. Nesse Caso, Giovanni Carbonara coloca que o conceito mais importante para esse tipo de intervenção a se levado em conta é a autenticidade. O autor destaca o trabalho de Franco Zagari.
E por fim, em “cópia dos monumentos históricos”, uma categoria recorrente em cidades com turismo em massa, com finalidade pedagógica, como a reconstrução do Pavilhão de Mies van der Rohe para a Exposição Universal de Barcelona de 1929.
Ao final do estudo, Carbonara conclui que toda realização onde há a interação entre antigo e novo deve partir de critérios bem definidos a partir do campo disciplinar do restauro, mas também alerta que ainda, na prática o que acontece é que “è il nuovo a dettare le regole e a dare rinnovato senso alla preesistenza, con il che ci si coloca súbito fuori del restauro, per il qual la preesistenza costituisce già in sé e per sé um valore” (“é o novo a ditar as regras e a dar sentido renovado à preexistência, com o que nos colocamos imediatamente fora da restauração, para a qual a preexistência constitui já em si e por si um valor”, p. 139).
Lembra que toda ação é conduzida pelo arquiteto e dessa forma, fechando sua linha de pensamento, o autor escreve um capítulo dedicado a importância do arquiteto “restaurador” e sua formação. Como não existe resposta correta para à problemática que se estabelece e cada projeto de restauro deve ser analisado caso a caso; é a interpretação que fazemos deles, segundo Carbonara, é que conduzirá a obra a um bom êxito ou não. Ou seja, o arquiteto está no centro das decisões de projeto e assim sendo voltamos a importância de “capacidade de escutar”. Quando nos colocamos resilientes diante do passado, compreendemos seus valores intrínsecos, sua vocação funcional, enxergamos a sua beleza artística, histórica e simbólica. Desenvolvemos capacidade de escutar e estabelecer juízo crítico com a obra, alcançando rigor metodológico e limite criativo para um bom projeto de restauro.
Como conclusão, Giovanni Carbonara, pontua pontos de reflexão como a relação da hipermodernidade frente à arquitetura antiga, cidade histórica x contemporaneidade globalizada, a gestão e financiamento da tutela do patrimônio, as questões de sustentabilidade ligadas à salvaguarda, a complexidade dos fatores culturais inerentes dos sítios objetos de intervenção. Salienta que o tema exposto não tem a pretensão de dar as respostas definitivas aos problemas debatidos, mas orientar um trabalho de pesquisa, discutir e sugerir premissas emergentes no campo disciplinar do restauro atual.
E não podemos deixar de comentar sua bibliografia de referência que é bastante completa. Facilitando o trabalho de qualquer pesquisador na área de patrimônio: as referências incluem obras sobre teoria, história, arte, arquitetura, filosofia, crítica, cultura, arquitetos, obras arquitetônicas, entre outros.
notas
NE – todas as traduções do italiano para o português presentes no texto são da autora da resenha.
1
O Restauro Crítico-Conservativo apresenta uma base sólida e homogênea não só aplicável na arquitetura, mas, também, nas artes aplicadas, aproximando a teoria da prática e oferecendo orientações onde predomina o rigor crítico-metodológico na busca pelo adequado controle nos diálogos entre antigo e novo.
2
Publicada pela primeira vez em 1963. BRANDI, Cesare. Teoria da restauração. Tradução Beatriz Mugayar Kühl. São Paulo, Ateliê Editorial, 2004. Resenha do livro: CUNHA, Claudia dos Reis e. A atualidade do pensamento de Cesare Brandi. Resenhas Online, São Paulo, ano 03, n. 032.03, Vitruvius, ago. 2004 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/03.032/3181>.
3
VARAGNOLI, Claudio. Edifici da Edifici: la ricezione del passato nell’architettura italiana, 1990-2000. L’industria delle costruzioni, Roma, anno XXXVI, n.368, p. 4-15, nov./dic. 2002.
4
O autor também cita os estudos estrangeiros de Beatriz Mugayar Kühl (São Paulo, Brasil) e Ascención Hernandez Martinez (Zaragoza, Espanha).
5
SERAFINI, Lucia. Sopra, accanto, con l’antico. Il destino della preesistenza nel restauro contemporaneo. In: FERLENGA, Allberto; VASSALLO, Eugenio; SCHELLINO, Francesca (org.). Antico e Nuovo. Architetture e Architettura. Atas da Convenção “Antico e Nuovo. Architetture e Architettura”, Venezia, 2004. Padova, II Poligrafo, 2007, p. 953-969.
sobre a autora
Patricia Viceconti Nahas é arquiteta (FAU Mackenzie, 1998), mestre em Arquitetura e Urbanismo (FAU Mackenzie, 2008) e doutora em História e Fundamentos de Arquitetura e Urbanismo (FAU USP, 2015), com ênfase em preservação e conservação do patrimônio arquitetônico no Brasil.