De acordo com Chico Mendes, Francisco Veríssimo e William Bittar (1), “em história, todos os acontecimentos são consequência de um processo e, naturalmente, exercem influência sobre vários outros [processos]”. Considerando a história da cidade, o conjunto de fatores que contribuiu para o surgimento e desenvolvimento da cidade industrial foi a semente que mais tarde germinaria como a alteração radical da forma urbana no século 20. Essa alteração, segundo Christian de Portzamparc (2), correspondeu à “Segunda Era da cidade”, caracterizada pela “explosão do tecido urbano” (3) na qual os vazios urbanos predominam sobre os cheios, rompendo com a densidade construída da cidade tradicional. Neste sentido, a obra aqui resenhada Formes Urbaines: de l’îlot à la Barre, cujo título da versão em português é “Formas urbanas: a dissolução da quadra” busca investigar a relação edifício-quadra-cidade e compreender criticamente os ideais urbanísticos que conformaram a ideologia de cidade proposta pelo Movimento Moderno.
Ao longo de 186 páginas, o livro é dividido em oito capítulos, dentre os quais os quatro primeiros tratam de uma experiência urbanística europeia distinta – o Plano de Haussman para Paris, as cidades-jardim de Londres, os projetos de extensão de Amsterdã, e a proposta de Ernst May para Frankfurt. O foco é a descrição física dos modelos espaciais decorrentes de cada uma dessas experiências, a partir da configuração do conjunto edificado na quadra, módulo básico da composição do tecido urbano. Nesse intervalo, os autores estudam a evolução do espaço central da quadra, destacando suas propriedades formais, comparando-as quando possível entre si, ao tempo em que se evidenciam suas singularidades e/ou a influência de um modelo sobre o outro. O objetivo é entender de que maneira o edifício foi se dissociando do tecido urbano, até culminar com o desaparecimento da noção de quadra tradicional, tratado no capítulo cinco, cuja expressão máxima foram as Unidades de Habitação propostas por Le Corbusier. Essa intenção fica clara já no primeiro trecho do capítulo introdutório, quando Panerai sugere que “se fosse necessário uma palavra para definir este estudo, esta palavra seria agonia. [ou seja] A agonia de uma organização espacial determinada: a quadra” (4).
O capítulo seis, por sua vez, investiga as possibilidades de práticas que os diferentes tipos de quadra estudados podem permitir. Assim, constata-se que do primeiro ao quarto capítulo, o centro da quadra aparece como um terreno fornecido à apropriação de seus habitantes. A quadra aparece, portanto, como uma unidade que neutraliza os efeitos de uso dos moradores, tendo o poder de esconder ou mostrar aquilo que é praticado no seu núcleo pela coletividade. As Unidades de Habitação, no que lhe concernem, são indiferentes às práticas coletivas (5). Neste caso, os espaços livres internos às quadras, são substituídos pelos pilotis, que pouco a pouco passam a ser convertidos em estacionamentos, contradizendo o princípio do espaço de apropriação do pedestre. Assim, os autores frisam que toda referência a uma vida urbana de um bairro tradicional é abolida: não há mais esquinas, perde-se a noção do “em frente e ao lado” (6). Deste modo, citando Solà-Morales (7), que prefaciou o livro, “o reconhecimento arquitetônico dos tecidos urbanos e dos valores de urbanidade que eles testemunham [...] são as armas teóricas que o texto utiliza contra o esquematismo do urbanismo funcionalista”.
No capítulo sete, investigam-se os ideais que determinaram os modelos formais adotados na produção da quadra em cada um dos contextos urbanos estudados nos cinco primeiros capítulos. Esse processo, os autores notificam, foi a consequência de importantes modificações na economia europeia. Também foi, simultaneamente, um dos fatores promoveram tais modificações, na medida em que a arquitetura, ao condicionar a vida quotidiana do habitante, “acentua ou acelera transformações sociais” (8).
Por fim, o capítulo oito é uma reflexão sobre a atual maneira de se construir as cidades. Nesse seguimento, os autores sinalizam acerca da falta de preocupação de empreiteiros e agências públicas para com o ambiente urbano, fato que implicou posteriormente em erros urbanísticos quem impactaram negativamente sobre a sociedade. Assim, alertam para a importância da retomada de algumas lições do tecido urbano tradicional que o advento da modernidade ofuscou, como uso misto de atividades, acessibilidade a diferentes públicos e adaptabilidade dos edifícios a uma vizinhança em constante transformação. Essa retomada, no entanto, está longe do resgate da estrutura da quadra tradicional, o qual é duramente criticado já na introdução da obra, quando Panerai cita a associação puramente formalista da pós-modernidade em projetos de renovação urbana (9).
Segundo os autores, “é preciso partir de uma nova perspectiva para reencontrar a lógica elementar do tecido urbano.” Esta nova perspectiva é a rua, ora, é por meio do diálogo entre ruas e parcelas construídas que se funda a existência do tecido urbano. “É a rua que distribui, alimenta e ordena a edificação”. E por fim, “é na permanência dessa relação [...] que reside a capacidade da cidade de se adaptar às mudanças demográficas, econômicas e culturais durante seu processo evolutivo” (10).
notas
1
MENDES, Chico; VERÍSSIMO, Francisco; BITTAR, William. Arquitetura no Brasil: de Dom João VI a Deodoro. São Cristóvão, Imperial Novo Milênio, 2011, p. 11.
2
PORTZAMPARC, Christian de. A terceira era da cidade. Óculum, n. 9, Campinas, FAU PUC-Campinas, 1997.
3
PANERAI, Philippe. Préface. In: PANERAI, Philippe; CASTEX, Jean; DEPAULE, Jean-Charles. Formes urbaines: de l’îlot à la barre. 2ª edição. Marseille, Parenthèses, 2012, p. 12.
4
Idem, ibidem, p. 11.
5
PANERAI, Philippe; CASTEX, Jean; DEPAULE, Jean-Charles. Formes urbaines: de l’îlot à la barre. 2ª edição. Marseille, Parenthèses, 2012, p. 150.
6
Idem, ibidem, p. 134.
7
SOLÀ-MORALES, Manuel de. Avant-Propos. In PANERAI, Philippe; CASTEX, Jean; DEPAULE, Jean-Charles. Formes urbaines: de l’îlot à la barre. 2. edição. Marseille, Parenthèses, 2012. p. 6-7.
8
PANERAI, Philippe; CASTEX, Jean; DEPAULE, Jean-Charles. Op. cit, p. 153.
9
Idem, ibidem, p. 12.
10
Idem, ibidem, p. 184.
sobre o autor
Emanoel de Lucena é arquiteto e urbanista (UFPB/2017), mestrando em Produção e Apropriação do Edifício e da Cidade (PPGAU–UFPB), bolsista Capes (2018-20) e membro do Laboratório de Pesquisa, Projeto e Memória – LPPM, vinculado ao Departamento de Arquitetura do Centro de Tecnologia da Universidade Federal da Paraíba.