Falar de alguém com quem se teve proximidade na vida nem sempre é tarefa fácil, na medida em que nossas racionalidade e sensibilidade tomam caminhos de certa forma autônomos, escapando do nosso “controle absoluto”. No meio acadêmico, no qual tanto eu quanto o Marco do Valle estivemos e estamos inseridos, trilhar esse caminho é sujeitar-se à rejeição pelos pares, pois ele se distancia da comodidade da “aplicação sistemática do método científico”, tão caro ao ambiente acadêmico.
Contudo, esta pode ser uma boa oportunidade de construir uma narrativa na primeira pessoa, referindo-me, então, a uma terceira pessoa de forma pessoal e comprometida. E foi por esse princípio que resolvi “visitar” a trajetória de trabalho do Marco do Valle, meu colega, companheiro e amigo, procurando traços que identifiquei como comuns em nossas duas trajetórias de produção, pesquisa e reflexão. Talvez com isso eu não cubra todos os aspectos de sua vasta obra e atuação, o que seria pretensão da minha parte, dada a diversidade e extensão de sua produção, mas me atenho somente àquilo que julguei nos tenha sido comum. Ofereço, então, um olhar que de neutro não tem nada: é, sim, engajado e comprometido com diversos pressupostos e profissões de fé relativos à arte, à arquitetura, à profissão e, por que não, à vida.
Marco do Valle, aqui nosso protagonista, foi arquiteto de formação e exercício, e artista por opção e circunstâncias.
De fato, o universo das artes surgiu primeiro em sua trajetória por seus ostensivos talento e interesse, já muito cedo manifestados, tendo sido por esse intermédio que ele resolveu optar por estudar arquitetura como formação universitária, talvez por sentir que essa formação, mais do que um segundo segmento profissional e de trabalho, já que a arte era o primeiro, convergia para seus interesses e habilidades e poderia, como de fato o fez, enriquecer e fortalecer seu desejo de expressão artística, sua maneira particular de decodificar culturalmente o mundo em que viveu.
Assim como em sua produção expressiva, e pela vocação de criador, a arte, mais especificamente a escultura, foi o ato genético e fundador da sua ação, além de ter sido também sua aproximação e inclusão na Universidade enquanto docente e pesquisador. O professor Marco do Valle inseriu-se no então curso de Artes Plásticas da Unicamp, pelas mãos de seus pares artistas, num curso e Universidade na ocasião bastante jovens quando ele, também jovem ainda, já era um escultor de fato e exercício. Ele foi, assim e sempre, um artista-arquiteto. Nisso, para essa minha matriz de leitura, diferimos apenas na preponderância hierárquica dos fatores, pois prefiro me qualificar como arquiteto-artista.
Sua matéria-prima de trabalho, que se destaca como um seu forte elemento identitário e diferenciador, foi aquela que sempre protagoniza a arquitetura, a saber, o espaço em seu amplo sentido. Então, torna-se interessante observar que nós humanos construímos apenas para qualificar o meio no qual estamos inseridos e do qual nos apropriamos, qual seja, o espaço, o oco, o vazio. Ao preenchermos e delimitarmos esse vazio – que nos cerca e no qual estamos irremediavelmente imersos – com nossas ações construtivas conferimos a ele, o vazio, qualidades e significados que não lhes eram inerentes, que ocorrem por nossa ação e na relação com ele. São essas qualidades resultado de nossas ações construtivas. As singulares escala, proporção e forma, meios de aproximação do artista Marco do Valle com e no espaço, são questões centrais e fundantes também para a arquitetura enquanto fenômeno humano, além de terem sempre definido e conferido, como já dito, peculiar identidade aos artefatos artísticos concebidos pelo nosso protagonista, como suas esculturas.
O que pretendo destacar nesse aspecto é que os instrumentos mentais, conceituais, metodológicos e técnicos próprios da arquitetura sempre estiveram presentes na obra artística do Marco do Valle, da mesma forma e na mesma medida pela qual os correspondentes instrumentos das artes visuais, particularmente os da escultura, sempre mediaram seu aporte com a arquitetura. E ele de fato interferiu e deixou sua marca nesses dois segmentos, mas não o fez somente nessas áreas. Sua relevância cultural foi mais ampla e abrangente.
Costumamos dizer, não sem fundamentos, que a arte e a arquitetura são projeções de uma personalidade criativa. Nesse aspecto Marco nos demonstra cabalmente essa verdade. Sua personalidade sempre foi rigorosa, firme e viril. Nunca foi pessoa de ceder facilmente às opiniões alheias, especialmente se contrárias às suas. Não era “fácil de dobrar”, como dizemos, e sempre assumiu posições fortes na defesa intransigente de seus pontos de vista, quer como pessoa e cidadão, quer como profissional, e inclusive como professor. Tanto seus alunos quanto seus colegas e aqueles que com ele compartilharam a vida sabem do que estou falando! O Marco tinha fama de briguento e difícil, o que não conquistou de graça. Porém, cabe destacar que ele, muitas vezes, também sabia parar para ouvir, e em alguns casos, rever suas posições, e disso dou testemunho. Não foram poucas as vezes que divergimos, porque ambos somos sujeitos ao erro, visto que somos humanos, mas, apesar de nossas divergências, sempre nos acertamos ao longo do caminho, ou por tolerância ou por respeito, de onde, creio eu, nasceu entre nós um sentimento mútuo de respeito.
Esse rigor de caráter do Marco é o mesmo rigor formal que pode ser observado em toda sua obra artística. Sua construção foi, no mais das vezes, geométrica, precisa, rigorosa, sem concessões fáceis ou dissimulações. Suas formas esculturais se desenvolvem marcando presença no espaço, numa dimensão monumental, quando o caso determinou, mas também deixando transparecer o toque sensível do artista ao se expressar em artefatos de outra natureza e concebidos para meios diversos. Os significados impressos em suas obras são intensos e sintéticos, como se fossem ditos com poucas e fortes palavras, mas sempre ajustadas ao lugar correto e expressando convicções firmes. O domínio da geometria e a apropriação das regras desse conhecimento como diretriz de criação geraram formas limpas, puras e precisas, sendo essa área do conhecimento também, a meu ver, uma ponte de contato que se estabeleceu entre a sua arte e a arquitetura, impressos na “construtividade” dessa sua arte. Sua estética não necessitou de complementos formais. Seus materiais de suporte expressivo são aqueles empregados no universo industrial, ou em sua forma pura e já enquanto artefatos produzidos, sem simulacros que os disfarcem.
A dimensão desse seu construir, bem como a adoção de determinadas técnicas de execução, criam outro vínculo a um meio caro à arquitetura, qual seja, a da realização artesanal por um compromisso manual com o fazer e suas ferramentas. A ferramenta entendida e sentida como extensão do corpo humano que potencializa a capacidade mental de operar, de intervir, de transformar seu meio, de fazer, de produzir. Isso me parece evidente especialmente em suas ferramentas maximizadas, por ele apropriadas e ressignificadas como objetos escultóricos, especialmente em sua série “Melancolias”. Não é por acaso que as ferramentas por ele então escolhidas são aquelas comuns aos ofícios vinculados à atividade de construção, especialmente à carpintaria tradicional e aos ofícios mecânicos. Ali também sua forma de expressão, sua linguagem, é nua e crua, precisa, limpa e rigorosa. Mas cabe desde já ressaltar que existem outros vínculos determinantes dessa adoção assentes em suas crenças, militância e visão de mundo.
Sua obra não nasce de uma operação espontânea e gestual, de forma mais livre. Longe disso, ela é fruto de uma profunda imersão mental e de uma complexa operação de projeto. Projeto entendido como antevisão de algo que se quer plasmar, que se quer construir, e para tanto se anteveem todas as ações de confecção, coordenando processos e simulando as operações para evitar erros possíveis e avaliar os resultados daquilo que se quer lançar para adiante e introduzir no mundo. É, assim, uma operação de controle mental e intelectual e, em última instância, de tomadas sequenciais de decisões.
Marco procede sempre como arquiteto que é, definindo os artefatos que compõem sua linguagem poética por aproximações sucessivas e tentativas e erros dirigidas por um desejo expresso que, aos poucos e sucessivamente, por experimentações, vai plasmando uma nova entidade material. O seu processo de decisão, no que se pode inferir pelos documentos disponíveis aos quais tive acesso, obedecem à lógica do processo compositivo, dentro do universo do projetar, embora também sejam evidentes as suas aproximações e contatos com a ideia de síntese, cara ao pensamento modernista. Ele percorreu esses dois caminhos produtivos sem preconceitos.
Nesse sentido, foi um cultor da experiência interdisciplinar, não se atendo aos limites e fronteiras tradicionais do conhecimento, dos fazeres e profissões, tão propalada nos meios acadêmicos e intelectuais, mas que na esfera da organização e normatização perde sempre para o encastelamento das áreas específicas, zonas de conforto e autoridade daqueles que decidem, verdadeiramente engessando as ideias.
Sua produção como pesquisador é outro indício da aproximação com os procedimentos do projeto como síntese, na medida em que ele foi um estudioso, e uma autoridade, na obra do nosso grande arquiteto modernista, o maior arquiteto brasileiro, Oscar Niemeyer. Não só sua tese de doutoramento foi dedicada ao estudo e sistematização da obra desse gênio, mas Marco foi protagonista na difusão crítica dessa obra por artigos publicados e importantes exposições que ajudou a curar e organizar. Seu interesse por Niemeyer talvez tenha sido despertado pelo protagonismo que o espaço assume na obra desse arquiteto. Os artefatos construídos de Niemeyer se desenvolvem pelo espaço como formas estruturais de dimensão escultural, grande plasticidade e força expressiva, que lhe conferem atributo monumental, dando ao espaço em que se insere força e significado, embora, diferentemente de Marco, Niemeyer use formas mais orgânicas e plasticamente menos geométricas, porém sempre com muita força plástica e aproximando-se do universo da escultura. Mas nos artefatos que Niemeyer criou, certamente o espaço é sempre temática central. Há mesmo quem diga que também ele atua com os instrumentos mentais próprios da escultura. Cabe indagar se esta não seria uma falsa questão, apenas ao gosto da organização do poder profissional, na medida em que é tão frequente a visitação de áreas outras por criadores de áreas genéticas diversas. Não fosse assim, talvez não existisse a Capela Sistina!
Também merece destaque que a simulação gráfica de expressão sintética e viril de Oscar Niemeyer, que valorizava o croqui como meio de contato do arquiteto e artista com o mundo, foi visitada, curada e valorizada por Marco. Basta destacar a atuação do Professor Marco do Valle na disciplina de desenho para a formação em arquitetura e urbanismo, curso cujo currículo ajudou a plasmar e a desenvolver, e do qual sempre participou. Mais do que isso, essa habilidade gráfica foi praticada e estimulada, o que é comprovado por suas aguardadas aulas de desenho com modelo vivo, tanto no curso de artes visuais quanto no de arquitetura.
Foi por seu intermédio, no primeiro momento genético do curso, somando-se os seus esforços aos dos colegas Carlos Fernandes e Ernesto Boccara, que Marco defendeu e colocou o Instituto de Artes como integrante naquela experiência nova na Unicamp que assumia o compromisso, então inédito no Instituto de Artes e até hoje vigente, de operar no período noturno, estendendo o acesso a essa Universidade pública a um público que, pretensamente, e destaco o pretensamente, não o poderia fazer em outro período do dia. Ainda hoje, a arquitetura e urbanismo é o único curso noturno do IA, mesmo com todos os acidentes ocorridos nesse percurso.
Mas essa ação inovadora e primogênita tem um significado que vai muito além da questão anteriormente levantada, cabendo destacá-la também, especialmente porque ela não foi uma ação pacífica e consensual. Ela encontrou na ocasião, e por muito tempo, forte oposição dentre parte dos colegas artistas e só foi possível graças ao temperamento forte, às ações e à postura intransigente do nosso protagonista, atuando na defesa dessa ideia e compromisso. Poucos foram os que se dispuseram a sair de suas áreas de conforto e autoridade para plasmarem uma experiência nova. Também não foram poucos os atritos para a realização e desenvolvimento do curso de arquitetura, ou por divergências de opiniões e sensibilidades, ou por inflamações do ego humano, patologia tão frequente, especialmente no meio acadêmico. Entendo que meu próprio lugar nessa Universidade, assim como de outros colegas do DAP, devem um tributo ao trabalho do Marco, razão pela qual me compete aqui destacar sua ação.
A experiência de ensino de arquitetura no Brasil foi plasmada por longo processo e, muitas vezes, sem nos darmos conta, suas peculiaridades continuam a influenciar tanto nossas práticas cotidianas de ensino, quanto os fenômenos delas decorrentes, bem como as habilidades profissionais adquiridas. Esse ensino foi implantado por intermédio de duas matrizes, derivadas principalmente da cultura francesa, quais sejam, a da Escola de Belas Artes e a da Escola Politécnica. Com raízes que remontam à época medieval e ao advento do renascimento, essas estruturas formativas foram historicamente se definindo e constituíram específicas e distintas vertentes de formação de quadros profissionais: uma delas mais vinculada à tradição artística e outra mais vinculada ao conhecimento científico aplicado à técnica. Fato é que os franceses, a partir das reformas napoleônicas, definiram essas duas vertentes de formação e elas aqui chegaram no contexto da vinda da corte portuguesa e da missão artística francesa, no esteio do projeto iluminista de civilização dos trópicos, como era o anseio do então monarca português para a colônia brasileira.
De fato, até próximo do advento da regulamentação profissional da engenharia e arquitetura no Brasil, em 1933, existiam aqui dois caminhos formativos: um pela escola de Belas Artes e outro pela escola Politécnica. Na ocasião, o diploma legal regulamentador da profissão estabeleceu apenas o título de engenheiro arquiteto, sendo este obtido, sem muita especificidade, com uma extensão de um ano na formação de engenheiro civil. A história da organização profissional da arquitetura e urbanismo no Brasil, capítulo a ser ainda devidamente escrito e aprofundado, poderá mostrar como foi árdua a luta para conquistar, somente no segundo pós-guerra, a formação autônoma e específica para esse profissional do espaço e da construção, embora tenham ocorrido heroicas tentativas anteriores, como a liderada por Lúcio Costa na Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, em 1933.
O estatuto profissional e o efetivo exercício da atividade de arquiteto foram conformando aquilo que em 1947 seria matriz da experiência e currículo autônomo dos primeiros cursos de arquitetura no Brasil. Porém, ainda denotava a citada herança das duas vertentes, como se pôde observar no caso de São Paulo, onde a Universidade de São Paulo implantou em 1948 seu curso autônomo comprometido com os padrões estéticos modernistas de proposição de espaço, enquanto que a Universidade Mackenzie implantou o seu em 1947 com compromissos com o ensino classicizante de origem nas Belas Artes. Após a proliferação dos cursos de arquitetura nas décadas subsequentes, essa matriz nem sempre se mostrou clara, tendo-se diluído e empobrecido na implantação burocrática de modelos oficiais, muitas vezes sem a necessária organicidade.
A razão dessa digressão histórica é o aclaramento de uma tradição de saberes artísticos e saberes técnicos que nos importa destacar como especificidade norteadora do processo didático e da experiência de ensino em arquitetura e urbanismo da Unicamp, ao menos em sua origem genética, fenômeno ao qual Marco do Valle se integrou e protagonizou. Essa experiência de ponta foi, à época e em sua gênese de proposta, inovadora e qualificadora da formação de quadros para a arquitetura, demonstrando uma sensibilidade e fundamentação crítica que poderiam ter contribuído muito mais para o conhecimento, tanto na especificidade profissional da arquitetura, quando nas áreas das artes e do projeto de maneira mais ampla.
O curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo da Unicamp iniciou as atividades em 1999, formando sua primeira turma em 2004, pois sua extensão é de seis anos. Embora muito recente, ele já se apresenta consolidado, com uma demanda atual de ingresso com índices entre 110 e 120 candidatos por vaga, constituindo-se na segunda demanda de graduação dessa Universidade. Esse curso não foi implantado, como já dito, somente com os padrões tradicionais e burocráticos vigentes, mas o fez por maneira não convencional e com um forte princípio de resgate crítico e conceitual. Reconhecendo a vocação interdisciplinar dessa atividade profissional, estabeleceu uma nova aproximação da arquitetura com os saberes da arte, da técnica e da história. Se essa aproximação parece evidente na formação, os currículos e a prática de ensino na área demonstram cabalmente que eles não o são. Ao invés de uma unidade autônoma de ensino, uma faculdade, foi proposto um curso composto por três áreas de conhecimento: as artes, a história e a engenharia, que já existiam implantadas na Universidade. Dessa operação conceitual tripartite, o efetivo fator de inovação à época, que deveria dar origem à gestão compartilhada do curso, mas que ao longo dos anos sofreu significativas modificações e descaracterizações, às vezes por incompreensão, às vezes por oportunismo, às vezes pela patologia do ego inchado, pouco sobrou, e a densidade de proposta original foi, a meu juízo, em muito empobrecida.
Atualmente está mantido, na experiência didática, o princípio interdisciplinar de aproximação entre arte, história e técnica, aliado à identidade e especificidade da profissão, mas por meio da alocação funcional e da consciência e vontade individual dos docentes. A estratégia original foi a alocação de professores arquitetos nas três unidades de ensino existentes que englobaram as três áreas do conhecimento, a saber, o Instituto de Artes, o Instituto de Filosofia e História e a então Faculdade de Engenharia Civil. Hoje o curso de Arquitetura e Urbanismo está sediado e integra a Faculdade de Engenharia Civil, mas mantém sua estrutura enraizada nas três unidades e seu quadro docente, composto na sua maioria por arquitetos, é também alocado nas outras duas citadas unidades. Nossa memória é às vezes frágil e tendemos a esquecer as conquistas que demandaram esforços e desgastes de alguns. Sabemos que os embates do Marco foram não só para implementar o curso citado, mas para manter nele a participação do IA em sua pureza original de propósitos, o que, pessoalmente, não lhe custou pouco.
Identifico nessa postura uma outra visão prospectiva, cuja sensibilidade aponta para a implantação de novo embrião de agregação do saber da área na Universidade que converge para um outro instrumento mental de operação, também interdisciplinar, “o projeto” em sua acepção mais ampla. Essa nova agregação poderia dar guarida a outras demandas formativas, já demonstradas pela sua incidência no tempo em outras localidades, e claramente existentes como segmento profissional, como é o caso do “design”.
Há um fato que comprova essa minha afirmação, pois Marco patrocinou maquetes e modelos como disciplina, o que foi incorporado ao curso e se mantém. Porém, sua proposta e sua condução inicial era propiciar pela disciplina a aquisição e domínio desses instrumentos no processo de tomada de decisão de projeto. A aproximação então pretendida era da “prática do projeto” enriquecida e aprofundada, e não da formação de artesão maquetista ou de operador de computador para prototipagem. Com o tempo, num processo que não cabe destacar, a estrutura curricular modificou a alocação e o enfoque da disciplina, tornando-a instrumental para a confecção de maquetes, burocratizando e esvaziando o conceito original. Na ocasião, Marco denunciou o fato e se recusou a continuar a lecionar a disciplina assim descaracterizada.
Mas, falando de memória, Marco foi também um seu defensor no sentido mais amplo. Ele o fez naquilo que qualifico como “estar nos dois lados do balcão”. Do lado da ação do Estado na preservação do patrimônio pela normatização e fiscalização, que constrói uma rede de significados culturais de interesse regional, integrou, na qualidade de Conselheiro, o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico e Arqueológico do Estado de São Paulo – Condephaat. O fez por indicação do Instituto de Artes da Unicamp, e pôde defender os interesses da sociedade paulista na formação de sua memória e identidade. Aqui também nos aproximamos, pois ocupei pela mesma indicação essa representação, a qual, desde a presença no Departamento de Artes Plásticas do professor Teixeira Coelho, pertencia a esta unidade do Instituto de Artes, conforme a lei de constituição do órgão preservacionista, muito antes da existência do curso de arquitetura. Mas, por equívoco humano e estratégia de bastidor que não pude evitar, apesar de ter à época denunciado, essa representação foi “deslocada” para outra unidade. Esse é um espaço de representação social importante, instituído na hora primeira do Condephaat e mantido por muito tempo posterior no interesse das artes, daí sua alocação no IA. Se aqui denuncio esse fato é para fazer uma confissão de culpa. Acho que na ocasião não fui suficientemente eloquente e intransigente, como teria sido nosso protagonista.
Ainda na defesa da preservação cultural, pude compartilhar atuação com o arquiteto Marco do Vale quando este intermediou as ações da Prefeitura de Campinas nas intervenções de restauro e revitalização do Palácio dos Azulejos. Marco era o responsável, pela prefeitura, no processo de restauro e eu participava na ocasião como Superintendente do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan, que tombou esse monumento nacionalmente e fiscalizava essa intervenção construtiva de restauração.
Finalmente, homenageio, por intermédio desse pretenso testamento – que tem a forma como seu maior veículo e o espaço como seu bem mais valioso – a personalidade desse criador que foi o artista-arquiteto e professor Marco do Valle.
Mas nós somos o resultado de nossas circunstâncias, bem como de nossos desejos e crenças, e nesse sentido cabe destacar a aproximação de Marco com o pensamento esotérico e com crenças espiritualistas, que sua prática artística testemunhou e que sempre estiveram presentes em suas pesquisas artísticas, o que deslocava sua sensibilidade para além da matéria e das obras concretas a que aqui me referi, e permitia o alçar voos de sua mente para um espaço mais amplo, talvez sideral, cósmico. Sua militância na Maçonaria e suas declarações públicas nesse sentido atestam esse fato. Não sei se se trata de uma adesão religiosa, mas é claro que isso é forma de religiosidade, o que é diferente. Mas, depois da física quântica e da irradiação, cabe questionar, com respeito ao materialismo, qual é a matéria de que estamos falando? Com essas ideias também me identifico. Declaro, num meio de predominância materialista, ao menos em sua maior aparência, minha crença na continuidade da vida e nas coisas além da matéria física, nesse universo de energias e vibrações. Assim sendo, pretendo agora deixar que minha homenagem possa também alçar voo na direção do espaço maior de dimensão cósmica e alcançar o meu amigo Marco, envolvendo-o num abraço saudoso e reconhecido, onde quer que ele esteja.
Viva o Marco do Valle!
nota
NA – Este artigo, em forma de ensaio, foi o conteúdo de uma palestra realizada na mesa de debates “Projeto e Memória” de 11 de abril de 2019, com o Prof. Dr. Abílio Guerra, com preâmbulo da Profa. Dra. Sylvia Furegatti e mediação do Prof. Dr. Cláudio Lima, no auditório do museu da Casa de Vidro/ Museu da Cidade de Campinas, como parte do Ciclo de Palestras e da Exposição “Seriações na Obra de Marco do Valle”. Esse e outros eventos que terão continuidade foram ideados por seus colegas professores do Departamento de Artes Plásticas do Instituto de Artes da Unicamp, por ocasião de sua passagem, como uma forma de homenagem e de resgate e revisitação de sua obra.
sobre o autor
Haroldo Gallo é arquiteto, mestre, doutor e livre docente em arquitetura e urbanismo, é professor há mais de 40 anos em cursos de graduação e pós-graduação nacionais e internacionais. Pesquisador, tem vários artigos e livros publicados e possui duas premiações internacionais (2003 e 2005) em Bienais de arquitetura. Arquiteto atuante, dedica-se às áreas de projeto, especialmente à preservação e restauro. Foi Conselheiro de órgãos de Defesa do Patrimônio (Condephaat) e Superintendente Regional do IPHAN na 9ª SR. É professor associado no Instituto de Artes da Unicamp nos cursos de Artes Visuais e Arquitetura e Urbanismo, graduação e pós-graduação, Chefe do Departamento de Artes Visuais e Coordenador do Curso de Especialização modalidade extensão da Extecamp/Unicamp Restauro, Intervenção e Conservação: Artes integradas e Arquitetura.