Um livro sobre a produção de um arquiteto é publicação que encerra necessariamente dois autores. O primeiro, arquiteto, autor de obra construída reconhecida, com suficiente interesse artístico para constituir necessária documentação iconográfica e literária e merecer integrar, de algum modo, a história da arquitetura. O segundo, escritor, autor do livro, com olhar cultivado para apresentar tal legado arquitetônico ao leitor, inaugurar percurso para a apreciação da obra edificada entre interessados e pares de profissão. Das relações e convergências entre estes dois autores surgem os livros monográficos de arquitetura. Dentre os volumes que tecem a história dos artefatos, diversos enfoques podem orientar a narrativa: a maior importância ao percurso biográfico, a descrição de contextos históricos ou a ênfase em aspectos culturais relacionados à produção. Sob este aspecto, o livro Pedro Paulo de Melo Saraiva, arquiteto é obra singular, ao arriscar conferir aos edifícios relevância suficiente para conduzir a narrativa.
O lançamento do livro sobre Pedro Paulo de Melo Saraiva é um fato a celebrar. O livro, que recebeu menção honrosa na premiação do Instituto de Arquitetos do Brasil departamento São Paulo – IABsp de 2018, é o primeiro número de uma coleção de livros monográficos de arquitetura brasileira produzida e editada pela Romano Guerra. Para além de reunir e apresentar o conjunto da obra de um arquiteto com edifícios de grande relevância na produção nacional, define a opção pela qualidade da arquitetura a ser publicada. É ainda pequena a quantidade de publicações sobre arquitetos brasileiros, sobretudo aqueles que estiveram longamente compromissados com a atividade profissional, atendendo às demandas comerciais e comuns da arquitetura, que constrói a maior parte das cidades.
O início do texto anuncia, trata-se de uma obra que não tem como objetivo central ampliar a historiografia da arquitetura brasileira, mas, que encontra na publicação “agradável pretexto para expor e narrar caminho e trabalho de um personagem influente” (1). Com este pretexto, desenvolve-se uma bela narrativa da obra do arquiteto Pedro Paulo de Melo Saraiva que traz, para além da ampliação dessa historia, análises precisas e com importante juízo estético, pouco comuns nos livros sobre arquitetura.
Após uma breve apresentação, a estrutura da narrativa divide-se em seis partes: "O livro e a arquitetura", "A ordem e a medida", "O moderno e as escolas", "O concurso e o prestígio", "A fachada e a estrutura" e "A forma e a aparência".
A sequência de capítulos indica a singularidade da abordagem, amparada em uma notável base teórica, permite que a narrativa escolha e sustente temas próprios, se paute essencialmente nos edifícios apresentados, sua explicação e crítica. Estes temas perpassam a íntegra do texto, não estão circunscritos aos capítulos que nomeiam, são revisitados e aprofundados à medida em os mesmos projetos são objeto de discussão de mais de um assunto. Assim comparecem as obras como organizadoras de toda a narrativa. Essa opção permite aproximar edifícios de Pedro Paulo de Melo Saraiva e seus pares, e propor sua inserção na produção do período a partir de associações a exemplos memoráveis da história da arquitetura moderna.
Para falar de arquitetura
A introdução do capítulo "O livro e a arquitetura" delineia as transformações que ocorrem na profissão nas décadas que separam o início da carreira de Pedro Paulo de Melo Saraiva e o momento da elaboração do livro. Luís Espallargas aproveita a interlocução com o arquiteto para traçar um panorama atual da produção de arquitetura com apontamentos que assombram a formação e o exercício profissional. Destaca o abandono da "historia entendida como aquisição de experiência seletiva" (2), considera que esta é substituída pela busca por inovação, quando, na atualidade, a sedução e apelo midiáticos parecem estímulo suficiente para que arquitetos abandonem soluções eficientes, promissoras e experimentadas, na tentativa de corresponder à constante demanda por novidades, procedimento que transforma a arquitetura em produto relacionado à efemeridade e modismos. Comenta a notável formação de Saraiva e seus contemporâneos, com a aquisição de conhecimentos suficientes para projetar, logo nos primeiros anos de ofício, edifícios de reconhecido valor na história de nossa arquitetura.
Estas observações introdutórias confirmam a notória perda de relevância do “arquiteto e urbanista” na sociedade e no projeto das cidades. O percurso profissional de Saraiva e sua formação trazem oportunidade também de refletir sobre a atual reestruturação de currículos das escolas e a perigosa diminuição de conteúdos e disciplinas técnicas.
A influência da abordagem crítica de Alan Colquhoun pode ser percebida na escolha do título do capítulo – "Ordem e medida" (3) – com a referência à epigrama pitagórica. Este trecho traz como tema a desejável relação entre a conformação e a construção, próprias à arquitetura, e regras abstratas que estão implícitas na ordenação visual dos objetos. Assim, a Matemática é utilizada para explicar as relações necessárias à concepção dos artefatos. O autor explica a importância do número, da geometria e suas respectivas medidas para aqueles que procuram dominar soluções de projeto. Revela os conhecimentos específicos, as questões que arquitetos conhecem e intuem, os critérios necessários e as escolhas para projetar.
Também neste capítulo Espallargas esboça importantes continuidades entre projetos de Saraiva que autorizam supor que o repertório de formas de um arquiteto é empregado em diversas situações, com condições específicas e distintas, mas segundo os mesmos critérios de organização espacial, desejados e oportunos. Para ilustrar tal argumento, o autor especula sobre a relação entre a configuração do Edifício 5ª Avenida e a residência Carlos de Toledo Abreu, de 1962, como exemplos que resultam de uma mesma opção formal.
A fragilidade das comuns opções historiográficas aparece em "O moderno e as escolas". Ao discutir a obra de Saraiva e propor sua inserção na produção do período, Espallargas indica a similitude entre as duas escolas consagradas pela história da arquitetura brasileira, escola paulista e escola carioca. Traça um percurso comum a ambas, a partir dos anos 1950, e identifica procedimentos semelhantes em Oscar Niemeyer, Affonso Reidy e os arquitetos de São Paulo, salientando o protagonismo de elementos estruturais na definição da aparência dos edifícios.
Este ponto já abordado em sua tese de doutorado (4), infelizmente não publicada, reafirma-se e ganha consistência na leitura das obras de Saraiva que conjuga, segundo o autor, a sistematicidade e concisão modernas na configuração, enquanto o tratamento dos pilares ou apoios estruturais em concreto aparente o aproxima das obras enquadradas no brutalismo paulista.
Ao abordar de modo incomum filiações e classificações consagradas com análises aprofundadas das obras, Espallargas sugere associações entre edifícios como: os Palácios de Brasília e o edifício da FAU USP, o Clube Paulistano e o Congresso Nacional e os pavilhões do Ibirapuera e a Escola de Administração Fazendária – ESAF.
Considerando a comparação entre os palácios de Brasília e a FAU USP, um olhar curioso sobre os arquivos fotográficos da construção da capital (5) é suficiente para fazer notar a semelhança dos pilares periféricos em ambos os projetos, quando, nos palácios de Brasília, antes da aplicação do acabamento claro proporcionado pelo mármore branco, pode-se observar a textura do concreto aparente e as marcas da desforma. A superficialidade é a mesma, com uma figuração justificada ora sob o mote das curvas exuberantes, ora dos esforços estruturais.
Em "O concurso e o prestígio", temos um importante número de propostas realizadas por Saraiva para concursos de arquitetura, entre eles os projetos para o Edifício Sede da Petrobrás no Rio de Janeiro, Sede do Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia – Confea, o Salão de Festas do Esporte Clube Sírio, o Palácio da Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina, o Edifício Sede da Confederação Nacional das Indústrias – CNI, o Paço Municipal de Florianópolis, o Estádio Municipal e a praça de esportes de Santo André e o Plano Piloto para Brasília.
Apesar da variedade de programas e escalas dos projetos desenvolvidos, conforme destaca Espallargas, “a estrutura é fundamento constante do modo de conceber do arquiteto” (6), a condição material da arquitetura constitui princípio que condiciona as soluções de projetos e comparece de modo indissociável da conformação espacial. Sua importância se confirma quando uma solução estrutural desenvolvida para um edifício não executado é empregada, posteriormente, em outra oportunidade.
Neste capítulo e no seguinte, o autor elucida a preferência pelos grandes vãos, a busca por soluções estruturais para permitir lajes desimpedidas, com a localização de pilares a distâncias expressivas ou a opção por estruturas externas aos objetos. Saraiva não aceita pilares internos, compartimentando áreas que possam ter como predicado a livre distribuição de ambientes (7). O tratamento cuidadoso dado pelo texto às soluções técnicas adotadas, nos exemplos apresentados, permite a compreensão dos projetos e de questões construtivas importantes.
"A fachada e a estrutura" dá continuidade ao tema da concepção estrutural. Primeiramente, o autor faz alusão ao sistema Dom-Ino para indicar que fachada e estrutura são partes distintas e suscitam diferentes questões, sustentação e vedação. Preocupa-se em destacar exemplos em que os fechamentos são leves e independentes da estrutura do edifício para depois enfatizar como, em um momento posterior da obra do arquiteto, tornam-se frequentemente coincidentes. A opção por pilares periféricos ou exoesqueletos condensa, nos mesmos elementos, ambas as funções. Assim são os projetos para os edifícios Acal e para a Companhia de Processamento de Dados do Estado de São Paulo – Prodesp.
O capítulo seguinte recebe o título "A forma e aparência", entretanto a dicotomia entre os dois conceitos já esteja elucidada nos capítulos anteriores. Assim, o trecho elege a categoria da forma para reunir exemplos nos quais as soluções de projeto parecem mais profícuas. Pode-se especular sobre a preferência do autor pela coletânea de obras exemplares deixadas para o capítulo final, porque nele reúne edifícios que correspondem à melhor produção moderna dos anos 1950 e 1960. Do conjunto selecionado, parte dos edifícios ilustra o aprimoramento de soluções relacionadas a programas equivalentes, e outras obras apresentam, simultaneamente, qualidades arquitetônicas e urbanísticas.
Para explicar as obras de habitação multifamiliar vertical, Espallargas destaca a noção de tipo. Demonstra a repetição de soluções de distribuição de áreas nos apartamentos para os edifícios Solar do Conde e Portofino quando enfatiza “sua planta constitui um tipo e o esforço do arquiteto é aperfeiçoar o tipo” (8).
Transparece, por parte do autor, uma compreensão de arquitetura moderna pouco vulgar, reiterando a proximidade com os fundamentos teóricos desenvolvidos por Alan Colquhoun (9), ao negar uma pretensa a-historicidade da produção moderna e evidenciar a permanência da tradição disciplinar, de determinadas estruturas formais, numa continuidade histórica que se contrapõe a ideia de moderno como novo e inédito.
Espallargas afirma Saraiva como arquiteto moderno e pontua as importantes questões relacionadas à industrialização e à construção da cidade moderna. Em relação ao primeiro tema, a repetição e aprimoramento de soluções permite pensar elementos produzidos pela indústria. Apresenta como exemplo a concisão do desenho para o caixilho do edifício Portofino, onde um único módulo resolve toda a vedação da fachada. Para o segundo tema, a cidade moderna, Saraiva concebe a verticalização, prevendo a coincidência entre adensamento e infraestruturas urbanas. Sobre este ponto, o autor comenta inteligentemente a percepção do arquiteto em relação às questões que surgem com o crescimento das cidades, tão contemporâneas que se tornam premissas das diretrizes de planejamento para as cidades, como o Plano Diretor de São Paulo de 2014.
A visão integrada entre Arquitetura e Urbanismo que se apresenta em relação à cidade moderna pode ser apreciada neste capítulo nos projetos construídos destacados. No edifício Albar, ao considerar a situação edificada preexistente, o arquiteto posiciona o novo edifício promovendo, por sua correta implantação, a qualidade urbana que a verticalização desencontrada propicia à cidade. No Edifício 5ª Avenida pode-se perceber sua vontade de olhar urbanisticamente para São Paulo, construindo uma paisagem desejável. Ao propor a repetição da solução do edifício, cria uma tipologia de ocupação para a avenida Paulista, com verticalização incipiente naquele momento, pois acredita que uma solução formal, ao ser adotada em sucessivos lotes, pode proporcionar ordem urbana.
No início do livro, os comentários do autor acerca da profissão questionam a inserção da arquitetura num contexto de consumismo e tendências denotando dificuldades do exercício do ofício. Neste trecho final, complementa o panorama ao retratar as dificuldades impostas pela burocratização e a infrequência do trabalho de bons profissionais, quando as soluções de projeto estão subordinadas a normas, ao mercado imobiliário e a “uma sociedade que prefere viver numa profusão de ambientes mesquinhos” (10).
Da construção da cidade
A apresentação da obra de Saraiva desperta fascínio, pois através dela percebe-se que, embora a carreira do arquiteto atravesse períodos de mudanças e exigências variadas, sua produção não perde o rigor, segundo o autor, transcende a aparência e guarda o reconhecimento do observador, que nela pode perceber inteligência, ordem e coincidência entre construção material e visual.
O livro parece propor um empenho coletivo para conceber a arquitetura, para dominar soluções, para aprender com a obra de outros arquitetos e fazer melhor, para construir coletivamente o conhecimento sobre a forma e com ele projetar a cidade. A admirável carreira de Saraiva é exemplo desta maneira de projetar, de uma geração com formação suficiente para intervir na cidade, na escala edilícia e urbanística, compreendendo as relações fundamentais entre ambas.
Um fato importante na publicação é a coincidência entre textos e imagens. Como em poucas situações, a iconografia apresentada é suficiente, acompanha a descrição dos projetos e seus elementos, sem a necessidade de uma pesquisa complementar à obra literária, o que se impõe com frequência àqueles que buscam compreender a totalidade dos projetos de arquitetura que figuram em geral nos livros da área. Embora, algumas vezes, em pequena escala, há abundância de peças gráficas com a apresentação de desenhos técnicos, fotos e reprodução de desenhos originais nos quais se pode notar, inclusive, medidas estruturais e anotações de fases de desenvolvimento dos projetos.
Pedro Paulo de Melo Saraiva, arquiteto se diferencia como publicação ao permitir a aproximação a questões conceptivas, ao universo da profissão, ao modo como arquitetos a compreendem e realizam, atentos a um conjunto de conhecimentos transmissíveis, próprios ao ofício. Sobretudo, a obra nos rememora que a boa arquitetura é, também, boa construção. Qualidades que parecem raras, embora suficientes, para constituir um livro sobre arquitetura, importante também para arquitetos.
notas
1
ESPALLARGAS GIMENEZ, Luis. Pedro Paulo de Melo Saraiva, arquiteto. São Paulo, Romano Guerra Editora/Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, 2016, p. 25.
2
ESPALLARGAS GIMENEZ, Luis. Op. cit., p. 26.
3
No ensaio Classicismo vernáculo de Alan Colquhoun, que integra o livro Modernidade e tradição clássica, aparece referência à ordem e à medida, taxia e simetria, como agradáveis e opostas à desordem e ao excesso. COLQUHOUN, Alan. Modernidade e tradição clássica: ensaios sobre arquitetura 1980-87. São Paulo, Cosac & Naify, 2014.
4
ESPALLARGAS GIMENEZ, Luis. Arquitetura paulista da década de 1960: técnica e forma. Tese de doutorado. São Paulo, FAU USP, 2004.
5
A revista Acrópole nº 256 de fevereiro de 1960 traz na pagina 78 a foto da sequência de pilares do Palácio do Planalto, ainda em concreto, sem revestimento e suscita a indagação sobre o quanto da apreensão formal dos edifícios está associada aos acabamentos empregados.
6
ESPALLARGAS GIMENEZ, Luis. Op. cit., p. 129.
7
Em debate realizado em maio de 2016, na Fundação Casa de Vidro de Lina Bo Bardi, por ocasião do lançamento do livro, Saraiva admite a perspicácia de Espallargas em apontar sua preocupação com a busca pelo maior vão e acrescenta que não compreendia a utilização de pilares internos a um espaço para laje comercial, citando um edifício de Nova York, no qual pilares aparecem dentro de uma das salas de reunião. Reforçou sua opinião comentando a premiação do concurso para o edifício Sede da Petrobrás, com um projeto ganhador que propõe modulação com pequenas dimensões entre eixos estruturais, para promover uma composição entre cheios e vazios nos diferentes pavimentos. Acreditava que tal recurso parecia gratuito, pois não coincidia com as necessidades programáticas que deveriam ser acatadas para o edifício.
8
ESPALLARGAS GIMENEZ, Luis. Op. cit., p. 197.
9
Ver COLQUHHOUN, Alan. Arquitectura moderna y cambio histórico: ensayos: 1962-1976. Barcelona, Gustavo Gili, 1978.
10
ESPALLARGAS GIMENEZ, Luis. Op. cit., 2016, p. 214.
sobre a autora
Fernanda Marafon Frau é arquiteta, docente do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade São Francisco e doutoranda pelo programa de Pós-graduação da FAU USP.