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A versão ampliada do texto escrito em 1992 para a exposição de Marco do Valle é agora publicado no fluxo de homenagens póstumas ao artista plástico em curso na Universidade de Campinas – Unicamp.

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GUERRA, Abilio. O eterno retorno do anjo melancólico. Sobre a obra “Melancolia 3”, de Marco do Valle. Resenhas Online, São Paulo, ano 18, n. 209.03, Vitruvius, maio 2019 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/18.209/7344>.


Início de 1992. O artista plástico Marco do Valle me convida para redigir um pequeno texto sobre sua exposição “Melancolia 3”, que seria exibida no “Casino Icarahy”, espaço cultural da Reitoria da Universidade Federal Fluminense, em Niterói, que seria inaugurada em maio daquele ano (1). Marco já era mais do que o artista promissor dos primeiros anos da faculdade de arquitetura, que fizemos juntos a partir de 1978. Havia participado de exposições coletivas e individuais em galerias e eventos artísticos, com marcada presença na 20ª Bienal Internacional de São Paulo, a famosa “Bienal da Banana” de 1989, referência ao excepcional cartaz daquela edição, que trazia uma banana cortada ao meio e rejuntada com as partes invertidas por meio de grampos (2). Sua instalação no evento, “Topografia artificial” – um chão ondulado feito de telhas industriais e objetos embrulhados em lâminas de borracha sobre ele depositados –, despertou atenção e o incluiu no rol dos artistas que contam.

O texto encomendado deveria ser pequeno, em torno de três mil caracteres com espaços, a ser impresso no folder de divulgação do evento. Professor do Instituto de Artes desde 1983, na ocasião, Marco do Valle já era amigo de Luiz Paulo Baravelli, Carlos Fajardo e José Resende, havia trabalhado no ateliê de Nicolas Vlavianos, tinha participado de exposições coletivas no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo – MAC USP, organizada por Júlio Plaza e Walter Zanini, e no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro – MAM-RJ, ao lado de Marcelo Nitsche e Márcia Rothstein, curadoria de Frederico de Morais.

Tal inserção no meio artístico me deixou intimidado. Perguntei na ocasião se não era uma encomenda desmesurada, motivada por nossa grande amizade. Incomodado com o questionamento, me disse que confiava muito em mim, que eu era um grande escritor (alguns meses depois reiterou a sentença, com uma dedicatória atrás de uma foto da exposição na UFF, onde, como um irmão mais velho, me aconselhava: “O dom da escrita não é para todos e exige sempre um esforço fora o que já possuímos. Abilio, você é um grande escritor, descubra-se, sem dom e sem esforço, onde você seria feliz”). Fiquei muito feliz, mas não acreditei muito, afinal Alberto Tassinari e Marilena Chauí haviam escrito sobre suas obras – o primeiro sobre a exposição “Vórtice”, a segunda sobre o “Eixo paralelo ao da rotação da Terra”, escultura pública de Marco do Valle na Universidade de Campinas – Unicamp. Com o tempo me dei conta que sua confiança em mim tinha um motivo simples: eu o conhecia como poucos.

O texto para o folder era muito pequeno. Inseguro, coloquei mais coisas do que cabia. Para convencer o amigo – mas intuo que era para me convencer –, além do texto para o folder lhe entreguei uma versão com dez notas de rodapé. Tal como o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, de Jean Jacques Rousseau, que eu havia lido na ocasião, as notas eram maiores do que o próprio texto. Sem pretensões acadêmicas, as notas não apresentam as citações e paráfrases de forma adequada – faltam as edições e páginas para as passagens –, o que hoje dificulta muito suas localizações. Uma pena.

Eu nunca mostrei o texto expandido para ninguém. Não sei se o Marco mostrou para alguém, mas me pediu algumas vezes para publicá-lo, o que nunca fiz. Agora que ele foi viver o brilho inútil das estrelas (3) – com certo constrangimento e acompanhando a série de homenagens em curso na Unicamp –, divulgo minha interpretação sobre os motivos, referências e condicionantes presentes na obra “Melancolia 3”, de Marco do Valle.

notas

1
“Melancolia 3”, exposição individual de Marco do Valle. Casino Icarahy, Reitoria da Universidade Federal Fluminense, Niterói, de 28 de maio a 19 de junho de 1992. A mesma exposição seria apresentada no Museu de Arte de São Paulo – Masp, em 1995.

2
O cartaz da 20ª Bienal Internacional de São Paulo é de autoria do fotógrafo, diretor de arte, ator e cineasta Rodolfo Vanni.

3
Me conforta pensar que, sendo tão crente na vida misteriosa que se esconde por detrás da morte, Marco do Valle tenha reencontrado a mãe, o pai e o primo que tanto amava. No meu jeito de ver as coisas, ele seguiu os passos de Macunaíma, que, segundo Mário de Andrade, “Ia pro céu viver com a marvada, ia ser o brilho bonito mas inútil porém de mais uma constelação. Não fazia mal que fosse brilho inútil não, pelo menos era o mesmo de todos esses parentes, de todos os pais vivos de sua terra, mães, pais manos cunhãs cunhadas cunhatãs, todos esses conhecidos que vivem agora do brilho inútil das estrelas”. Mas penso que o Marcão ficaria ainda mais feliz se, ao percorrer a vereda que nos leva até lá, seus passos fossem acompanhados pela música “Chão de estrelas”, de Orestes Barbosa e Sílvio Caldas, em especial pelas duas estrofes que adorava: “a lua furando nosso zinco, salpicava de estrelas nosso chão”.

sobre o autor

Abilio Guerra é professor de graduação e pós-graduação da FAU Mackenzie e editor, com Silvana Romano Santos, do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora.

Marco do Valle, “Melancolia 3”, Casino Icarahy, Niterói, 28 de maio a 19 de junho de 1992
Foto divulgação

The Making of Melancolias

Abilio Guerra

“Seus trabalhos são antes uma paródia, mais melancólica do que irônica, do mundo dos utensílios e dos instrumentos, e sobretudo do pensamento operativo da ciência” (Alberto Tassinari, 1985, sobre a instalação Vórtice de Marco do Valle)

“Eixo da terra, irônico pêndulo, ferreamente submisso à gravitação universal, vetor astronômico, ferruginosa árvore impossivelmente implantada sobre o verde, esguia nave, mensagem estelar, meditação entre o terrestre e o celeste. Talismã. Figura do mundo” (Marilena Chauí, 1987, sobre a escultura Eixo Paralelo ao da Rotação da Terra, de Marco do Valle)

Uma coleção de ferramentas dispersas pelo chão. Em Joseph Beuys (instalação Animais Primitivos), envoltas em argila, “evocação de criaturas de um mundo antigo de animais e de caçadores” (2), os instrumentos sugerem um universo desumanizado e petrificado, uma natureza mineral que reincorpora gelidamente o pálido esforço pela vida orgânica. Em Cronnenberg (filme Gêmeos, Mórbida Semelhança), instrumentos cirúrgicos grotescos, forjados para incursionar na carne humana, para separar/mutilar simbolicamente a reposição aterrorizante do Mesmo, para vasculhar a insondável psique humana, “nos seus antros e cavernas sem número, repletas ao infinito” (3). Em ambos, o atroz – para os homens – non sense da vida, o desalento por uma existência insignificante e incompreensível (4).

Marco do Valle, “Melancolia 3”, folder, Casino Icarahy, Niterói, 28 de maio a 19 de junho de 1992
Foto divulgação

As ferramentas de Marco do Valle, mesmo compartilhando de suas tonalidades melancólicas, são de outra ordem. Ao invés do desencanto de Beuys ou da morbidez de Cronnenberg, a perplexidade e a ironia, num enlaçamento ostensivo com a cultura humana. Não mais os objetos mesmos, mas simulacros inúteis de madeira, desproporcionados à mão humana. Ladeando as não-ferramentas, compondo a semântica de um mundo peculiar, esferas metálicas, sólidos de papelão, negatoscópios radiográficos. Em um destes, iluminada por trás, a gravura de Albrecht Dürer, Melancolia l, a marca, o vínculo com a tradição. A obra de Dürer tensiona-se entre a magia hermética vitalista milenar e a animação universal da mecânica racional nascente – aliás como a maior parte das obras renascentistas –, tensão que encontra seu ponto de equilíbrio na geometria: “a proporção corresponde, por semelhança, a Deus mesmo” (5). A sustentar essa curiosa montagem intelectual, uma fusão de dois conceitos de tempo: Tempus edax rerum (“Tempo que devora tudo o que cria”) e Veritas filia temporis (“A verdade é filha do tempo”) (6). A figura da Melancolia seria a materialização simbólica desse sentimento misto de derrocada e de compreensão superior, que vislumbra, sem nunca alcançar, uma ordem divina na natureza (7).

Mas não se pode confiar integralmente em uma pista tão óbvia. O xerox da fotografia da gravura de Dürer coloca-nos diante de citações, paródias, referências, reproduções ao infinito, coisas que já não são mais elas pois os significados simbólicos e alegóricos foram deslocados e refundidos (8). A Melancolia, companheira fraterna do gênio, já não acredita na ciência como o caminho para a verdade, talvez já nem acredite mais na própria verdade, mas compulsivamente continua a transpassar o mundo com seu olhar indagador e confiante. É essa sua dimensão humana: a recusa em se retirar de cena apesar de uma história que “incessantemente amontoa ruínas sobre ruínas” (10).

Abril de 1992

Abilio Guerra, original do texto expandido para a exposição “Melancolia 3”, de Marco do Valle, abril de 1992 [Foto divulgação]

Notas

1. As duas citações apontam para uma constante e duas diferenças; a constante é a semântica científica como referência basilar da obra de Marco do Valle; as diferenças fundamentais são: a) o contraste entre a melancolia (Tassinari) e a ironia (Chauí); b) o deslocamento da Ciência para a Magia (o talismã de Chauí). A minha posição é a de que ambos os autores estão certos (caso não os acatasse, não os teria escolhido como epígrafes) e que apenas apontam aspectos contraditórios que habitam as preocupações do artista e que estão amplamente sob controle no conjunto da obra. Não custa lembrar que ciência e magia já estiveram irmanadas em diversos momentos da história humana e nada impede que ambas, pelo menos do ponto de vista simbólico, se reencontrem na obra artística.

2. Citação literal de Heiner Bastian, “Um mundo quase perdido”, catálogo da 20ª Bienal de São Paulo. Essa é a primeira citação literal não creditada, que busca criar no texto um universo de referências cultas semelhante à da obra comentada. Essa mimese do procedimento do artista visa uma compreensão dos mecanismos estilísticos em sua origem, enquanto agenciamento artístico, pois as citações passam por um deslocamento significativo ao serem refundidas em um novo discurso.

3. Citação de Santo Agostinho, Confissões. A frase foi retirada de um contexto específico: uma sucessão de capítulos que tratam da memória humana e se inicia pelo capítulo sugestivamente intitulado “O palácio da memória”, e que é uma das passagens mais belas da literatura ocidental: "Chego aos campos e vastos palácios da memória onde estão tesouros de inumeráveis imagens trazidas por percepções de toda espécie. Aí está também escondido tudo o que pensamos, quer aumentando quer diminuindo ou até variando de qualquer modo os objetos que os sentidos atingiram. Enfim, jaz aí tudo o que lhes entregou e depôs, se é que o esquecimento ainda o não absorveu e sepultou. [...] Aí estão presentes o céu, a terra e o mar com todos os pormenores que neles pude perceber pelos sentidos, exceto os que já esqueci. É lá que encontro a mim mesmo, e recordo as ações que fiz, o seu tempo, lugar, e até os sentimentos que me dominavam ao pratica-las”. Santo Agostinho foi, segundo diversos estudiosos, o filósofo que abriu a perspectiva psicologizante para a cultura ocidental. Nesse sentido, encontra-se na protogênese da psicanálise freudiana e, por derivação, das vanguardas artísticas expressionistas e – principalmente surrealistas. Seria absurdo demais filiar Cronnemberg a Santo Agostinho?

4. A obra de Beuys me foi sugerida pelo próprio Marco do Valle como ponto de referência, mas sinto que a apropriação que fiz não foi a imaginada pelo artista. As ferramentas de Cronnenberg foram introduzidas por mim. As comparações alinhadas nesse parágrafo apontam para o inevitável abismo que muitas vezes se abre entre a obra e seus intérpretes. A polivalência da obra e as preocupações individuais dos intérpretes conformam um novo campo discursivo, ao qual não procurei fugir. Como dizia Jorge Luiz Borges, um mapa geográfico perfeito, que considerasse todas as peculiaridades do território a ser registrado, seria o próprio território. Falar de algo é sempre reinventá-lo.

5. Luca Pacioli, A divina proporção. Este teórico renascentista trata com profundidade dos pressupostos de uma ordenação geométrica da natureza a partir de um raciocínio, também ele geométrico, de Deus. Seu arsenal manipula antigas crenças herméticas e a teorias dos sólidos de Platão.

6. Esses dois dísticos de Ovídio são do período clássico e foram retrabalhados na Renascença. Foram considerados em suas diversas implicações filosóficas e artísticas por Erwin Panofsky, Estudos de Iconologia.

7. A frase “sem nunca alcançar” me foi sugerida pelo próprio Dürer: "O erro está tão unido ao nosso conhecimento e a obscuridade está tão solidamente instalada em nós, que nossos intentos são também ineficazes. Mas a aquele que demonstra suas teorias mediante a geometria e expõe suas verdades fundamentais, todo o mundo deve nele acreditar. Porque estamos obrigados a isso, e é justo reconhecer a este homem como dotado por Deus para ser um mestre nesta matéria. E os princípios de sua demonstração devem ser atendidos com interesse, e suas obras observadas com um o mais alto prazer. Porém, como não podemos alcançar a perfeição, devemos renunciar completamente à busca? Não aceitamos este pensamento bestial. Já que os homens têm ante si o bem e o mal, caracteriza um homem como razoável o fato de decidir-se pelo melhor”. Os quatro livros sobre as proporções humanas. Como se vê, no leque imenso de possibilidades aberto pelas discussões intelectuais renascentistas, a posição de Dürer traz pitadas de uma dúvida cartesiana e de um pragmatismo baconiano. A incerteza não leva à paralisia da ação, mas abre um imenso caminho para a experimentação basicamente humana. O divino, ainda referência última para a experiência humana, desaparece, devido ser inatingível, como Absoluto indiscutível. É por isto, do meu ponto de vista, que a escolha de Dürer é genial: as oposições que apontei na discussão das epígrafes recebem aqui uma acomodação satisfatória e sugestiva.

8. Trata-se aqui de uma teoria da produção artística, conforme Haroldo de Campos, em Deus e o diabo no Fausto de Goethe: “Paródia não deve ser necessariamente entendida no sentido de imitação burlesca, mas inclusive na sua acepção etimológica de canto paralelo”; “A plagiotropia (do gr. plágios, oblíquo; que não é em linha reta; transversal; de lado), se resolve em tradução da tradição, num sentido não necessariamente retilíneo. Encerra uma tentativa de descrição semiótica do processo literário como produto de revezamento contínuo de interpretantes, de um ‘semiose ilimitada’ ou ‘infinita’ (Peirce, Eco), que se desenrola no espaço cultural. Tem a ver, obviamente, com a ideia de paródia como ‘canto paralelo’, generalizando-a para designar o movimento não-linear de transformação dos textos ao longo da história, por derivação nem sempre imediata”. Mesmo se tratando o assunto especificamente de literatura, creio que nada perdemos se transpormos o mesmo raciocínio para o campo das artes plásticas. Apesar de concordar com essa concepção da gênese artística, eu não a arregimentaria se não acreditasse que ela descreve com precisão o procedimento artístico de Marco do Valle.

9. A imagem que me veio à memória nesse momento foi o anjo melancólico de “As asas do desejo”, filme de Wim Wenders. Pareceu-me excessivo colocá-Ia no corpo do texto. Mas será esperar muito que a pelo menos meia dúzia de pessoas essa passagem não detone a mesma associação? De qualquer maneira, o fundamental dessa passagem é outra coisa. O que me preocupa é mapear o retorno periódico do anjo melancólico.

10. Citação de Walter Benjamin, “Sobre o conceito de história”. Nessa passagem, Benjamin faz uma leitura absolutamente pessoal de um quadro de Paul Klee. “Existe um quadro de Klee intitulado Angelus Novus. Ele representa um anjo que parece estar na iminência de afastar-se de algo em que crava o seu olhar. Seus olhos estão arregalados, sua boca está aberta e suas asas estão estendidas. O anjo da história deve se parecer assim. Ele tem seu rosto voltado para o passado. Onde diante de nós aparece uma cadeia de acontecimentos, ele enxerga uma única catástrofe que incessantemente amontoa ruínas sobre ruínas e as lança a seus pés. Ele gostaria de demorar-se um pouco, acordar os mortos e juntar novamente os cacos. Mas do paraíso sopra uma tempestade que se emaranha em suas asas e é tão forte, que o anjo não mais pode fechá-Ias. Esta tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele volta as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. O que chamamos de progresso é esta tempestade”. O mecanismo do autor é exatamente o proposto por mim: o deslocamento significativo.

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