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Carlos A. Ferreira Martins, professor do IAU USP São Carlos, comenta o relatório “Fundação Anti-indígena: um retrato da Funai sob o governo Bolsonaro”, assinado pelas instituições INA e Inesc.

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MARTINS, Carlos A. Ferreira. Um projeto de país que se esvai. A destruição da Funai pelo governo Bolsonaro. Resenhas Online, São Paulo, ano 21, n. 246.05, Vitruvius, jun. 2022 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/21.246/8519>.


O assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips no Vale do Javari, assim como a escandalosa atitude das autoridades responsáveis pela vigilância e segurança da área, tornou difícil julgar quem é o campeão da hipocrisia e do escarnio.

O ex-capitão no exercício da presidência voltou a exibir o já conhecido desdém pelo sofrimento alheio e a prática de culpar a vítima.

O Comando Militar da Amazônia sentiu prazer na desfaçatez de um papel timbrado em que afirmava ter todas as condições materiais e de pessoal para realizar a busca enquanto aguardava “ordens superiores”. Desnecessárias, porque o Javari é região de fronteira e o Exército tem aí poder de polícia.

A Polícia Federal, origem do atual presidente da Funai, demonstrou uma eficiência capaz de fazer inveja ao Mossad, à CIA e à extinta KGB, ao concluir, mal encontrados os corpos, em nota divulgada em 17 de junho, que a perseguição, assassinato, esquartejamento e cremação das duas vítimas foi “ato isolado e sem mandantes” (1).

A simples denúncia da indiferença das autoridades, assim como o justo reconhecimento do valor do sertanista e do jornalista, carregam o risco de servir aos interesses dos algozes, se não formos capazes de focar na dimensão estrutural do drama das terras indígenas, sufocadas entre o aparelhamento da Funai, a mineração e o crime organizado na região.

Como até a grande mídia divulga, Sérgio Moro exonerou Bruno Pereira, exatamente por denunciar a articulação entre o garimpo em terras indígenas, a pesca ilegal e o tráfico internacional de drogas e armas, sob o olhar míope, na melhor das hipóteses, da Funai e do Comando Militar da Amazônia.

O delegado Alexandre Saraiva, exonerado da chefia da Polícia Federal da Amazônia, após denunciar a associação entre o ex-ministro Ricardo “Boiada” Salles e o crime organizado na região, aponta a omissão do Exército e denuncia que o crime organizado tem muitos políticos da região “no bolso”. Ele dá nome aos bois, com perdão do trocadilho. Só não apura quem não tem interesse.

O jornalista Bob Fernandes nos relembra, em um vídeo de 18 minutos de informação rigorosa, que Bolsonaro não está no poder “apesar” dos generais, mas que são eles que estão no poder por meio de Bolsonaro. Vale buscar no YouTube (2).

Mas a compreensão aprofundada do que ocorre na Amazônia desde o governo Temer demanda a leitura do alentado relatório recém divulgado pelo Instituto Nacional de Indigenistas – INA e pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC, intitulado Fundação Anti-indígena: um retrato da Funai sob o governo Bolsonaro.

Em 220 páginas de informação rigorosa, os autores mostram a montagem e aplicação progressiva e asfixiante do que chamam de assédio institucional, o processo de “destruição de políticas que foi acionada em nível federal no Brasil durante o ciclo governamental 2019- 2022” (3).

Essa prática, planejada e organizada, opera em três instancias fundamentais: a destruição institucional das agências; a asfixia orçamentária e a perseguição e desqualificação dos servidores de carreira. O mesmo que se faz com a cultura ou as universidades. Com a diferença significativa de que as universidades ou a produção cultural tem mais meios de protesto e acesso aos canais de informação.

Não há como resumir neste espaço as informações do relatório. Mas podemos citar que “das 39 Coordenações Regionais da Funai, apenas duas contam com chefes titulares servidores do órgão, já tendo sido nomeados 17 militares, três policiais militares, dois policiais federais e seis profissionais sem vínculo anterior com a administração pública” (4).

Fica claro que Dom Phillips e Bruno Pereira não foram aleatoriamente assassinados por dois pescadores ilegais mas por um poderoso consórcio entre forças militares, autoridades políticas e crime organizado que está retomando o projeto militar dos anos 1960 e 1970 de “ocupar a Amazônia”, desmatando, exterminando os indígenas e extraindo as riquezas do subsolo.

Dom e Bruno serão apenas as mais recentes vítimas de uma política deliberada que já ceifou mais de quarenta lideranças indígenas e indigenistas nos últimos três anos ou a comoção provocada pelo seu sacrifício poderá motivar alguma reação social efetiva?

Os servidores da Funai anunciam greve para a próxima quinta-feira, dia 23, pedindo a demissão do delegado da Polícia Federal que hoje dirige o órgão e a retomada dos objetivos institucionais do órgão.

Em breve saberemos se, a exemplo do resto do Estado brasileiro, a Funai ainda pode ser resgatada ou se o consórcio entre militares, políticos e crime organizado, com o apoio, ou no mínimo a omissão, do grande capital e da mídia corporativa já levou o assédio institucional a um ponto de não retorno.

O título desta coluna veio do prefácio do relatório do INA/Pesc (5). Alerta ou epitáfio?

notas

1
“A PF (Polícia Federal) informou hoje que investigações apontam que não houve participação de organização criminosa ou de um possível mandante por trás da morte do indigenista Bruno Araújo e do jornalista britânico Dom Phillips”. VINHAL, Gabriela. PF descarta mandante ou organização por trás da morte de Dom e Bruno. UOL, Brasílias, 17 jun. 2022 <https://bit.ly/3tMlWUd>.

2
FERNANDES, Bob. Quem são e onde estão militares que tomaram o Poder com Bolsonaro e “alarmam” a ONU, Amazônia e... Canal de Bob Fernandes <https://bit.ly/3zOLsvy>.

3
INA/INESC. Fundação Anti-indígena: um retrato da Funai sob o governo Bolsonaro. Brasília, Indigenistas Associados/Instituto de Estudos Socioeconômicos, jun. 2022, p. 9 <https://bit.ly/3HyV9jP>.

4
DUPRAT, Deborah. Prefácio. In: INA/INESC. Op. cit., p. 15.

5
“Enfim, esses são alguns aspectos de uma publicação excepcionalmente ampla na demonstração do desmonte de um órgão tão importante na implementação de direitos indígenas pós Constituição de 1988. É preciso lê-la e levá-la a sério, porque o que ela denuncia, ao fim e ao cabo, é um projeto de país que se esvai”. Idem, ibidem, p. 16.

sobre o autor

Carlos A. Ferreira Martins é professor titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos.

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resenha do livro

Fundação Anti-indígena

Fundação Anti-indígena

Um retrato da Funai sob o governo Bolsonaro

Indigenistas Associados INA and Instituto de Estudos Socioeconômicos INESC

2022

246.05 política
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