A obra a ser analisada neste texto é o livro Ecológica, de André Gorz, primeira edição de 2010, tradução de Celson Assan Jr. Possui 106 páginas, reúne sete textos (artigos e entrevistas) publicados entre 1975 e 2007 e é um livro póstumo. André Gorz se forma em 1945 em Engenharia Química pela Escola de Engenheiros da Universidade de Lausanne, mas irá atuar na França como jornalista do semanário Le Nouvel Observateur. Antes do semanário foi tradutor de históricas curtas americanas. Foi também secretariado internacional do Mouvement des Citoyens du Monde e depois secretário particular de um adido militar da embaixada da Índia.
Como pensador de esquerda o marxismo é muito presente neste seu texto, mas também o existencialismo e a fenomenologia de Sartre, cuja amizade influenciou sua filosofia.
O enfoque do livro gira em torno do tema ecologia política – seu desenvolvimento e suas implicações no mundo atual. O autor irá realizar uma crítica aguçada do capitalismo contemporâneo assim como também propor saídas para o sistema no que tange o impacto ambiental que ele produz. Uma das propostas mais conhecidas de Gorz é a noção de uma renda da existência que no Brasil é conhecida como renda de cidadania. Gorz está presente no referencial bibliográfico dos livros de Sérgio Ferro. Quem estudou os textos de Ferro irá reconhecer muitos pontos de contato entre os dois pensadores.
Ao tratar do tema indústria, Gorz a interpreta como um processo de extração de sriquezas do trabalhador e da natureza e atualmente estão em uma nova crise: a ambiental e a do trabalho. Ambiental pela exploração dos recursos naturais até o seu esgotamento. A do trabalho pelas pressões da produção que esgotam tais recursos naturais, mas que geram renda e empregos apesar de uma porcentagem cada vez menor em função da automação.s
No Livro Gorz desenvolveu vários conceitos caros ao mundo moderno e contemporâneo e é um livro marcado pela preocupação ambiental.
O autor entende que a produção hoje em dia não é mais um problema. O seu desafio está na distribuição desta produção. A busca por racionalidade produtiva fez com que a relação custo do produto atrelado ao gasto com o trabalhador se tornasse algo dissociado. Como produzir necessita de cada vez mais racionalidade e eficiência produtiva, a indústria o faz em grande escala e a um custo cada vez menor. Isso inunda o mercado de produtos e que precisam ser vendidos para a atividade se manter. A saída para a atividade gerar lucro já não é a superexploração do trabalho sreduzindo a remuneração do trabalhador (pois isto tem um limite que é o retorno à escravidão) e nem forçar a venda do produto em outras áreas (já que muitas vezes estas áreas também estão ocupadas com a concorrência). A saída utilizada é investir no valor simbólico do produto: a publicidade, o design, a tradição ou inovação. É fornecer ao consumidor algo de quase metafísico. Tanto que muitas empresas atualmente estão mais preocupadas em gerenciar a marca do que a produção. Entretanto, esta superprodução que a indústria contemporânea pode entregar (graças à automação de processos produtivos e de gestão) produz impacto levando ao esgotamento dos recursos naturais. Segundo o autor, a sociedade terá que lidar com esta situação via barbárie ou democracia.
O autor não deixa também de realizar uma crítica profunda sobre o proletariado, que desistiu (salvo alguns sindicatos ou organizações da sociedade) de ser o dono dos meios de produção e se deixou levar pelo sonho do assalariado e de outros benefícios hoje tratados como políticas de bem-estar social. A crítica sobre o proletariado vai além: este possui uma relação de certo antagonismo com o dono do capital, mas quando se avalia a questão ambiental, há uma cumplicidade: ambos defendem o aumento da produção da grande indústria responsável pelo paulatino esgotamento dos recursos naturais pelo fato de que quanto mais a indústria produz e vende, maior a garantia do trabalho e de alguns benefícios trabalhistas.
Outro fenômeno contemporâneo que o autor irá refletir é a financeirização do capitalismo produtivo. O autor faz uma avaliação de como o capitalismo contemporâneo vem se tornando independente da produção e buscando altas taxas de lucro na especulação financeira. Este excedente produtivo nem sempre retorna para o reinvestimento na produção. Ele adentra o mercado especulativo em busca de juros robustos e ao mesmo tempo gera bolhas especulativas que estão sempre desestabilizando a economia. Os investimentos muitas vezes são aplicados em empresas que são uma promessa futura de retorno do investido. Como é uma aplicação de alto risco (já que prever o futuro é sempre aberto ao imprevisto) o retorno do investido em altas taxas de juros, na maioria das vezes é bastante promissor e muitas vezes compensa o risco.
Esta especulação surge da impressão de que uma determinada empresa tem poder neste mercado especulativo. Não é à toa o surgimento do conceito dos chamados Unicórnios: empresas que demonstram nas bolsas de valores possibilidades de crescimento na perspectiva de atenderem a uma necessidade da sociedade de modo inovador: bancos eletrônicos sem burocracia e sem presença física, aplicativos de entrega de comida ou de outros itens, empresas de produção de placas fotovoltaicas. Atividades que outrora cresceriam pelo fato de serem relevantes para a sociedade, hoje ganham um grande aporte financeiro em busca de altas taxas de retorno do investimento.
Dentro deste processo especulativo e de automação da produção onde a informática e as telecomunicações são de extrema relevância, o autor, ao mesmo tempo, cita algumas vantagens que a informática poderia fornecer, bem na tradição marxista de que o sistema hegemônico possui as sementes de sua superação. A informática para o autor, seria uma forma de subverter este sistema pelo fato de que a informática é uma síntese que produz e divulga o conhecimento. É cristalizado em um produto (computador conectado à Web) que não é necessariamente alienante, já que abre janelas para outras formas de conhecimento, por exemplo: tutoriais, cursos on line, aquisição de livros, artigos científicos disponíveis on line, ou seja, essa grande Biblioteca de Alexandria hoje está ao alcance dos toques nos celulares. Esta possibilidade de transformação pelo acesso gratuito à informação está aí disponível. Exemplo disto: todos sabem o quanto é complicado evitar a pirataria de filmes ou consumir coisas pagas no mundo digital. A partir da digitalização do conhecimento, tudo estaria acessível às pessoas para a aquisição e aplicação onde bem quiserem – portanto, o antigo consumidor passivo ou proletário alienado na produção da grande indústria, pode ser mais do que nunca um produtor ativo.
Diante desta possibilidade da informática, ele defende o movimento de softwares livres que seria um contraponto à venda de softwares proprietários. Assim, poder-se-ia evitar que a informática fosse tratada somente como um produto a ser consumido. Ela seria, antes de qualquer coisa, uma ferramenta de divulgação e democratização do conhecimento e que inevitavelmente trará impactos no mundo atual.
Ainda sobre o tema informática, ele cita as vantagens da prototipagem: ela poderia devolver à pessoa a condição de produção de qualquer item com o uso dos recursos da informática.
Quanto ao impasse ambiental em que o mundo se encontra sua solução está diretamente ligada à não alienação do trabalho pela lógica industrial e consumista. É incentivar o gosto do fazer as coisas ou os objetos e não apenas consumi-los como a sociedade é incentivada no dia a dia.
A lógica industrial não é uma técnica isenta: ela separa o homem da produção direta e transformando-o em um autômato que realiza pequenas partes de um processo industrial complexo. O proletário perde a visão holística da produção (incluindo a origem e a extração da matéria prima) e impacta a natureza pela necessidade da exploração em grande escala dos recursos naturais em prol desta produção.
Aliado ao consumo, precisa ainda projetar o descarte desta produção por uma obsolescência programada – se o produto ou objetos adquiridos tiverem uma longa vida útil, a produção não poderá ser escoada. A produção contemporânea está às portas de um moto perpetuo alienante com o seguinte fluxo: a extração da matéria prima, sua transformação em produtos com baixa vida útil, o incentivo ao consumo desenfreado, seu descarte o mais rápido possível e a imediata substituição do velho pela nova tendência de mercado. Neste processo, a recomposição dos recursos naturais parece não ser considerada.
Essa grande escala produtiva por um lado caracteriza a vida do homem contemporâneo pelo acesso a vários produtos de consumo que muitas vezes é incitado pela publicidade. Ela cria necessidades que muitas vezes o trabalhador não sabe se de fato as tem. Gera um indivíduo que não mais produz por si só mas é mero consumidor passivo e eternamente desejante de novos produtos.
Ideologia social do carro
O texto “A ideologia social do carro” (capítulo III do livro) contribui com algumas reflexões sobre o assunto. Como os demais textos são densos, este se torna um texto de certo modo com algum senso de humor pela insanidade do consumidor desejar ter o seu próprio veículo: o autor compara a aquisição deste bem a de um terreno de luxo à beira mar. Se for tratado desta forma individualista e privatista, acaba-se com a praia pois cada terreno à beira mar vira um lote muito estreito impactando o acesso à água. Desse modo a solução individual do transporte gera equívocos semelhantes. O sonho de autonomia e liberdade prometido pelo veículo não se concretiza quando cada cidadão quer um veículo para chamar de seu. Neste sentido, Gorz defende que se deveria lutar pelo direito à mobilidade e não pelo veículo. “Nunca pensar o problema do transporte isoladamente; sempre ligá-lo ao problema da cidade, da divisão social do trabalho e da compartimentalização que esta introduz” (p. 54).
O PIB: crescimento sem garantia de uma vida melhor
O último capítulo do livro, em entrevista, Gorz irá chamar a atenção para as limitações do índice de medir riqueza das nações muito utilizado por economistas e a imprensa: o PIB (produto interno bruto). Este índice nem sempre reflete uma efetiva distribuição da riqueza gerada. Muitas vezes, ações mais simples para uma comunidade se traduz em melhoria na condição de vida e não se traduz em aumento do PIB. Além do mais, o aumento do PIB está diretamente atrelado ao maior esgotamento dos recursos naturais e à exploração do trabalho e não na garantia de uma sociedade mais próspera e solidária.
O Autor do livro irá ainda refletir sobre o impacto da automação no mundo do trabalho. O autor defende a constituição de uma renda de existência para garantir às pessoas condições de vida que extrapole o acesso ao básico, reduzindo o risco de as pessoas terem que se submeter a condições de trabalho degradantes para ter alguma renda, segundo vai impondo o liberalismo atual.
O livro chama a atenção do leitor para o esgotamento dos recursos naturais que os processos produtivos estão gerando. A crítica a este processo e o apontamento de algumas soluções são o ponto forte do livro. Algumas soluções no que tange ao uso da informática para a autonomia produtiva é que falta maior densidade e desenvolvimento. O livro publicado em 2010 e os textos de no máximo até 2007, perde, claro, a percepção de como as coisas se desenvolveram. Há ainda um certo otimismo das possibilidades positivas da informática – e que estão de fato presentes. Mas o anseio por manter a propriedade privada das inovações que as empresas de informática dizem que criam é sempre presente.
Enormes plantas industriais fechadas e transladas para lugares com baixa intervenção estatal e/ou altos retorno das taxas de investimento geraram uma classe média sem perspectiva de futuro. Ao mesmo tempo, em 2020, os governos mundiais se unem para articular um maior controle da evasão fiscal aplicada em paraísos fiscais. A solução política tem sido buscada para alguns desafios atuais. Mas tem um braço financeiro poderoso que gera grande impacto nas possibilidades de melhorar das condições de vida das pessoas no mundo. Soma-se a isso a sombra do fascismo agora presente, agregando grupos órfãos do sistema de produção fordista e do pleno emprego nos países desenvolvidos.
Saídas para a crise ambiental
Para o autor, a saída da crise ambiental e do desemprego causado pela automação estão na proposta de autoprodução e/ou de cooperativas autogerenciáveis. Defende no texto um certo experimentalismo social buscando testar soluções que leve à superação deste momento do capitalismo.
Outro importante conceito é o de decrescimento produtivo. É um conceito muito simples e bastante polémico por ser contra a hegemonia do consenso da economia atual (defendida tanto por políticos de direita quanto de esquerda). Estes defendem um crescimento infinito, calcado na produção industrial, consumo, aumento do PIB e, consequentemente, esgotamento dos recursos naturais. Por outro lado, para Gorz, uma forma de medir que os recursos naturais estão sendo utilizados ao ponto de se recomporem é aferir um decrescimento no PIB. Em síntese, o decrescimento da economia seria um forte sinal de que os recursos naturais estão sendo melhor utilizados e naturalmente se recompondo. A visão do decrescimento produtivo se complementa ainda na defesa de formas mais atomizadas de produção, pois estas tendem a causar menor impacto. Mas ao invés do retorno ao artesanato medieval, esta nova produção poderia incorporar alguns recursos da tecnologia atual (o autor cita a prototipagem como já apresentado no texto).
O livro, pequeno, mas denso, diz muito mais e vale a pena a sua leitura e estudo.
sobre os autores
Tarcísio Marques da Silva é arquiteto e urbanista (UFU, 2001), graduado em Artes Plásticas (UFU, 2000) e mestre em Geografia (UFU, 2005). Foi Professor no Faculdade Centro Universitário do Cerrado em Patrocínio (2014-2015). Atualmente é titular do escritório Marques Arquitetura e Urbanismo (desde 2008) e professor nas Faculdades Uniube e Pitágoras (desde 2016).
Flávia Fernandes Carvalho é arquiteta e urbanista (Centro Universitário do Triângulo, 2000) e mestranda no curso de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e Design da Universidade Federal de Uberlândia.