A pesquisa sobre o conjunto residencial da Hípica ou “Predinhos da Hípica” como ficou conhecido, teve origem no curso de Pós-Graduação da Faculdade de Belas Artes de São Paulo e foi o tema da monografia. A busca pelo objeto de estudo resultou na escolha deste trecho do bairro de Pinheiros devido às suas particularidades.
Logo no início do trabalho descobrimos que o conjunto estava em processo de tombamento pelo DPH (Departamento de Patrimônio Histórico da Prefeitura do Município de São Paulo) e havia sido inserido no novo zoneamento da cidade como ZEPEC – Zonas Especiais de Preservação Cultura.
O conjunto é formado ao todo por 56 edifícios e 39 sobrados projetados e construídos ao longo da década de 1950 no perímetro delimitado pelas ruas Teodoro Sampaio, Mourato Coelho, Arthur de Azevedo e a Avenida Pedroso de Moraes no bairro de Pinheiros.
As primeiras impressões físicas do conjunto nos levaram a crer que seria um empreendimento público, dos Fundos de Pensão, os IAPs. No entanto, trata-se de um empreendimento particular. O imigrante libanês Raduan Dabus que chegou ao Brasil em 1895 e tornou-se exportador de café adquiriu a gleba que pertencia à Sociedade Hípica Paulista. Os predinhos e os sobrados foram construídos no intuito de expandir o patrimônio da família e deixados como herança às futuras gerações.
A Hípica Paulista foi fundada em 1911 no Bairro da Aclimação. Dez anos mais tarde foi transferida para Pinheiros. O crescimento do bairro impedia que a Hípica pudesse se expandir e vinte anos depois foi novamente transferida, desta vez para Santo Amaro. Foi então que Dabus adquiriu a gleba para concretizar seu empreendimento. O projeto de todo o conjunto é de autoria de Felix Dabus, filho de Raduan.
Ao fim das construções e com a ocupação dos novos moradores, a densidade de pessoas aumentou muito no local, o que intensificou ainda mais o comércio da Rua Teodoro Sampaio.
Atualmente a maior preocupação dos moradores do conjunto é justamente com a infra-estrutura da região. Isto porque, embora representem por si só uma alta densidade, os predinhos possuem apenas térreo e mais dois andares. São aproximadamente 25 moradores em cada um dos prédios. A maioria dos apartamentos ainda é propriedade da família Dabus e a possibilidade de que grandes incorporadoras venham a adquirir edifícios inteiros do conjunto, colocá-los abaixo e construir torres muito mais altas assustou os moradores que desfrutam de um verdadeiro oásis em meio à cidade. Esse alarde todo teve início quando a construtora Adolpho Linderberg iniciou a construção do condomínio Edifício Barão de Mauá, na Rua Simão Álvares. O terreno, um antigo estacionamento localizado bem no centro do conjunto da Hípica, corresponde à área de dois dos predinhos (aproximadamente 50 moradores). A torre da Adolpho Lindenberg, 17 andares com dois apartamentos por andar deve trazer uma população de aproximadamente 130 novos moradores para a região. Além disso, o Edifício Barão de Mauá é um modelo do estilo neoclássico, seguindo uma tendência repetida por toda a cidade e de estética duvidosa. A altura deste edifício destoa não apenas dos predinhos, mas também da vizinhança mais próxima formada por sobrados e casas adaptados para o comércio.
Diante desta preocupação, os moradores fizeram um abaixo-assinado pedindo o reconhecimento do valor urbanístico atribuído ao conjunto. O pedido foi aceito por unanimidade no conselho que analisa os processos de tombamento do DPH, o CONPRESP e está no departamento de crítica e tombamento da prefeitura.
Ainda em processo, o tombamento não deve prever o congelamento dos edifícios. O objetivo é preservar as características urbanas que dão tanta singularidade ao conjunto. O foco deve ser o gabarito das edificações, o arruamento, a arborização, os recuos. As reformas e novas construções deverão ser submetidas a aprovações do DPH.
Diante deste fato, os proprietários se mostraram contra o tombamento e entregaram outro documento assinado pedindo a desaprovação do processo. Eles alegam que as restrições do tombamento desvalorizam os edifícios e não reconhecem valores arquitetônicos e urbanísticos no conjunto.
Mas existe muitos valores atribuídos a estes edifícios. É possível analisá-los num contexto urbano temporal nacional e internacional. O período que se inicia com a Segunda Guerra Mundial e se estende até a década de 1960 compreende a fase de mais intensa industrialização e urbanização da história do país.
“Os problemas da implantação da arquitetura urbana seriam corajosamente enfrentados pelos arquitetos e muitos de seus sucessos seriam devido ao elevado grau de consciência com que reconheciam suas responsabilidades. As habitações individuais isoladas aproveitariam de modo especial as inovações arquitetônicas decorrentes do avanço técnico e econômico. Pela primeira vez seriam exploradas as possibilidades de acomodação ao terreno, em que pese a exigüidade dos lotes em geral” (2).
Visto de cima, o conjunto se destaca pela densidade das construções horizontais. É possível perceber a organização do espaço e como a implantação dos edifícios destoam dos demais lotes ao redor. Vemos os pátios internos às quadras.
A imagem aérea, ao lado, em outro ângulo, evidencia ainda mais as diferenças: a uniformidade dos edifícios do conjunto cercado por uma massa desordenada de grandes edifícios.
Uma das particularidades do Conjunto da Hípica que está intimamente ligado à arquitetura moderna da década de 1950 é o conceito de tipo ou modelo.
“Para os arquitetos modernos funcionalistas, o conceito de tipo tinha uma conotação importante. Com o objetivo de chegarem a soluções que fossem reprodutíveis em série, entendiam o tipo como um modelo que permitia ser copiado, repetido. Buscavam geralmente um protótipo passível de ser reproduzido em qualquer contexto“ (3).
Sob este aspecto, cada apartamento do conjunto da Hípica não foi projetado com o intuito de ser reproduzido em larga escala em outros contextos. Mas é um modelo repetido em cada edifício e os edifícios se repetem em cada quadra, formando todo o conjunto, originário de uma unidade.
Outra característica importante que os predinhos apresentam é a aplicação do conceito de uso misto, ou seja, comércio e serviços no pavimento térreo e habitação dos pavimentos superiores. Tal como ocorre nos edifícios voltados para a Rua Teodoro Sampaio. Fica clara a intenção de Dabus em explorar o potencial da região.
As peculiaridades destes edifícios são melhor observadas na visão do pedestre. A agitação da Rua Teodoro Sampaio se dissipa ao caminharmos em direção ao conjunto. Os edifícios de uso misto são quase despercebidos porque estão muito bem integrados à agitação do comércio da rua. Mas os edifícios residenciais recuados das ruas de paralelepípedo com jardins à sua frente trazem sensações especiais. Condomínios simples, sem porteiros, guaritas, câmeras ou outros aparatos de segurança. Sem salões de festas, de ginástica ou garagens no subsolo. Poucas vagas de estacionamento no pátio interno remetem a um tempo em que o número de vagas na garagem não era tão importante.
A construção é bem feita, bem planejada. Os apartamentos são espaçosos, com pé-direito alto, iluminação e ventilação naturais pela frente e pelos fundos. Nos apartamentos do térreo há terraço nos fundos que abre para um pátio onde fica a casa do zelador. Não há elevadores. É tudo muito simples.
O período em que o Conjunto da Hípica foi construído foi a época em que arquitetos propunham outros materiais testando os avanços tecnológicos. É importante destacar o uso das estruturas de concreto que libertavam as paredes da função estrutural. As lajes de piso e cobertura deixaram de ser de madeira e passaram a ser de concreto. As vigas e pilares também passar a ser de concreto. As paredes assumiram a função apenas de painéis de vedação. Esse avanço permitiu uma ampla flexibilidade de plantas.
No descritivo da obra, Felix Dabus, autor dos projetos do conjunto, indica que a estrutura deveria ser de concreto armado e que seriam construídas duas lajes, também em concreto armado, servindo de piso para os dois andares e forro para o pavimento térreo.
As inovações da época não são apenas em relação ao uso do concreto. O período da Segunda Guerra Mundial limitou muito a importação de materiais, o que se tornou um estímulo para o desenvolvimento de produtos nacionais e seu emprego na construção civil.
Além disso, mudanças de caráter estético também aconteceram. Principalmente no tratamento das fachadas, como observamos no texto:
“As mudanças nos sistemas de cobertura, resolvidos agora com telhas de novos materiais, com pequenas inclinações, apoiadas sobre as lajes de concreto e ocultas sob discretas platibandas, dariam ensejo a uma geometrização geral dos volumes, nos termos dos modelos estrangeiros das casas de teto plano, de gosto cubista. (...) Externamente as inovações plásticas corresponderiam à decadência do fachadismo e ao tratamento homogêneo de todas as elevações” (4).
Sob este aspecto, o tratamento dado às fachadas dos predinhos corresponde ao exposto por Nestor Goulart Reis Filho. No projeto aprovado a cobertura com telhas de barro não aparece na fachada.
Na planta aprovada para dois edifícios percebemos a construção unificada deles. Trata-se de uma lâmina dividida em quatro apartamentos por pavimento com duas entradas independentes. Os apartamentos do pavimento térreo possuem área de 115,26 m² e os apartamentos dos andares superiores possuem 122,34 m². Há garagem coberta para quatro automóveis apenas e uma casa para o zelador. A implantação dos edifícios em toda a quadra forma um pátio em seu interior, permitindo maior ventilação nos apartamentos.
As unidades possuem duas entradas. Uma principal pela sala e outra entrada de serviços que passa pela despensa e sai na cozinha. A cozinha tem saída para o terraço-serviço que é todo aberto para o pátio interno. Há um pequeno banheiro na área de serviço e um banheiro grande próximo aos dormitórios. São três dormitórios bem amplos. As paredes das áreas molhadas são revestidas originalmente de azulejos até a altura de 1,50m e os pisos são em ladrilho.
De acordo com o Memorial Descritivo, as paredes são de alvenaria de tijolos assentados com argamassa de cal e areia, revestidos com a mesma argamassa. Os pisos das salas e dormitórios são de taco. Não há forro, apenas as lajes de concreto armado e a cobertura é de telhas de barro sobre vigamento de peroba. As portas e janelas são de cedros e nos dormitórios as janelas levam persianas de enrolar.
Quanto à produção habitacional no Brasil na época de sua construção, o Conjunto da Hípica é um caso especial por ser um empreendimento privado voltado para a classe média. A produção privada foi mais intensa no início do século XIX quando as casas de aluguel predominavam nos grandes centros. Como atividade secundária de produtores de café e industriais, a casa de aluguel passou a ser tratada como um negócio, como atividade comercial. Foi o período em que as periferias começaram a crescer nas grandes cidades como alternativa ao crescimento desmedido da população. Sem a intervenção efetiva do Estado, a especulação imobiliária tomou conta deste cenário e a autoconstrução e as favelas tiveram um intenso desenvolvimento. Para controlar a situação, o Estado promoveu em 1942 a Lei do Inquilinato que passou a congelar os aluguéis e que se estendeu até a década de 1970. O objetivo foi conter não somente a especulação imobiliária dos aluguéis, mas também evitar que investidores continuassem nesta atividade para investirem na indústria que começava a crescer no país.
A questão habitacional passou a sofrer maior intervenção do Estado através dos Fundos de Pensão e apesar de muitos problemas houveram muito bons exemplos de unidades habitacionais produzidas por arquitetos como Warchavchik, Rino Levi, Franz Heep, Júlio de Abreu Junior, Oscar Niemeyer, Eduardo Kneese de Melo, Eduardo Corona, Carlos Lemos, Oswaldo Bratke, Roberto Aflalo, Giancarlo Gasperini, Salvador Candia, Fábio Penteado, Hélio Duarte, Francisco Beck e muitos outros. Influenciados pelo modernismo, eles aplicaram muitos dos conceitos defendidos por Le Corbusier.
O conjunto da Hípica manteve-se em outra categoria de empreendimento. No entanto suas características modernistas são evidentes. Mas a importância maior deste conjunto de prédios é o significado que eles têm para a cidade hoje. A especulação imobiliária criou um adensamento de grandes edifícios em toda a cidade, inclusive no bairro de Pinheiros e os Predinhos da Hípica tornaram-se uma ilha em meio a essa massa de altos edifícios. As qualidades urbanísticas obtidas através do conjunto são os reais motivos de sua preservação.
notas
1
Artigo preparado para a Oficina “Verticalização das cidades brasileiras”, evento realizado na Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, durante os dias 08 e 09 de dezembro de 2006, e promovido pelo Grupo de Pesquisa “O desenho da cidade e a verticalização: São Paulo de 1940 a 1957” e formado pelos professores doutores Nadia Somekh (coordenadora), Abílio Guerra, Antonio Cláudio Pinto da Fonseca e Mario Arturo Figueroa Rosales, e pelos pesquisadores Juliana Di Cesare Margini Marques (mestre), Tais Okano (mestranda), Eliana Barbosa (arquiteta), Elida Zuffo (arquiteta), Aline Simões (graduanda), Daniel Horigoshi Maeda (graduando) e Maria Beatriz Sartor (graduanda). O Grupo de Pesquisa conta com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP e o evento contou com apoio do Portal Vitruvius. A série de artigos publicados em Arquitextos é a seguinte:
COMAS, Carlos Eduardo Dias. Questões de base e situação: arquitetura moderna e edifícios de escritórios, Rio de Janeiro, 1936-45. Arquitextos, nº 078. São Paulo, Portal Vitruvius, nov. 2006 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq078/arq078_00.asp>.
CASTROVIEJO RIBEIRO, Alessandro José; DEL NEGRO, Paulo Sergio Bárbaro. Oswaldo Bratke e a “cidade nova”: o texto e o contexto. Arquitextos, nº 078.1. São Paulo, Portal Vitruvius, nov. 2006 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq078/arq078_01.asp>.
CARDEMAN, David; CARDEMAN, Rogerio Goldfeld. O Rio de Janeiro nas alturas: a verticalização da cidade. Arquitextos, nº 078.2. São Paulo, Portal Vitruvius, nov. 2006 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq078/arq078_02.asp>.
FERREIRA, Caio de Souza. O Edifício Sant’Anna e a Gênese da Verticalização em Campinas. Arquitextos, nº 078.3. São Paulo, Portal Vitruvius, nov. 2006 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq078/arq078_03.asp>.
NOBRE, Cássia C. Conjunto residencial "Predinhos da Hípica”. Arquitextos, nº 080, Texto Especial 398. São Paulo, Portal Vitruvius, jan. 2007 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp398.asp>.
SILVA, Luís Octávio da. A constituição das bases para a verticalização na cidade de São Paulo. Arquitextos, nº 080, Texto Especial 399. São Paulo, Portal Vitruvius, jan. 2007 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp399.asp>.
TÖWS, Ricardo Luiz; MENDES, Cesar Miranda. Verticalização x legislação na Avenida Brasil em Maringá-Pr no período de 1960-2004: algumas considerações. Arquitextos, nº 083, Texto Especial 410. São Paulo, Portal Vitruvius, abr. 2007 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp410.asp>.
2
REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro da Arquitetura no Brasil. 8ª edição. São Paulo, Perspectiva, 1997.
3
ROSSETTO, Rossella. "Arquitetura Moderna e tipologias de mercado", In: SAMPAIO, Maria Ruth Amaral de (org). A promoção privada de habitação e econômica e a arquitetura moderna 1930-1964. São Carlos, Rima, 2002.
4
REIS FILHO, Nestor Goulart. Op. cit.
Bibliografia complementar
AMARAL, Antônio Barreto do. O bairro de Pinheiros. 2ª edição. São Paulo, Departamento do Patrimônio Histórico, s.d.
ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo, Companhia das Letras, 1992.
BARBARA, Fernanda. Duas tipologias habitacionais: O conjunto Ana Rosa e o Edifício Copan. Contexto e análise de dois projetos realizados em São Paulo na década de 1950. Dissertação de Mestrado. Orientadora: Profª Drª Regina M. Prosperi Meyer. Universidade de São Paulo. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, 2004.
BINNEY, Marcus. Town houses: urban houses from 1200 to the Present Day. Nova York, Whitney Library of Design, 1998.
BONDUKI, Nabil. “Habitação social na vanguarda do movimento moderno no Brasil”. Óculum, nº 7/8. Campinas, FAU PUC-Campinas, 1996.
BONDUKI, Nabil. Origens da habitação social no Brasil. São Paulo, Estação Liberdade, 1998.
“Como era o bairro quando Antônio Marques chegou aqui”. Folha de S. Paulo, São Paulo, 26 jun. 1981.
Evolução urbana – a Hípica em Pinheiros. Publicação comemorativa do 426º aniversário da fundação do bairro de Pinheiros. São Paulo, 1986.
FRAMPTON, Kenneth. História crítica da arquitetura moderna. São Paulo, Martins Fontes, 2000.
KOPP, Anatole. Quando o moderno não era um estilo e sim uma causa. São Paulo, Nobel/Edusp, 1990.
PIÑERO, Maria Del Pilar Pérez. “A cidade: um ponto de partida para a habitação”. Óculum, nº 7/8. Campinas, FAU PUC-Campinas, 1996.
“Pinheiros anos 30. Um depoimento do Comendador Orlando Grande”. Gazeta de Pinheiros. São Paulo, 04 jul. 1980.
“Plano Diretor Preserva Imóveis em Pinheiros”. Folha de S. Paulo, São Paulo, 07 jul. 2004.
Plano Diretor Estratégico. Lei nº 13.430. São Paulo, 13 set. 2002.
SAMPAIO, Maria Ruth Amaral de. “O papel da iniciativa privada na formação da periferia paulistana”. Espaço e Debates, nº 37, ano XIV, 1994.
sobre o autor
Cássia C. Nobre, arquiteta e urbanista formada em 2001 pela Universidade Bandeirante de São Paulo, pós-graduada na Faculdade de Belas Artes de São Paulo do curso de Arquitetura e Cidade. Arquiteta da Método Engenharia S.A.