Um dos grandes desafios atuais é conciliar o desenvolvimento urbano e territorial com a preservação de bens culturais. Essa preocupação está expressa em diversos documentos internacionais e em particular na Declaração de Amsterdã, do Congresso do Patrimônio Arquitetônico Europeu, de outubro de 1975. Nesse congresso foram elaborados também a Carta de Amsterdã e o princípio da conservação integrada, ampliando ainda mais o campo do restauro e seus limites disciplinares: centros históricos, área urbanas e territoriais. Com esse fim, o documento conclama à responsabilidade os poderes locais e apela para a participação dos cidadãos, no sentido de evitar que o futuro seja construído às custas do passado. Segundo esse documento, a conservação integrada requer a utilização de todos os recursos disponíveis: jurídicos, administrativos, financeiros e técnicos.
A tarefa de preservação de bens culturais, que já é complexa em situações normais, torna-se ainda mais difícil em conjunturas adversas, como em regimes autoritários ou em instituições com condutas antidemocráticas.
Nos regimes autoritários, o direito de ir e vir, a liberdade de expressão, de pensamento, de consciência e de opinião são os primeiros direitos humanos a serem afetados. Os regimes autoritários atingem também quase todas as atividades humanas e, assim, quase sempre a atividade de preservação de bens culturais.
Vamos tomar como exemplos alguns episódios da história contemporânea.
Em 1925, Benito Mussolini assumiu o poder na Itália por meio de um golpe de estado, com o sonho de fazer reviver o antigo Império Romano. No plano urbanístico, os arquitetos do “Duce” elaboraram para Roma o Piano Regolatore del 1931, constituído de uma série de intervenções monumentais para torná-la adequada aos novos tempos. Essa cidade, que ainda hoje preserva um dos mais ricos acervos da arquitetura universal, dos etruscos à arquitetura moderna, passando pelos períodos clássico, paleocristiano, românico, gótico, renascimental, maneirista, barroco e neoclássico, sofreu grandes perdas na década de 30. Na ocasião foram realizadas obras de reestruturação que descaracterizaram o entorno do Mausoleo di Augusto e, para construir a Via della Concilliazione e a Via dei Fori Imperiali, foram demolidos respectivamente o Borgo Castel S. Angelo e o Borgo Via Alessandrina. O plano de reestruturação de Roma era mais ambicioso e previa grandes cirurgias urbanas que alterariam profundamente as praças Colonna e di Pietra, além dos entornos do Pantheon e de Montecitorio, destruindo grande parte do seu centro histórico. Felizmente esse plano de reestruturação urbanística não foi concretizado. O "Duce" foi capturado pelos Partisans italianos, antes do fim da Segunda Guerra, e foi sumariamente fuzilado, juntamente com sua amante Claretta Petacci, em 28 de abril de 1945.
O segundo exemplo é nacional. Trata-se da obra de prolongamento da Avenida do Mangue até o Cais dos Mineiros, atual Arsenal da Marinha, na cidade do Rio de Janeiro, concebida na gestão do interventor Henrique Dodsworth. Assim, nos primeiros anos de 1940 foi iniciada a abertura da avenida em homenagem ao então Presidente Getúlio Vargas. Desapareceram velhas ruas, e a Praça Onze, um dos lugares mais cosmopolitas da cidade, foi arrasada. Foram demolidas 525 edificações históricas, inclusive o Palácio Municipal e quatro das mais antigas igrejas da cidade, dentre elas a de São Joaquim e a de São Pedro dos Clérigos, um dos mais importantes exemplares da arquitetura religiosa do Brasil Colônia. Essa igreja, construída a partir de 1733 e destruída em 1944, tinha no seu interior talha de refinados contornos de predominância rococó, executada pelo Mestre Valentim, e influenciou as concepções da Igreja do Rosário em Ouro Preto e de sua homônima, a de São Pedro dos Clérigos, em Mariana.
Sobre esse triste episódio da nossa história, escreveu Pedro Nava: “alguma coisa que restar dos alicerces e do pó dos irmãos enterrados e achados a soca-defuntos na sua cripta deve estar embaixo da pavimentação ou dos prédios da Avenida Presidente Vargas”.
Getúlio Vargas foi deposto em 1945 e suicidou-se em 24 de agosto de 1954, durante o seu segundo governo, antes da conclusão da obra. A destruição foi integral, a Avenida Presidente Vargas é um testemunho da violência do corte no tecido urbano e em vários trechos ainda estão presentes ruínas das antigas edificações. A avenida, que marcou uma etapa decisiva no processo de destruição do centro histórico do Rio de Janeiro, continua até hoje incompleta, com diversos lotes vagos e é tão árida, que nem mesmo árvores nascem em seus canteiros.
Mais recentemente, um outro exemplo internacional foi a obra promovida pelo ditador romeno Nicolae Ceauşescu no centro histórico de Bucareste. A intervenção feita por esse ditador destruiu parte de um valioso patrimônio arquitetônico e urbanístico da cidade, conhecida também como “a pequena Paris”. Em seu lugar foi implantada uma arquitetura monumental de estética fascista. A execução do ditador e de sua família em 17 de dezembro de 1989 interrompeu o processo de construir edifícios monumentais e traçar perspectivas megalomaníacas, porém deixou um rastro profundo de destruição no patrimônio cultural romeno.
Casos mais radicais, como a destruição das gigantescas estátuas dos Budas de Bamiyan (construídas por volta do século V) pelo regime fundamentalista dos talibans no Afeganistão em março de 2001, envolvem, além de autoritarismo, o fanatismo religioso. O que explica a velocidade da destruição dos bens culturais daquele país; apenas alguns minutos.
Esses exemplos devem servir de alerta para o poder público e para a sociedade civil politicamente organizada na defesa de seus bens e valores culturais. Autoritarismo e megalomania são, sem sombra de dúvida, comportamentos incompatíveis com a preservação do patrimônio cultural.
A atualidade do caso brasileiro
Mesmo estando em pleno regime democrático, com ampla liberdade de expressão, não estamos livres de alguns episódios de autoritarismo, localizados em setores isolados de governos, que podem afetar duramente a preservação do patrimônio cultural brasileiro.
Guardando as devidas diferenças e proporções com os casos relatados, há um grande projeto que está sendo desenvolvido pelo Governo do Estado de Minas Gerais e que, se não for objeto de uma revisão profunda no seu processo de encaminhamento, pode causar sérios prejuízos ao patrimônio cultural deste estado. Trata-se do projeto de construção de um novo centro administrativo e da reutilização das antigas edificações da Praça da Liberdade em Belo Horizonte.
Deve ser ressaltado ainda que o encaminhamento desses projetos vai na contra-mão do processo para implantação de planos diretores que vêm sendo implementados por iniciativa do Governo Federal. De acordo com o Estatuto da Cidade (lei nº 10.257, de 10/07/2001), os planos diretores devem ser participativos, ou seja, devem permitir que os diversos segmentos da sociedade possam contribuir nas atividades de planejar e de gerir as políticas urbanas e territoriais. O Estatuto prevê uma gestão mais democrática da cidade, por meio de debates, audiências e consultas públicas, ações a serem promovidas por órgãos colegiados de política urbana. Em última instância, é a sociedade que deve decidir para onde a cidade deve crescer e o que é melhor para ela.
A construção de Belo Horizonte é um dos eventos históricos e culturais mais significativos da história de Minas Gerais. O estado, que formou sua identidade política, econômica e cultural a partir do século XVIII, tinha nos primeiros anos da república a sua integridade e a sua unidade geográfica ameaçadas por movimentos separatistas nas regiões Sul e Norte, na Zona da Mata e no Triângulo Mineiro.
A construção da capital de Minas Gerais teve ao mesmo tempo o significado de negar a ordem monárquica e colonial representada por Ouro Preto e de exaltar o espírito republicano, desestimulando os movimentos separatistas e criando assim condições políticas para a integração de suas diversas regiões, a partir de uma nova capital instalada no centro do estado.
Inspirada na ideologia positivista do movimento republicano, projetada pelo engenheiro Aarão Reis a nova capital foi originalmente chamada de “Cidade de Minas”. A capital, que passou a ser oficialmente chamada de Belo Horizonte em 01/07/1901, sofreu muitas mutilações ao longo do seu processo de formação e implantação, mas guarda ainda algumas referências significativas, dentre elas a principal, a Praça da Liberdade, que foi concebida no plano original com características especiais para abrigar a sede do executivo. Na concepção da praça, adotou-se uma implantação sobre a colina Alto da Boa Vista para que o seu conjunto arquitetônico dominasse a paisagem, dessa forma valorizarizando o poder civil. Utilizou-se também uma sistematização urbanística semelhante ao Tridente, tendo o Palácio da Liberdade como vértice do encontro de três grandes avenidas; duas convergentes, Brasil e Bias Fortes, e uma central, a João Pinheiro que se prolonga até o Palácio por meio de uma alameda de palmeiras imperiais.
A Praça da Liberdade abriga hoje um conjunto arquitetônico de grande valor histórico e cultural, não só para Minas Gerais, como também para o Brasil. É o mais valioso e o mais autêntico testemunho material da construção de Belo Horizonte, pois celebra a independência nacional, representa e testemunha os valores republicanos que inspiraram a transferência da capital do estado da cidade de Ouro Preto para Belo Horizonte (1895 -1897). As edificações dessa época, como o Palácio da Liberdade (sede do Governo) e as primeiras secretarias de Estado, foram concebidas de acordo com as tendências arquitetônicas da época – estilo eclético com elementos arquitetônicos neoclássicos. A praça conta também com jardins históricos, projetados originalmente em estilo inglês e remodelados em 1920, sob inspiração francesa. Nos jardins está implantado um coreto denominado Pavilhão da Música de autoria de Edgar Nascentes Coelho e continuam preservados diversos equipamentos e mobiliários urbanos, como postes, bancos e fontes luminosas, implantados ao longo dos anos. A praça é cheia de vida e, devido às suas dimensões, ainda é uma verdadeira ilha de tranqüilidade em pleno centro de Belo Horizonte.
Durante o século XX, a praça recebeu construções de diferentes estilos arquitetônicos: em 1937 o estilo Art Déco do Palácio Arquiepiscopal (atualmente Cristo Rei) de autoria de Raffaello Berti, entre os anos 1954 e 1960 o modernismo do Edifício Niemeyer e da Biblioteca Pública e em 1985 a edificação onde hoje funciona o Memorial da Mineração, de autoria de Éolo Maia e Sylvio Emerich de Podestá, que obedece tendências arquitetônicas contemporâneas. O conjunto arquitetônico e paisagístico da Praça da Liberdade, que compreende seus jardins e monumentos construídos até a metade do século XX, foi tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais – Iepha-MG, por meio do decreto nº 18.531 de 02 de junho de 1977.
O projeto do governo de Minas permite o surgimento de diversos pontos de questionamento. A modernização das secretarias e a localização de suas novas instalações em um novo conjunto arquitetônico constituído de edifícios inteligentes obedecem a uma concepção do urbanismo moderno de cunho funcionalista. A setorização da cidade adotada pelo urbanismo moderno vem sendo questionada por diversos críticos e teóricos da arquitetura contemporânea. Os mais irônicos chegam a dizer que o funcionalismo não funcionou. No caso cabem algumas perguntas: qual será o custo do deslocamento de algumas dezenas de milhares de usuários e de funcionários públicos todos os dias para o novo centro administrativo? Existe transporte público e rede de vias urbanas para atender essa nova demanda? Quais os impactos do novo centro administrativo sobre o uso e ocupação do solo da cidade e da região?
O projeto arquitetônico encomendado a Oscar Niemeyer, um dos maiores arquitetos do século XX, apesar de não ser uma das suas obras mais representativas, apresenta inovações técnicas. A edificação principal do novo conjunto arquitetônico não será apoiada no solo, mas atirantada em uma estrutura de concreto projetada com apenas quatro pilares. Poderia ser um ganho, no sentido de uma nova contribuição para o acervo arquitetônico e urbanístico da cidade, se também não estivesse sendo implantado em local inapropriado; o que permite outros questionamentos que abordaremos no final desse artigo.
Quanto à recuperação e reutilização das antigas edificações da Praça da Liberdade, existem sérios questionamentos relativos aos usos e programas a serem implantados, aos projetos selecionados e à forma autoritária de condução do processo que podem mutilar o patrimônio tombado ou até mesmo inviabilizar o empreendimento. A necessidade de atualizar as edificações, tornando-as edificações inteligentes, procede, contudo não justifica a sua descaracterização.
As intervenções propostas para as edificações destinadas originalmente às secretarias de Estado, todas tombadas pelo Iepha-MG e pelo Município de Belo Horizonte, não visam restaurá-las, mas, sim, descaracterizam-nas, na medida em que não respeitam seus espaços internos e suas volumetrias, suas intenções plásticas e seus ornamentos, os sistemas construtivos e os materiais originais.
A seguir uma análise sucinta de cada projeto de intervenção:
I – Secretaria de Estado da Fazenda
Edificação projetada pelo arquiteto José de Magalhães, autor também do projeto do Palácio da Liberdade, foi construída entre os anos 1895 e 1897 pela Comissão Construtora da Nova Capital – C.C.N.C., em estilo eclético, com influência neoclássica.
Possui fachadas compostas de diferentes ordens arquitetônicas, interior ricamente trabalhado com pintura decorativa nos forros e ladrilho hidráulico no piso do andar térreo. A comunicação entre os pavimentos é feita por uma escada que utiliza o sistema jolly, em estrutura metálica e madeira. As sucessivas ampliações da edificação feitas ao longo dos anos tiveram o cuidado de respeitar suas características originais, o que justificou o seu tombamento integral.
Ao propor o uso da edificação como sede da orquestra sinfônica de Minas Gerais e elaborar um edital de concurso público circunscrevendo as intervenções ao perímetro do edifício, cometeu-se um sério erro de origem: o resultado do concurso, vencido por uma equipe de arquitetos jovens sem nenhuma experiência em conservação de bens culturais, é desastroso para a edificação tombada. O primeiro projeto interfere radicalmente em ampliações históricas da edificação, que está contemplada pelo tombamento em vigor. Em razão dos diversos protestos da sociedade civil e da impossibilidade, em função do tombamento, do Iepha aprovar o projeto, a mesma equipe foi convidada a desenvolver uma outra proposta.
Apesar de já estar na sua sexta versão, o projeto ameniza muito pouco a mutilação na edificação tombada, e ainda não atende às normas dos órgãos de preservação e aos desejos da sociedade civil. Diante dos fatores indicados, foi aberta uma ação no Ministério Público Estadual, movida pelo Sindicato dos Arquitetos – SINARQ –, seção Minas Gerais. Além de tudo, a nova versão utiliza algumas soluções arquitetônicas propostas por outras equipes que participaram do concurso público, o que abre possibilidades para a anulação do concurso.
A reutilização de bens culturais tombados deve ser precedida de um estudo histórico crítico, envolvendo os aspectos de tipologia, estilo, sistemas construtivos, características arquitetônicas e espaciais. Se esse estudo tivesse sido realizado de forma séria, certamente induziria a uma redefinição de uso da edificação e a um concurso que tivesse como uma das exigências a presença de especialistas em preservação de bens culturais na composição das equipes participantes.
II – Secretaria de Estado da Educação (ex-Interior)
Edificação projetada pelo arquiteto José de Magalhães em estilo eclético com influência neoclássica, foi construída entre os anos 1895 e 1897, sob a coordenação do engenheiro Pedro da Nóbrega Sigaud, membro da Comissão Construtora da Nova Capital – C.C.N.C. Possui fachadas ricamente trabalhadas; a principal é marcada no centro por um átrio no pavimento térreo, uma varanda no segundo e no seu coroamento por um arco que sustenta uma cúpula de ferro seccionada com o ícone da República em gesso. As colunas dóricas foram confeccionadas em mármore proveniente da pedreira Acaba Mundo, então existente na cidade. O interior do prédio tem pinturas parietais de autoria do alemão Frederico Antônio Steckel e de seu assistente Bertholino Machado, além dos adornos nos forros e nas peças de estrutura metálica, inspirados em motivos florais característicos da época. O antigo elevador de 1923, ainda em funcionamento, foi o primeiro a ser instalado em Belo Horizonte. Como no caso anterior, as intervenções feitas ao longo dos anos foram respeitosas e preservaram as características originais da edificação, o que justificou o seu tombamento integral.
Funciona atualmente nessa edificação o Centro de Referência dos Professores, espaço destinado às pesquisas de caráter educacional, onde são ministrados cursos e seminários voltados para a qualificação dos profissionais da área. Conta ainda com o Museu-Escola, freqüentado por centenas de pesquisadores e visitantes.
O Centro de Referência dos Professores, que também é protegido por lei está sendo desmontado, gerando protestos da comunidade acadêmica que tem uma forte relação afetiva com esse espaço.
A intervenção proposta configura um caso mais grave, pois demonstra a reincidência no erro citado anteriormente. Foi proposto um programa incompatível com as características arquitetônicas da edificação e convidado para o desenvolvimento do projeto de intervenção um arquiteto que, apesar de possuir uma rica experiência profissional e de ter sido professor da FAU-USP, não tem preparo e sensibilidade para reconhecer valores intrínsecos dos bens culturais, especialmente os tombados. O projeto, que tem previsão de ser financiado pela Federação das Indústrias de Minas Gerais – Fiemg –, caso seja implementado, causará uma grande mutilação no bem tombado e uma profunda descaracterização no conjunto arquitetônico da Praça da Liberdade.
III – Secretaria de Estado de Segurança Pública
Edificação projetada pelo arquiteto Luiz Signorelli em estilo eclético com influência neoclássica, foi construída entre os anos 1926 e 1930 pela empresa Carneiro Rezende. Essa edificação apresenta embasamento e tratamento plástico uniforme que assegura a sua unidade arquitetônica e tem a fachada principal marcada no seu centro pela inserção de ordens dóricas gigantes, correspondendo aos três primeiros pavimentos. Devido a essas características arquitetônicas, seu tombamento é integral.
O projeto que ainda não foi divulgado e, ao que tudo indica, deve seguir o mesmo caminho dos anteriores, terá como novo uso o Centro Cultural do Banco do Brasil. Essa renomada instituição já implantou em outras capitais do País, como Rio de Janeiro e São Paulo, centros de excelência na área de divulgação e valorização da cultura nacional, tendo o cuidado de preservar as edificações destinadas a esse fim.
Esperamos que a Diretoria dos Centros Culturais do Banco do Brasil mantenha sua tradição de preservar os bens culturais brasileiros e em Minas Gerais não adote a atual estratégia do Circuito Cultural Praça da Liberdade, que tem se pautado pela mutilação do conjunto arquitetônico da Praça da Liberdade.
Conclusão
Antes de concluir, cabe ainda colocar algumas interrogações: o que leva um estado que tem em sua estrutura governamental um dos mais prestigiados institutos de preservação de bens culturais do País, o Iepha, a propor esse tipo de intervenção nos seus bens culturais? O mesmo instituto coordenou recentemente as obras de restauração do Palácio da Liberdade, edificação de valor mais significativo do conjunto arquitetônico da Praça da Liberdade. Essa intervenção deveria servir de modelo para as demais intervenções nas outras edificações da praça.
As notícias cotidianas nos levam a crer que houve uma mudança de conduta no desenvolvimento e na aprovação dos projetos de intervenção nas edificações das secretarias de Estado. Por ironia do destino, uma condução autoritária justamente para um projeto de recuperação da Praça nascida com o nome de Liberdade, que para Tancredo Neves era o outro nome de Minas.
A impressão que nos causa é que os técnicos do Iepha estão paralisados pelo medo e não estão tendo a liberdade ou a possibilidade de, a partir de argumentação de natureza técnica, fazer valer os seus pontos de vista.
Dois fatos recentes atestam a condução autoritária e a vontade de implantar o projeto driblando todos os “empecilhos legais”:
- extinção do Conselho Consultivo do Iepha por meio da Lei Delegada 170/2007, de 25/01/2007. Em substituição foi criado o Conselho Estadual de Cultura, subordinado diretamente à Secretaria de Estado de Cultura e sem qualquer vínculo com o Iepha. Este novo conselho ficará responsável pelas diretrizes para intervenções em bens culturais de interesse do Estado de Minas Gerais;
- aprovação pela Câmara Municipal de Belo Horizonte do projeto de Lei que deu origem à Lei 9326/2007, de 25/01/2007. No artigo 2º estabelece que imóveis do hipercentro onde houver nova destinação para finalidades culturais não estão mais obrigados a seguir os parâmetros estabelecidos na Lei 7166/1996 - Lei de Uso e Ocupação do Solo Urbano, relacionados ao coeficiente de aproveitamento, taxa de permeabilização, áreas de estacionamento, entre outras.
Em função dessa conduta, os projetos de intervenção nas edificações das secretarias de Estado além de terem sidos aprovados com controvérsias no Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município de Belo Horizonte, geram protestos públicos e deixam muita insatisfação nas entidades que verdadeiramente se preocupam com a salvaguarda do patrimônio cultural mineiro.
Tendo em vista os fatos mencionados, o Governo do Estado de Minas Gerais, que inicia uma nova gestão nesse mês de janeiro, deveria reavaliar o projeto “Circuito Cultural da Praça da Liberdade” nos seguintes aspectos:
- mudança dos métodos de encaminhamento e das formas de concepção do projeto;
- revisão dos usos e dos programas das edificações contempladas no projeto;
- mudança de concepção dos projetos, no sentido de abandonar os apelos de marketing em favor dos genuínos propósitos da conservação e do restauro dos bens culturais;
- elaboração de um estudo detalhado de impacto ambiental do projeto na Praça da Liberdade.
Essa reavaliação certamente identificaria uma sobrecarga de usos e atividades na Praça da Liberdade, o que, em vez de contribuir para a sua valorização, pode acarretar tanto a descaracterização do seu patrimônio cultural, quanto a destruição de seu patrimônio ambiental, os jardins históricos.
Considerando que a simplicidade e a sobriedade fazem parte “do espírito mineiro”, o excesso seria corrigido, e os usos bem como os programas poderiam ser distribuídos mais eqüitativamente para outras áreas do centro da cidade que realmente necessitam de revitalização. O Museu de Artes e Ofícios é um modelo a ser seguido, uma vez que atua em três frentes: preserva um acervo valioso da cultura material mineira, restaura uma edificação histórica e pode contribuir para a revitalização de uma área histórica degradada.
Aos arquitetos que terão a nobre tarefa de intervir na Praça da Liberdade, um bom exemplo a ser seguido é do mestre Lúcio Costa, que revolucionou a arquitetura e o urbanismo brasileiros. Autor de verdadeiras obras-primas da arquitetura e do urbanismo modernos, como o projeto do Ministério da Educação e Saúde e do Parque Guinle no Rio de Janeiro, e ainda do Plano Piloto de Brasília, ele tinha discernimento e sabedoria ao tratar de patrimônio tombado, que se expressam em sua famosa frase: em Ouro Preto, menos é mais.
Quanto ao novo centro administrativo, sua implantação está proposta para uma área inapropriada, e a sua concretização vai ser um vetor de ocupação de uma área rica em sítios arqueológicos, colocando em risco a sua existência. Reincide-se no erro de escolha pelo governo militar do local para a implantação do Aeroporto Internacional de Confis, construído em uma região de grutas e de ocupação pré-histórica, com mais de uma centena de sítios arqueológicos mapeados. Próximo ao Aeroporto Internacional, na Lapa Vermelha, foi encontrado o crânio de Luzia, datado aproximadamente de doze mil anos. A destruição desse rico patrimônio arqueológico certamente provocará repercussões negativas nacionais e internacionais.
O Governo do Estado pode implantar todos os seus projetos, preservando o nosso rico patrimônio cultural e ambiental e não tendo que enfrentar batalhas judiciais nos Ministérios Público Estadual e Federal.
A atual administração estadual, que tenta espelhar sua ação no governo Juscelino Kubitschek, deve levar em conta que JK, quando à frente do governo do estado, ao mesmo tempo em que construía a Pampulha, marco da arquitetura brasileira e universal, nunca deixou de estar atento à preservação das cidades históricas mineiras, em particular de Ouro Preto e Diamantina, sua terra natal. JK, quando prefeito de Belo Horizonte, criou em 1943 o Museu Histórico, depois denominado Abílio Barreto, na sede da fazenda do córrego do Leitão, única edificação remanescente do antigo arraial do Curral Del Rei; tombada pelo Iphan em 1951.
Nós mineiros gostamos de desenvolvimento, mas desde que seja compatível com a preservação do nosso patrimônio; nossos bens, valores e heranças culturais.
notas
1
Fonte da imagem: Album de Bello Horizonte, p. 51. Edição fac-similar com comentários críticos (org.Rogério Pereira Arruda) Autêntica editora. Belo Horizonte.
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sobre o autor
Benedito Tadeu de Oliveira, arquiteto (UnB, 1980), doutor em Restauro dei Monumenti pela Universidade de Roma – La Sapienza (1985). Ingressou na Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ, Rio de Janeiro, em 1987, onde foi chefe do Departamento de Patrimônio Histórico da Casa de Oswaldo Cruz (1989/1994 e 1997/2001), participou da criação do Museu da Vida e coordenou o trabalho de conservação e restauração do conjunto arquitetônico de Manguinhos. Desde 2002, é professor da Fundação de Arte de Ouro Preto – FAOP e Diretor do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN em Ouro Preto, MG.