“É certo que a vida não explica a obra, porém certo é também que se comunicam. A verdade é que esta obra a fazer exigia esta vida” (1).
Francisco de Paula Lemos Bolonha foi um homem de elite. Aficionado por Marcel Proust, além das correspondências do escritor, leu sua obra completa sete vezes na língua original. Tinha em sua biblioteca autores como Fyodor Dostoyevsky, Lawrence Durrell, Otavio de Faria, Graciliano Ramos, Eça de Queirós e José Lins do Rego; poetas como João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade, além de filósofos como Jean-Paul Sartre, Søren Kierkegaard e Maurice Merleau-Ponty. Dos inúmeros livros de arte e de arquitetura, importa mencionar dois, de um conjunto de quatro, sobre a obra de Michelangelo: de autoria de Charles de Tolnay, foram presenteados a Bolonha no Natal de 1965 por Carlos Lacerda. Com os volumes, uma carta do ex-governador da Guanabara: “vão os livros com a minha amizade e grata admiração pelo seu valor, não só de arquiteto mas, igual ou ainda mais, porque mais raro, de pessoa”.
Apesar de nunca ter feito publicidade do que construiu, Bolonha teve durante as décadas de 40, 50 e 60 sua obra largamente publicada em revistas nacionais e estrangeiras. Dentre os periódicos internacionais, podem ser citados L'Architecture d'Aujourd'hui, Architectural Forum, Architectural Journal, Brasilianische Architectur, The Architectural Review, Bauen + Wohnen Internationale Zeitschrift, Abitare e Architektur und Kultiviertes Wohnen. No campo nacional estão as revistas Habitat, Revista da Diretoria de Engenharia do Distrito Federal (PDF), Arquitetura Revista e Arquitetura & Urbanismo. Acostumado ao silêncio da crítica ao longo dos anos, mais especificamente a partir do fim dos anos 60, surpreendeu-se com o crescente interesse das gerações mais novas pelo estudo de sua obra.
Ao ser interrogado pela primeira vez sobre seu acervo particular, disse com simplicidade e despojamento que de tudo se desfez. Que se alguém desejasse conhecer a sua obra, deveria pesquisar. Com exceção dos desenhos que doou ao Núcleo de Pesquisa e Documentação da FAU/UFRJ e dos que deixou em Cataguases (MG), no Instituto Francisca de Souza Peixoto, Bolonha não guardou consigo quase nada (2). Nem mesmo os quatro álbuns de fotografias de suas obras que preparou para levar à Europa em 1971, onde permaneceu por dois anos em função do prêmio de viagem recebido no Salão de Arte Moderna de 1968, pelo projeto do Edifício Sede da Companhia Estadual de Telefones do Estado da Guanabara, no Rio de Janeiro. Jogou fora também os álbuns de recortes das publicações de seus trabalhos, junto com os de sua esposa, a artista plástica Regina Bolonha, autora de painéis artísticos de azulejos inseridos em suas obras. “Não sei porque joguei tudo fora... Essas coisas que dão na gente, sabe?” (3).
Até recentemente, Bolonha nunca havia sido muito claro para com as indagações a respeito do Mosteiro de Nossa Senhora das Graças (MG), obra que se prolongou por quase todo o tempo de sua carreira e nela ocupou lugar especial. Bem tombado pela Lei Orgânica do Município de Belo Horizonte, o mosteiro foi solicitado a Bolonha pelo então Abade do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, Dom Inácio Accioly, filho do casal Olga e Hildebrando, para quem Bolonha projetava uma casa em Petrópolis. Com o passar dos anos, fortaleceu-se a amizade entre o arquiteto e o monge e muitos foram os trabalhos desenvolvidos por Bolonha para a Ordem Beneditina. Mais do que isto, a estreita convivência permitiu ao arquiteto aproximar-se de um estar no mundo muito especial, diverso do seu em relação à opção por uma vida laica e familiar, mas com o qual muito tinha em comum e cujos valores direcionavam-no com o passar do tempo para uma evidente interiorização e reserva de personalidade.
Bolonha nasceu em Belém do Pará no dia 3 de junho de 1923 e optou muito cedo pela arquitetura. Em função disto, seu pai, Benjamin de Paiva Bolonha, o enviou para o Rio de Janeiro para cursar o ginásio, já com o intuito de prepará-lo melhor para o ingresso na Escola Nacional de Belas Artes. Durante a semana passava os dias no Colégio Anglo-Brasileiro, no Vidigal, em regime de internato. Todos os dias, às sete horas da manhã, descia o morro a pé até a praia em companhia de outros alunos para um inesquecível banho de mar. O medo das pedras e da proximidade das ondas se misturava com o deslumbramento da vista e da natureza ainda intocada, de águas claras e limpas, em nada parecida com aquela que mais tarde viria testemunhar. O contato com a beleza natural carioca marcou seu primeiro ano no Rio, “naquela época, uma cidade deslumbrante”.
Iniciou nesta cidade um modo de vida bastante diferente daquele do menino paraense, habituado às regalias da família, ainda resultantes da riqueza acumulada na época do ciclo da borracha. A recusa em permanecer com as aulas particulares de desenho artístico no colégio interno foi o primeiro indício de que algo se modificava em sua maneira de enxergar o mundo. Apesar do gosto pelo desenho, preferiu abrir mão daquilo que considerava um privilégio porque não queria ser diferente dos outros alunos. Adquiriu no colégio interno, rígida disciplina. A dura realidade aí encontrada, aliada à distância da família, o fez se acostumar a não compartilhar suas decisões desde o início da adolescência, moldando-lhe um caráter independente e objetivo. A clareza sobre o que queria na vida profissional o fez permanecer no caminho que já se encontrava esboçado desde tenra idade.
Francisco Bolonha entrou para a Escola Nacional de Belas Artes no ano de 1940. Apesar de o ensino acadêmico ter predominado na ENBA, alguns alunos foram fortemente influenciados pela nova arquitetura. Ainda como estudante, Bolonha acompanhou a construção do edifício da Associação Brasileira de Imprensa e a elaboração do projeto para o Ministério da Educação e Saúde. Dentre os contemporâneos de que se recorda, menciona Alfredo Ceschiatti, José Pedrosa e Franz Weissmann, além de Giuseppina Pirro (em sua opinião, a melhor aluna), Lygia Fernandes e Israel de Barros Correia. Com os três últimos, formou a equipe que tirou o terceiro lugar no concurso público para a Sede do Jóquei Clube no Rio de Janeiro em 1947 (4).
Ainda no primeiro ano de Escola, começou a trabalhar como estagiário de Aldary Henriques Toledo. Por sua familiaridade com a prática do desenho, logo foi recomendado a trabalhar com Jorge Machado Moreira, que o contratou para o projeto do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, durante o período de 1942 a 1952 (5). Bolonha também participou da elaboração de projetos de paisagismo ao lado de Roberto Burle Marx, que indicaria seu nome para o desenvolvimento de seu primeiro projeto construído, a Fonte Andrade Júnior em Araxá, em 1947 (6). Para Affonso Eduardo Reidy, trabalhou na segunda versão do projeto para a Sede da Administração Central da Viação Férrea do Rio Grande do Sul, em 1944 (7). Reidy foi sempre lembrado com estima pelo amigo como uma pessoa distinta e admirável, sendo considerado por Bolonha como seu maior mestre: com ele, disse ter aprendido a sempre procurar pela perfeição. Em 1945, pela primeira turma da Faculdade Nacional de Arquitetura da Universidade do Brasil, Francisco Bolonha termina os estudos de graduação.
Entre 1946 e 1959 Bolonha trabalhou no Rio de Janeiro e em várias outras cidades do sudeste do país. Não escondeu a preferência pela atuação no interior e a cidade mineira de Cataguases parece ter se beneficiado muito com isto. Ali, através do escritor Marques Rebello, Bolonha iniciou a vida profissional ao lado de Aldary Toledo, Oscar Niemeyer, Carlos Leão, Edgar Guimarães do Valle, dos irmãos Roberto e de Burle Marx. O projeto de paisagismo para a residência de José Pacheco de Medeiros (Aldary Toledo) foi seu primeiro trabalho em 1946, ao qual se seguiram os projetos de arquitetura para as residências de Wellington de Souza (1948), Hercil Ladeira Salgado (1950) e José de Castro (1952). Clientes e suas famílias tornavam-se seus amigos. As longas viagens eram compensadas pelo carinho com que sempre era recebido em suas casas nos finais de semana.
“Na casa do José Pacheco, tinha até o ‘quarto do Bolonha’, como diziam os garotinhos”, contou satisfeito, mais de uma vez. Além das já mencionadas residências, Bolonha também projetou a Vila Operária para os funcionários da Companhia Industrial de Cataguases (início dos anos 50), o Hospital Maternidade (1952) e a Casa Ottonio Alvim Gomes, atual Casa Nanzita Salgado (1954). Preservada em sua totalidade, esta casa apresenta grande fluidez espacial. Uma extensa rampa de acesso ao segundo pavimento permite a fruição e a percepção dinâmica do espaço, em direção ao afresco de cores intensas de Emeric Marcier. Assim como em diversas outras casas do arquiteto, a presença de um pátio interno possibilita a relação do exterior com o interior da edificação através de seus planos de fechamento, para onde, neste caso específico, foram especificadas esquadrias em vidro, venezianas e combogós. (8)
Em Cataguases Bolonha ainda projetou o Monumento a José Inácio Peixoto (1956), na praça de mesmo nome e a Concha Acústica na Praça Rui Barbosa (1958). O projeto para o Orfanato Dom Silvério, de acordo com a revista A Cigarra (julho de 1957), foi doado por Francisco Bolonha à comunidade das Irmãs Carmelitas. Ainda segundo a publicação, este foi apenas o primeiro dos diversos e surpreendentes donativos que foram surgindo na cidade e que auxiliaram na reforma do antigo edifício. Talvez tenha sido também o mais significativo. Nesta obra, assim como nas outras do arquiteto na cidade, a presença de painéis artísticos (afrescos ou azulejaria) demonstrava um trabalho integrado às artes plásticas, procedimento comum aos profissionais que ali projetavam e construíam. Candido Portinari, Américo Braga, Anísio Medeiros, Bruno Giorgi e Emeric Marcier podem ter suas obras contempladas ainda hoje, uma vez que estas se encontram totalmente preservadas.
Concomitantemente à atuação em Cataguases, Bolonha trabalhava no Rio de Janeiro como funcionário do Distrito Federal. Atuou no Departamento de Habitação Popular ao lado de Reidy e de Carmen Portinho. Logo que foi efetivado trabalhou como arquiteto colaborador de Reidy no projeto para o Conjunto Habitacional Prefeito Mendes de Morais, o Pedregulho, em 1946. Em seguida, no mesmo departamento, desenvolveu o Conjunto Residencial de Paquetá (1947-52) e o de Vila Isabel (1955, não concluído). Enquanto o primeiro foi idealizado para um grupo de apenas 27 funcionários da Prefeitura e suas respectivas famílias, que trabalhavam na Ilha sem condições de moradia digna, o segundo possuiria, após sua conclusão, mais de 800 unidades habitacionais de 1 a 4 quartos, distribuídas em quatro tipos de blocos de edificação interligados. Entretanto, o único executado conta com apenas 48 apartamentos. O conjunto contaria ainda com uma escola primária, um ginásio esportivo, teatro, cinema, clube social e uma capela. Quanto ao conjunto de Paquetá, o arquiteto procurou aproveitar ao máximo as áreas disponíveis do terreno, cuja forma triangular, de modo bastante lógico determinou a implantação dos blocos. Para a porção interna do lote foi projetada uma quadra de esportes, além de canteiros e bancos de concreto, para lazer dos moradores. Tanto em Paquetá como em Vila Isabel, Bolonha fez uso de jogos de luz e sombra através da especificação do combogó nas fachadas e galerias de acesso às unidades.
No ano de 1949, Belo Horizonte testemunhava o início da obra do Mosteiro. Por conta de sua longevidade, é a que abre uma série de caminhos para a compreensão da arquitetura de Bolonha e nos permite refletir criticamente sobre suas escolhas frente às teorias que lhe serviram de referência. Permaneceu parada durante anos por falta de recursos, mas o arquiteto acompanhou de perto todas as suas etapas, retornando a Belo Horizonte sempre que solicitado pelas monjas. Para a Ordem Beneditina também elaborou o projeto para o Edifício Diogo de Brito (1953-56), que representa sua primeira realização em edifícios comerciais verticais.
Em Petrópolis ficara pronta a Casa Accioly (1949-51); em Vitória, o Jardim de Infância Ernestina Pessoa (1952); em Muriaé, a Casa Nilo Pacheco de Medeiros (1954); e em Itaipava, a Casa Nelson Collart (1955). A obra mais conhecida de Bolonha na década de 50 é, sem dúvida, a Casa Accioly. A partir da adição de volumes distintos, Bolonha chega a uma composição assimétrica e de organização interna bem setorizada. O programa incluía além das áreas social, íntima e de serviços, um conjunto de celas, claustro e sacristia, destinado ao uso de D. Inácio, e a Capela Santa Maria. Circundando o altar estão afrescos de tema religioso de Emeric Marcier. O arquiteto utilizou técnicas de artesanato manual na elaboração do mobiliário da capela e no plano de fechamento do acesso a seu interior. As venezianas de madeira na lateral filtram a luz e trazem uma ambiência particular ao lugar, contribuindo ainda mais para tornar este espaço um verdadeiro convite à interiorização.
Se o período de 1946 a 1959 caracteriza a primeira fase de sua arquitetura, mais próxima da vertente preconizada por Lucio Costa, e com a expressão formal e o vocabulário da Escola Carioca, a partir dos anos 60 suas obras e seu discurso começam a se modificar. Já se tornava possível observar indícios de uma nova fase, quando Bolonha passou a anunciar que arquitetura para ele era ciência, e não mais arte de construir. Sua obra se torna mais ascética e indica a opção por volumes mais fechados e com menos transparência. Maior sobriedade, caráter construtivo mais acentuado e formas puras assinalam a arquitetura do período que se iniciava.
Convidado em 1960 por Carlos Flecha Ribeiro, o arquiteto assumiu a direção do Departamento de Construções e Equipamento Escolar, lá permanecendo até 1964. Em 1965, recebeu do Estado da Guanabara a Medalha Anchieta pelos serviços prestados à Educação. Foram mais de 242 escolas construídas. Eram freqüentes os elogios do então governador Carlos Lacerda nos discursos de inauguração destas escolas (9). A modulação estrutural utilizada nestes projetos foi acompanhada por regras de simetria e por uma distribuição espacial interna equilibrada, resolvida em um único volume regular. Bolonha implantou cinco padrões diferentes para os edifícios escolares, mas alguns deles tiveram projetos específicos por conta das características do terreno (10).
Além das mais conhecidas escolas municipais projetadas em Copacabana (Roma e Doutor Cícero Penna) e em outros bairros cariocas, como Humaitá (Joaquim Abílio Borges), Leblon (André Maurois), Jacarepaguá (Augusto Magne) e Jardim Botânico (Camilo Castelo Branco), Bolonha ainda projetou na iniciativa privada, o Colégio Andrews (Humaitá, 1975) e a Escola Joseph Bloch (Parada de Lucas, 1964) (11). Esta última passou à gestão do município, apesar de continuar durante alguns anos recebendo das Empresas Bloch manutenção periódica. Nesta escola Bolonha optou por um sistema de iluminação e ventilação zenital, ao invés do uso de janelas. Nas escolas da rede pública, o arquiteto passou a utilizar nas aberturas, venezianas de madeira, uma vez que as trocas dos vidros eram freqüentes e isto demandava maiores custos de manutenção. Tal procedimento também foi utilizado no Colégio Andrews.
Francisco Bolonha foi consultor da Companhia Estadual de Telefones da Guanabara (CETEL) entre 1963 e 1965. Projetou em 1964 a Estação Telefônica de Paquetá, que apresenta as mesmas características formais e compositivas das escolas do Governo Lacerda. Atuou no Banco Nacional de Habitação, trabalhando na Divisão de Programas e Projetos nos anos de 1966 e 1967. Seus únicos projetos de desenho urbano datam deste período: quatro grandes núcleos habitacionais, sendo o maior deles em Salvador com 4000 moradias. Até 1968 trabalhou para as empresas Bloch: seu projeto mais divulgado desta época foi a Casa Adolpho Bloch em Teresópolis, que guarda semelhanças espaciais e compositivas com a casa de Petrópolis. Ambas são levantadas do solo e possuem uma extensa galeria de acesso ao setor social passando por um pátio interno. No entanto, se o conjunto pátio-galeria de ambas as casas dialogam pela cumplicidade tipológica, o mesmo não se pode dizer quanto ao significado que assumem na articulação com os outros espaços de vivência da casa, visto que propõem ambiências de caráter distinto. Enquanto em uma, o que se nota é a singeleza e a simplicidade da composição, na outra chama-nos atenção a monumentalidade da estrutura em madeira que sustenta o telhado e a varanda, e que reforça a inesperada e surpreendente apreensão do objeto arquitetônico, possível somente a partir da aproximação ao lugar.
Além da realização de projetos para as empresas Bloch, o arquiteto dava consultoria a Adolpho Bloch, orientando-o em suas aquisições de obra de arte, uma vez que sempre foi muito ligado às Artes Plásticas. Bolonha possuía sua própria coleção, da qual fizeram parte trabalhos de Tarsila do Amaral, Guignard, Di Cavalcanti, Portinari, Manabu Mabe e inúmeros de Emeric Marcier. Pessoa seletiva, foi conselheiro do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro entre 1964 e 1966, curador da Fundação Raymundo Castro Maya de 1966 a 1970, integrou a Comissão de realização do XXII Salão Nacional de Arte Moderna em 1973 e foi membro do júri de seleção do 1º Salão Nacional de Artes Plásticas da FUNARTE em 1978. Via de regra, freqüentava um grande número de exposições de arte e de arquitetura, todas as que julgasse dignas de serem vistas.
Na década de 70, Bolonha continuou a desenvolver projetos na área de telecomunicações. Foi consultor da TELEMIG e projetou para a TELEBRÁS o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Campinas, além dos Centros de Treinamento de Brasília, Recife e Rio de Janeiro. Na década seguinte, o Mosteiro de Nossa Senhora das Graças encontrava-se parcialmente construído, com muitas paredes ainda em osso e pisos sem revestimento. A grande quantidade de desenhos desta obra, elaborados por Bolonha e sua equipe, mostram além do apurado desenvolvimento do projeto mesmo em fases iniciais, o cuidado que dispensou a este trabalho apesar da não remuneração.
Em 1984, também para os beneditinos, desenvolveu o projeto da Casa do Alto, um alojamento de finais de semana para os monges do Rio de Janeiro, no Alto da Boa Vista. Solicitado em 1982 por Dom Inácio, o projeto construído apresenta linguagens diferenciadas em suas fachadas opostas. A frieza e rigidez do concreto armado e das alvenarias aparentes no lado noroeste são substituídas pelo calor e expressividade da madeira no lado sudeste, no qual podemos observar os pilares soltos do chão, como nos claustros de Belo Horizonte. Foi somente em 1999 que a obra do Mosteiro pôde ser considerada finalizada, e apesar de um de seus blocos não ter sido construído, suas instalações se mostram ainda hoje, plenamente satisfatórias.
Mas se Francisco Bolonha se afastou da Escola Carioca, é preciso dizer também que ele não acompanhou, por exemplo, as experimentações associadas à exploração plástica do concreto armado, ou os grandes vãos e balanços que o material possibilitava, tendências que puderam ser observadas de um lado em Niemeyer no período pós-Brasília, e de outro, na arquitetura característica da Escola Paulista. Com o passar do tempo, Bolonha encaminhou-se para uma extrema racionalização do fazer arquitetônico, traduzido pela acentuação de sua preocupação com a verdade construtiva e pelo respeito às questões econômicas, funcionais e programáticas. Sua atenção para com a marcação rítmica da estrutura como expressão de uma racionalidade arquitetônica fez com que a utilizasse mesmo quando não representativa do verdadeiro sistema estrutural das edificações, como no caso das fachadas posteriores do Educandário e do Mosteiro.
Tal recurso, entretanto, não deixou de evidenciar o uso das grades de modulação, procedimento tão presente em sua arquitetura, seja por influência do trabalho com Jorge Moreira, para quem “tudo era o módulo”, seja pelo rigor obstinado com a questão do necessário, que tão claramente evoluía como atitude e maneira de pensar a disciplina. Foi somente a partir das escolas que esta marcação nas fachadas foi de fato, indicativa da estrutura dos edifícios. Outro aspecto a ser apontado em suas obras da segunda fase é a diminuição das seções dos pilares conforme a necessidade estrutural do pavimento em que se encontravam. Os pilares das fachadas aparecem salientes e escalonados em projetos como os da Casa do Alto e do Edifício José Versiani, sede do SENAI na Tijuca (Rio de Janeiro, 1968).
Em sua fase mais madura, Bolonha recusa os arroubos plásticos e a riqueza compositiva que um jogo de diferentes volumes pode permitir. Admitiu de modo franco e espontâneo que todo o dinamismo encontrado na fachada principal do Mosteiro de Nossa Senhora das Graças, não passava na realidade da expressão de uma fase atormentada de sua obra. “Eu odeio a palavra plástica”, dizia. Nunca consentiu o uso descompromissado de formas ou a valorização da estética pura em detrimento do caráter racional-funcionalista que a obra deveria apresentar.
Mesmo que seja possível apontar duas fases no desenrolar de sua trajetória, sendo a primeira mais nativista e a segunda, mais concretista, o arquiteto não abandonou por completo alguns dos procedimentos iniciais que contribuíram para caracterizar mais fortemente os primeiros projetos como possuidores de vínculo com o passado de nossa arquitetura. Lembrando o que escreveu Lúcio Costa em Documentação Necessária, os arquitetos modernos deveriam servir-se da arquitetura colonial luso-brasileira como material de novas pesquisas e “aproveitar a lição de sua experiência de mais de trezentos anos” (12). Não por acaso, Bolonha utilizou o telhado no Mosteiro, nas escolas do Governo Lacerda (13) e mais tarde, na Casa de Brasília. Não trabalhou com lajes impermeabilizadas em terraços jardins. Mesmo nas últimas casas – a Casa Alvim em Belo Horizonte e a Casa do Arquiteto na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro – o recurso à platibanda escondia uma bem assentada cobertura em telhas de fibrocimento. Na Casa de Brasília, o arquiteto ainda especificou o uso dos azulejos como revestimento de fachada, outra característica de nossa arquitetura mais antiga. A adequação deste material às paredes externas da construção, certamente influenciava suas decisões, não somente as qualidades plásticas que apresentava. A idéia da integração das artes permanece no arquiteto, e os painéis artísticos, sempre utilizados nos passeios públicos e nas escolas, não esconderam a crença no papel social e educativo da arquitetura.
Apesar de não haver intenção plástica declarada em seu discurso, é preciso reconhecer que a qualidade plástica está presente em sua obra. Se ela se sobressai em sua primeira fase, na segunda virá na forma de um “ascetismo plástico, poderoso e digno”. Lúcio Costa também nos fala de uma “intenção plástica não consciente” que “toda obra de arquitetura, digna desse nome – seja ela erudita ou popular – necessariamente pressupõe” (14). Se Costa define a arquitetura, antes de tudo como construção, aponta que é justamente o sentimento individual do arquiteto, “no que ele tem de artista”, que o fará determinar a escala de importância, a predominância ou a simultaneidade dos diferentes aspectos que a arquitetura envolve e dos quais depende: o contexto em que se insere; o cálculo, a técnica e os materiais que vai empregar; a função, o programa e as necessidades que irá atender. Aponta que isto vai fazer a arquitetura se diferenciar da simples construção.
Bolonha buscou a perfeição em seus projetos. Se não a alcançou, deixou claro que esta busca deu à sua obra caráter singular de atividade diária e muita dedicação: “Se nada funciona, não se pode dizer que é boa arquitetura... [...] O arquiteto tem que trabalhar todo dia, como o pintor pinta todo dia, como o escritor escreve todo dia, ou como o médico pratica todo o dia...” Não se satisfazia com soluções que não pudessem ser aprimoradas e novamente utilizadas. Tendia para o estabelecimento de padrões, que “são coisa de lógica, de análise, de estudo escrupuloso” (15). O pilar em tronco de eucalipto que entra em contato com o solo e apodrece na Casa Accioly, ganha um pino metálico no Mosteiro e outro na Casa Adolpho Bloch, assim como uma base em concreto na Casa do Alto. Ao afirmar que as soluções corretas deveriam ser utilizadas por todos, reforçou a importância das referências no processo projetual. De modo bastante irreverente, desglamurizou o processo criativo ao declarar ter feito arquitetura “copiando dos outros”. Ao se contrapor à idéia de uma arquitetura derivada de mágica inspiração, assumiu o lado humano da profissão e definiu uma atitude tanto política quanto existencial, diferenciando-se do mito dos gênios arquitetos que vigorava no meio social e profissional carioca.
Consciente do valor de sua obra, o arquiteto preferiu que ela fosse reconhecida por suas qualidades inerentes, não somente através de sua fala. Ainda que com um comportamento extremamente reservado nos últimos anos e cada vez mais introspectivo, deixou para futuras reflexões a dúvida se o emudecer da crítica não foi na realidade, fruto da eficaz aplicação de uma conduta plenamente conscienciosa do peso e da importância de seus próprios valores, ética e razões. Francisco Bolonha faleceu no Rio de Janeiro na manhã do dia 30 de dezembro de 2006.
notas
1
Merleau-Ponty, Maurice. “A dúvida de Cézanne”. In: Merleau-Ponty, Maurice. Textos Escolhidos. São Paulo, Abril Cultural, 1975, p. 312.
2
Maiores informações sobre estes acervos podem ser encontradas na dissertação de mestrado da autora, intitulada O Mosteiro de Nossa Senhora das Graças: um espaço sagrado de habitar na arquitetura de Francisco Bolonha, defendida no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura da FAU/UFRJ em março de 2004.
3
BOLONHA, Francisco. Depoimento [out. 2003]. Entrevistador: Marcia Poppe. Rio de Janeiro. 2 fitas cassete (120 min.). Todas as outras falas do arquiteto utilizadas neste ensaio foram retiradas de seus depoimentos, realizados entre janeiro e outubro de 2003.
4
O projeto, com desenho de Francisco Bolonha na capa, foi publicado na revista L’Architecture d’Aujourd’Hui nº 21, Paris, nov./dez. 1948.
5
Ver CZAJKOWSKI, Jorge (org.). Jorge Machado Moreira. Rio de Janeiro, Centro de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro, 1999.
6
Ver MACEDO, Oigres. Francisco Bolonha: ofício da modernidade. Dissertação de mestrado. São Carlos, EA-EESC-USP, 2003.
7
Ver BONDUKI, Nabil (org.). Affonso Eduardo Reidy. São Paulo, Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, 2000.
8
Segundo depoimento de D. Nanzita, todo o mobiliário foi desenhado por Joaquim Tenreiro com exclusividade, em sua primeira contratação por Francisco Bolonha.
9
Segundo o depoimento de Regina Bolonha.
10
MACEDO, Oigres. Op. cit.
11
Segundo MACEDO, os arquitetos responsáveis pelas obras de manutenção e adequação das escolas municipais, hoje se referem às construídas no período entre 1960 e 1964 como “as bolonhas”.
12
Costa, Lúcio. “Documentação necessária”. In: COSTA, Lúcio. Registro de uma vivência. São Paulo, Empresa das Artes, 1995, p. 458.
13
Segundo o próprio Lúcio Costa, as escolas de Bolonha são exemplos de boa arquitetura. Cf. MACEDO, Oigres. Op. cit., p. 92.
14
Costa, Lucio. “Considerações sobre arte contemporânea”. In: Costa, Lúcio. Op. cit., p. 246.
15
LE CORBUSIER. Por uma arquitetura. São Paulo, Perspectiva, 2002, p. 87.
sobre o autor
Marcia Poppe, Mestre em Arquitetura pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ, arquiteta colaboradora do Escritório Técnico da Universidade (ETU/UFRJ), pesquisadora do grupo Casas Brasileiras do Século XX: 1930-1960 (PROARQ/FAU/UFRJ).