“Insólito”, “extravagante”, “misterioso”, foram as primeiras idéias que me vieram à cabeça ao ler o convite para participar de um evento em Macau. Se a China impressiona e seduz pelo misto de tradição e progresso, Macau acrescenta a isso quase cinco séculos de presença portuguesa. Como Goa na Índia, as duas ex-colônias incrustadas em territórios de grandes países e culturas milenares sempre despertaram a minha curiosidade.
Que frutos teria deixado esse casamento não totalmente consensual mas tampouco belicoso entre mundos tão distintos? Diferente daqui, a presença portuguesa nesses locais não tinha se tornado hegemônica em relação à cultura local.
Mas uma das inúmeras coisas que eu sequer imaginava encontrar foi a apresentação de um grupo folclórico da alguma região de Portugal constituído quase que exclusivamente por sorridentes orientais, vestidos a caráter e muito à vontade na execução do tiruliruli, tirulirulá.
A excitação começou com a longa viagem e o penúltimo passo em Hong Kong – também ex-colônia incrustada em terras chinesas. Lá se apanha um ferry boat moderno e confortável, que em 45 minutos nos leva, por fim, a Macau. A freqüência das linhas e o tamanho dos barcos já indicam que há intensidade nos fluxos entre os dois territórios.
Em Macau as placas de rua e de estabelecimentos comerciais, obrigatoriamente apresentadas nas duas línguas, segundo o acordo de transferência de 1999, dão a impressão de que ainda persiste mais de Portugal do que a realidade vai nos revelar: atualmente só uns 5% da população falam o português, com um agradável acento produzido pela fonética suave e variada do cantonês. Mas é difícil não estranhar, por exemplo, a existência da Estrada da Ponta da Cabrita, que sai da frente do Aeroporto Internacional de Macau, na ilha de Taipa, ou da Avenida da Praia Grande, que margeia o lago de Nam Van, na porção da cidade onde fica o Centro Histórico.
No Centro, declarado Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco em 2005, encontramos muitas marcas importantes da presença dos chamados colonizadores.
Como as ruínas da fachada frontal da igreja de São Paulo, construção jesuítica seiscentista, destruída, por um incêndio em 1835, ponto turístico obrigatório. Até porque do alto da colina onde ela se ergue podemos ter uma boa idéia dos morros, do desenho urbano e da variedade arquitetônica da área central. Ao examinarmos os detalhes da fachada imponente da igreja, aparece o sincretismo: ao lado de santos e Nossas Senhoras surgem dragões quase fumegantes.
A seu lado as também ruínas do Colégio de São Paulo, que abrigou a primeira universidade ocidental do Leste asiático. As ladeiras apertadas e tomadas por pedestres do Centro nos deixam sempre a impressão de algo vagamente familiar, além dos nomes de ruas como Formosa, dos Mercadores, de São Paulo...
Os imóveis coloniais, uns mais adornados, outros mais simples, alguns ainda, como os daqui, desfigurados pelas circunstâncias da vida, abrigam de tudo. Especialmente sedutoras são as irresistíveis lojas de comidas, com dizeres apenas em chinês, ao lado de atraentes pastéis de nata a lembrarem que aquilo tudo tem mesmo algo a ver com a Torre de Belém e o Museu dos Jerónimos. Mas as incontáveis galerias também acolhem McDonalds, Starbucks e outras marcas famosas do mundo globalizado.
O centro urbano d velha Macau é o Largo do Senado, que sedia, além do edifício da antiga Casa de Leis, o Templo de Sam Kai Vui Kun, que sinaliza a importância da comunidade chinesa e a dimensão multicultural da cidade. Uma simpática fonte refresca os transeuntes e testemunha os eventos públicos e as muitas festas que se realizam na Praça. É ampla o suficiente para permitir uma respirada que o sobe e desce das ruazinhas interdita. Turistas, estudantes uniformizados e os personagens urbanos de sempre formam uma cidade vibrante, alegre e colorida.
Além das muitas igrejas, por toda a parte encontramos também os templos, como o em homenagem à deusa Á-Má, protetora dos navegantes mas composto de vários pavilhões dedicados à veneração de distintas divindades, a exalarem os perfumes de seus incensos rituais e as preces esperançosas ou agradecidas de fiéis de todas as idades. O conjunto, anterior ao estabelecimento da cidade, é exemplar da cultura chinesa, inspirado pelo confucionismo, taoísmo, budismo e crenças populares.
Mas é preciso começar o nosso segundo capítulo, que trata da cidade incrivelmente moderna, capaz de crescer em ritmo chinês e de receber, segundo dizem, mais de 20 milhões de turistas, dados de 2006. É bem verdade que a maior parte é de gente que passa no máximo um final de semana, internado num dos 14 cassinos da cidade, muitos deles acoplados a imensos hotéis. O mais novo carrega a bandeira do grupo Venetian, de Las Vegas, provavelmente bancado por capitais chineses. A escala é indescritível. Corredores com 30 metros de largura e mais de uma centena de comprimento atravessam o edifício, todo ornado por “afrescos” aplicados em tetos abobadados.
Colunas de mármore, fontes, carpetes fartamente desenhados e até mesmo duas gôndolas aparentemente autênticas, tudo procurando reproduzir Veneza. O salão do cassino deve ter uns 80x80 e funciona 24x24. Do alto do meu preconceito, só me ocorreu achar aquilo o kitsch do kitsch, o fake do fake, e sei lá o que mais. Fala-se em mais de 3 bilhões de dólares para construir e montar aquele monstro, dia e noite repleto de gente.
São sobretudo chineses os que alimentam o movimento dos barcos notado no início e vêem a Macau unicamente para jogar, hábito sabiamente proibido na China propriamente dita. Mas também vem tentar a sorte gente de outras partes daquele canto da Ásia, tão competente no manejo das regras do mercado. É a nova burguesia asiática que vem aos milhares deixar parte de seus ganhos nas mesas e máquinas de jogo. Sorte ou azar, o governo fica com 40% do movimento, o que ajuda a entender o lado próspero e moderníssimo da cidade-quase estado.
A arquitetura arrojada nem sempre é sinônimo de qualidade, mas atesta refinamento e contemporaneidade. E muita grana. O Museu das Ofertas sobre a Transferência de Soberania de Macau (sic), ao lado do também moderno Museu de Arte de Macau, é um desses prédios interessantes, em que a estrutura metálica se incorpora nos espaços interiores e conforma, quase sozinha, na sua elegante transparência, rampas, corrimões, salas de exposição e outros vãos.
O acervo impressionante é formado pelos presentes que as províncias chinesas ofereceram à recém retornada Macau, em 1999. Peças de centenas de quilos de jades típicos das várias regiões produtoras, cobre, madeiras várias, tecidos, cristais, artesanatos sofisticados, numa mescla de tradição e modernidade que desafia nosso referencial estético, num gósto-não-gósto que afinal sucumbe àquela beleza, digamos, tão diferente.
O Museu é um dos muitos edifícios situados no bairro moderno à beira-mar, cheio de arranha-céus e ruas largas e com vista para as pontes que interligam ilhas e continente e fazem com que a gente nunca saiba onde está.
O centro moderno são os escritórios da cidade mas, como não poderia deixar de ser, também o bairro de lazer, onde torres crescem a olhos vistos, boa parte das quais voltada a atender a demanda turística por mais hotéis e cassinos, bares, lojas, restaurantes e estabelecimentos noturnos para todos os gostos.
Do alto da torre de Macau, além do lindo panorama da foz do rio das Pérolas, avista-se o movimento dos barcos, o tráfego intenso nas estradas do lado chinês, ao longe o clarão da cidade de Guangzhou e, bem embaixo de nossos pés, as luzes feéricas que ocultam os mistérios insondáveis de Macau.
sobre o autor
Luiz Henrique Proença Soares é sociólogo, pós-graduado em Planejamento Regional e Urbano pelo Instituto de Urbanismo de Paris. Trabalhou nas Secretarias de Planejamento da cidade e do estado de São Paulo, foi diretor de produção de dados da Fundação Seade, diretor e presidente do Ipea. Atualmente é diretor de projetos do Instituto Via Pública, uma Oscip dedicada ao desenvolvimento da gestão pública. Viajou a Macau a convite da organização do XIII Congresso da Federação Internacional de Estudos da América Latina e Caribe – FIEALC em setembro de 2007.