Pela janela do ônibus se desenhava real um país que, até então, era só imaginário, registros fotográficos e imagens de TV. Não passava de umas três da tarde. Os campos pareciam carentes de chuva. No banco do outro lado, dormia um sono cansado, de sorriso no rosto, o O’Connor – figura de cabelo loiríssimo, olhos azuis-clarinhos. Conheci o irlandês na conexão do Panamá, na fila de embarque para Havana. Parecia perdido, perguntando se o portão era ali mesmo. Já no avião me contou que estava havia seis meses viajando pela América Central. Era um especialista em segurança de redes de informática. Economizou dinheiro para deixar aflorar seu ócio e sua latinidade gringa. Na chegada, tivemos a surpresa de encontrar muitos americanos. Jovens. Enquanto a segurança nos revistava, não tirávamos os olhos dos ianques. Será que seriam tratados de forma diferente? Que nada. Nem pelotas. Na Imigração, aquele tradicional medinho de que o funcionário encrenque com a documentação, ou com a nossa cara. Mas não passou disso:
– Eres de Brasil?
– Si.
– Aproveche!
Pé no país, rios de suor escorrendo pelo corpo.
– Que calor! (calollll, como se pronuncia aqui.)
Tratei de ir ao caixa automático sacar dinheiro.
– Mastercard? Tu tarjeta no se acepta aqui.
Socorro! Atenção viajantes. Em Cuba, só Visa.
Tive que apelar para meu cartão de crédito para sacar os Convertibles no caixa de câmbio. Vou confessar que, pela primeira vez na vida, viajei de pacote. Tinha receio de chegar e ficar procurando hotel em Cuba. O pacote incluía passagens, hospedagem e o tal do traslado. Perguntei para a senhora cubana:
– O’Connor es mi amigo. Puede seguir con nosotros?
– Si, que vá.
Fuymos. Do lado de fora do ônibus, a cena me provocava uma forte identificação. Pareciam irmãos, brasileiros. Homens mulatos, negros, sem camisa. Mulheres com pouca roupa. Era uma coisa meio Salvador-Porto-Príncipe. Mas era bem familiar.
– Estamos en casa!
E aquelas casas lindas, despedaçadas. Que monumento do charme decadente! Porta do Hotel, ou melhor, do Habana Libre. O ex-Hilton, agora marco da revolução.
– O’Connor, hasta la noche.
Que hotel, hein! Pelo que já vi, nem Londres ou Nova York tem hotéis com lobby daquele tamanho. Elevador, uma torre de babel. Um burburinho espanhol-italiano-francês-japonês-inglês-e-sei-lá-mais-o-quê.
Quarto, enorme. Vista, magnífica. O entardecer com Habana Vieja ao fundo tinha aquelas cores de inversão térmica de São Paulo, que acabam dando um tom mágico prá paisagem. Noite. Impossível ficar no quarto. Nem no hotel, lotado, com piano-bar e gringos rosados do sol, estatelados nas cadeiras e só com o braço levantado para segurar o mojito na mão. Rua.
– Que hay para hacer cerca de aquí?
– Malecón – diz o segurança.
– Malecón?
– Si, ahora es carnaval en Cuba.
Fui. Perto do Hotel Nacional perguntei a outro segurança como fazia para chegar. Ele me indicou um guia, que logo descartei. Mas me encheu tanto o saco que aceitei o serviço com medo enfrentar a massa cubana sozinho.
Conversa vai, conversa vem. Liberdade política, carnaval, garotas, futebol, esportes e chegamos ao boxe, que eu estava fazendo aqui no Brasil (boxe como atividade física de academia, fique claro). O guia logo disse:
– Boxe? aquele cara trabalha com boxe profissional.
Era Jassel, que viria a se tornar meu amigo cubano. O papo terminou em Carnaval. Jassel gosta muito de nossa brasilidade e conhece muita gente do carnaval cubano. Resolveu me apresentar os carnavalescos locais. Quando vi, estava lá eu. Um tupiniquim, descendente de alemães, como exemplo de brasileiro autêntico, rodeado de gente do carnaval cubano. Muita cerveja, muito papo e uma boa identificação com o povo local. O carnaval? Até eles reconhecem que é pobrinho. E ainda desfilam correndo. Com o pessoal se equilibrando em cima dos carros alegóricos que voam a 60 quilômetros por hora! Jassel me apresentou o carnaval com muito orgulho. Também, com muito orgulho, quis me mostrar, no dia seguinte, como era uma autêntica casa cubana.
Fomos ao apartamento de seu irmão. Tudo simples, mas bem cuidado. Móveis com cara dos anos 50. Sofás que a gente encontrava aqui na casa dos avós. O irmão de Jassel é uma espécie de pai-de-santo, da santeria. Ele me recebeu muito bem. Mas tive que falar mais de Brasil, com pouca oportunidade de perguntar sobre Cuba. Como esse povo gosta de brasileiros!
Jassel agora queria que eu conhecesse sua tia, com quem morava desde que sua mãe morreu e seu pai fugiu para os Estados Unidos. Marcamos um almoço. Ficou pra uns dois dias depois. Naquela noite, encontrei com O’Connor. Fomos à Bodeguita del Medio, provar o mojito mais famoso do mundo.
Ao som de salsa tocada por um grupo que vendia ali seus cds, tomamos muitos drinks, saboreamos um Cohiba e bisbilhotamos um sem número de assinaturas de famosos, de Allende a Hemingway. Fim de noite, convidei o O’Connor para ir até o Habana onde tinha uma festa. Mal entramos no mezzanino e fomos agarrados por muitas mãos:
– Mi amor, pague un drink para mi. Mi amor.
– Calma.
O’Connor sumiu com duas cubanas. Disse que voltava no dia seguinte e nunca mais o vi. Eu fiquei, bebi "un traguito" e terminei a noite conversando com os funcionários do hotel. Jassel telefonou. Quando vi, dei de cara com um prédio quadradão-cinzento, com jeitão de soviet. Era a casa da tia Regla, isso, mesmo nome da jogadora do vôlei.
Antes de entrarmos, passamos no mercado pra fazer umas comprinhas. Jassel havia convidado pro almoço, mas sabe como é. Não dá pra receber visita só com os mantimentos da libreta. Peguei frango, cervejas Crystal e Bucanero, massa, extrato de tomates e azeitonas pra gente petiscar. Ah, e um litro de Havana Club. Não faltaram as flores prá muñeca que, segundo a crença local, guardam espírito. Paguei as compras, claro. Saiu tanto quanto a conta de um jantar individual e solitário no hotel. Subimos.
Na porta, Regla, a filha Quênia, a filhinha Naomi, do Jassel, e Giovanni, filho que a Regla acabara de chamar para conhecer o brasileiro que almoçaria com eles. Almoço? Eram umas 5 da tarde. Viraria festa. Na entrada, todos de sorriso largo de negão brasileiro. Todos menos Giovanni, que tinha sorriso diferente, com dentes de ouro. Que puta simpatia dessa gente! Conversamos tanto que parecia que nos conhecíamos havia anos. Queriam contar tudo o que sabiam sobre o Brasil – que conheciam da TV estatal cubana. Queriam também saber mais. Eu era uma novidade, uma diversão numa rotina de poucas variações.
Foi o primeiro de vários encontros. Grudei na família e a família grudou em mim. Era a vida cubana como ela é, longe dos roteiros pra turista ver. Chegamos a fazer uma pequena aventura juntos, coisa que todo cubano faz nos fins-de-semana. Fomos à praia. Pra isso descemos na esquina de Teja, e paramos um táxi. Era uma Rural Willys laranja, toda estilizada. Acertamos o preço. 10 dólares pra ir, 10 pra voltar. Até a praia foi uma viagem, coisa de 1 hora.
No caminho muito som do Reggaeton, ícone da nova música cubana. Todos animados, sabiam a letra de cor. Mas o motorista fez uma cagada numa conversão e a polícia nos parou. Meia hora de papo lá na viatura. Acertaram uma propina pra ser paga mais tarde. O motorista ficou injuriado e nos deixou ali mesmo, num vilarejo de casas amplas. Caminhamos no sol escaldante e entramos na primeira trilha prá praia. Um mar de gente cobria o mar propriamente dito. Afinal, a única opção de diversão do dia. Meia-volta e mais um quarto de hora debaixo do Sol. Finalmente, um lugarzinho mais tranqüilo. Nós nos instalamos na praia e a nuvem negra no céu. Era um temporal que se aproximava, mas deixava a água do Caribe ainda mais verde. Ninguém saí d’água.
Passou a chuva, bateu a fome. A grana se foi na cerveja, que custa um dólar (dez delas e um salário cubano desaparece). Tinha só uns trocadinhos e pensei: Como vou deixar essa gente passar fome? Eles se viraram. Os guris saíram e voltaram com três caixinhas de papelão. Dentro, frango frito e uma mistura de feijão com arroz. Comemos com o cantinho do papelão.
Confesso, tava uma delícia. Ensolarado, cervejado e com uma família cubana inteirinha pra mim, voltei ao ponto de encontro com o taxista. Mas ele não aparecia. Será que ficou puto com a história dos guardinhas de trânsito? Foi, foi e a Rural laranja apareceu. Voltamos felizes pro apê do prédio onde só vivem filiados ao PCC.
Muita festa, muito rum e chegou o dia de ir. Não antes de tomar um banho de flores preparado pela família. Eles como que entronizaram em mim colares de entidades da santeria. Tudo horas antes de embarcar. Recebi também um bilhete com orientações da avó de Jassel. A simpática mãe-de-santo me recebeu em sua pequena casinha cheia de santos e contou tudo sobre a minha vida sem que eu praticamente abrisse a boca. De banho tomado, irradiando água-de-cheiro, tomei o táxi em direção ao aeroporto. No caminho, me chamou a atenção um entre os milhares de outdoors de propaganda oficial. Dizia algo como: Cuidem-se cubanos. Bush quer tomar nossas casas, nossos carros, tirar o emprego dos pais e a alegria de nossas crianças. Será que não é verdade mesmo?
sobre o autor
Eduardo Diefenbach Prestes é jornalista, gaúcho, editor do Jornal da Record.