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architexts ISSN 1809-6298

abstracts

português
Este artigo se dedica a refletir sobre como tem sido a percepção do Complexo de Paraisópolis por parte da que se entende como a cidade formal que o envolve e sobre se as ações propostas para esse grande conjunto de bairros precários têm sido efetivas.

english
This article is dedicated to reflect on how it has been the perception of Paraisópolis Complex by what is understood as the formal city that surrounds it and whether the actions proposed for this large set of precarious neighborhoods have been effective.

español
Este artículo está dedicado a reflexionar sobre cómo ha sido la percepción del Complejo Paraisópolis por parte de lo que se entiende como la ciudad formal que lo rodea y si las propuestas para este gran conjunto de barrios precarios han sido eficaces.


how to quote

SILVA, Luís; MAZIVIERO, Maria Carolina; FEDELI, Maria Cardoso. Do we love Paraisópolis? Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 197.07, Vitruvius, out. 2016 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.197/6262>.

Casa do Gaudi de Paraisópolis
Foto autores

O presente artigo tem por objetivo lançar luz na condição atual do Complexo de Paraisópolis que, com população estimada em 57 mil habitantes (1), lado a lado com Heliópolis, está atualmente entre os maiores conjuntos de bairros precários do município de São Paulo, sendo emblemático por sua localização no distrito do Morumbi, na Subprefeitura do Butantã, Zona Oeste do município de São Paulo, que faz dele um enclave num entorno de bairros paulistanos de classe média alta. Em função de suas dimensões e de peculiaridades de suas partes, entendemos que estamos diante, como referido acima, de vários bairros que, muito embora apresentem um sentido de conjunto, são heterogêneos. Por exemplo, podemos falar do Jardim Colombo como um bairro fisicamente apartado das outras partes do Complexo pela movimentada avenida de cumeada Giovanni Gronchi, assim como também podemos identificar o Grotinho e mesmo o Grotão como unidades em si, justapostas e partilhando de equipamentos e de ruas de comércio como a Pasquale Gallupi, mas todos segmentos autorreferentes em função de dinâmicas sociais e condições geomorfológicas próprias. O mesmo se pode dizer do vale do ribeirão Antonico, área a que se tem acesso desde outras partes do Complexo por vielas e desde a Avenida Giovanni Gronchi por escadas há alguns anos reformadas. Inclusive o composto Centro – Brejo e sem dúvida o, assim como Jardim Colombo, apartado fisicamente núcleo Porto Seguro, ainda que mantendo relações entre si e com as outras partes do Complexo, podem ser lidos como entidades próprias, ou compostos de comunidades específicas. Para completar, com a nova condição urbana que se estabeleceu após a abertura da Avenida Hebe Camargo, antes Perimetral, com o viaduto que articulou a Rua Pasquale Gallupi com a malha viária próxima, com os conjuntos de reassentamento e equipamentos ali estabelecidos e, futuramente, com o anunciado monotrilho que conectará a região com a rede de mobilidade de alta capacidade, podemos pensar nessa área com desenho diferenciado como, em alguma medida, uma nova parte do multifacetado Complexo de Paraisópolis.

Mapa do Complexo Paraisópolis com projetos realizados, alguns ainda não implantados como o Parque do Sanfona e Escola de Música, no Grotão
Imagem divulgação [Secretaria Municipal de Habitação da Cidade de São Paulo]

Essa caracterização preliminar busca, já de largada, deixar de lado a ideia de um conjunto precário homogêneo e sem tonalidades variáveis por toda sua extensão. Em função de sua população e variedade de situações socioespaciais, podemos dizer que o Complexo de Paraisópolis se configura praticamente como uma cidade, maior inclusive do que muitas cidades brasileiras e que tem, assim, pluralidade característica de qualquer núcleo urbano. Trata-se de uma Cidade que possui laços com sua antípoda Cidade, dita formal, que a envolve, em função de trabalharem nesta muitos dos moradores do Complexo.

Escadaria de acesso a Paraisópolis junto à Avenida Giovanni Gronchi, antes e depois de recomposição realizada
Foto Maria Teresa Diniz

Há, inclusive, áreas em Paraisópolis que são mais precárias do que outras, de forma geral por ainda não terem sido urbanizadas em sua totalidade. Por outro lado, há ruas como a Melchior Giola e a já mencionada Pasquale Galluppi, vias de comércio intenso também frequentadas por moradores não residentes no Complexo, instaladas na cumeada que divide aquele trecho de Paraisópolis em duas vertentes: a do Grotinho e a do Grotão. O Grotão com as suas encostas em risco de deslizamento, atualmente reocupadas por moradias com alto grau de precariedade, onde há contundente ausência de infraestrutura, em especial no que diz respeito à captação das águas pluviais e esgotos. Ali também se percebe o lançamento de resíduos sólidos “in loco”, uma vez que não é possível realizar ali a coleta de lixo, nem mesmo com carrinhos de mão. A outra vertente, o Grotinho, também foi alvo de reocupação recente de encosta em situação de risco de deslizamento, com moradias precárias em madeira situadas nos fundos de lotes de áreas consolidadas, em local inadequado para o reassentamento de famílias. As duas áreas apresentam situações urbanas que geram insegurança para o transeunte, por conta de vielas muito estreitas e longas, que formam um labirinto difícil de compreender para quem não mora no Complexo e também por não ter iluminação pública.

Ainda no que se refere à apontada pluralidade de situações socioespaciais, há a ocupação com uso predominantemente residencial ao longo do córrego do Antonico, que atravessa Paraisópolis no miolo das quadras do loteamento original, nas bordas das quais vemos moradias consolidadas mas que, à medida que se avança no seu interior através de vielas, tornam-se precárias e sem infraestrutura. A região do Antonico é alvo de inundações e incêndios periódicos, estes últimos em função da ausência de rede oficial de energia elétrica associada a moradias precárias em madeira.

Confirmando a pluralidade apontada, há partes de Paraisópolis que têm um nível de consolidação maior do que outros, sendo que existem trechos urbanizados em sua totalidade, com infraestrutura e equipamentos, dentre os quais os novos conjuntos habitacionais; mas há áreas com condições piores no que diz respeito à presença de resíduos e lançamento de dejetos; há setores onde não se recomenda caminhar sem a companhia de lideranças locais; por outro lado, há lojas frequentadas por pessoas que não moram no Complexo – trata-se, como se vê, de uma equação com muitas variáveis a tentativa de compreensão daquele contexto e identificação de ações necessárias e possíveis.

Projetos de Edifícios de Reassentamento junto à Avenida Hebe Camargo, antiga Perimetral PREFEITURA DE SÃO PAULO. Programa de urbanização de favelas – Projeto Paraisópolis, Avenida Perimetral
Imagem divulgação

Paraisópolis, a “cidade paraíso”

Ao se adentrar o Complexo Paraisópolis nos dias de hoje, olhar suas encostas ocupadas, observar a grande densidade das casas avermelhadas agrupadas entre si, implantadas junto ao sistema viário estreito e frenético, que apresenta um vai e vem de micro-ônibus e pessoas, torna-se quase impossível imaginar como era a paisagem daquela região décadas atrás. Também difícil pensar que cruza o Complexo por mais de um quilômetro, o córrego conhecido como Antonico, no meio de várias quadras completamente tomadas por edificações, em grande parte “consolidadas” em alvenaria.

Rua Pasquale Gallupi com seus estabelecimentos comerciais e comércio de rua
Foto autores

O Complexo está implantado em loteamento irregular que teve seu início em 1921 através da União Mútua Companhia Construtora e Crédito Popular S.A., em parte da antiga Fazenda do Morumbi. Hoje está junto a um dos bairros mais ricos e com distinção socioeconômica da cidade de São Paulo, numa região marcada pela proximidade com o Estádio do Morumbi e pelas avenidas Giovanni Gronchi e Morumbi, onde estão dois grandes cemitérios (Getshemani e Morumbi) que representam uma mancha de áreas verdes contíguas ao Complexo, mas de acesso restrito. No projeto original do loteamento não houve destinação de espaços públicos, com exceção do sistema viário que, hoje, em função da ocupação por parte de construções, tem larguras reduzidas e estreitas calçadas que não cumprem sua função de mobilidade com qualidade no deslocamento dos moradores.

O desenho do loteamento apresentava 2.200 lotes, inseridos em quadras com dimensões fixas de 200 m x 100 m, implantados em malha ortogonal que desrespeita por completo a topografia marcante da região, com encostas íngremes e fundos de vale que foram sendo ocupados de forma orgânica e completamente distinta do que foi originalmente projetado. Cabe destacar que apesar da irregularidade do loteamento, as ruas foram oficializadas através de lei municipal nº 7.810 do ano de 1.968.

Projeto original do loteamento de Paraisópolis, apesar de irregular, oficializado em 1968 pela lei municipal 7.810 e ocupação atual sobreposta ao traçado original
Imagem divulgação [PORTAL VITRUVIUS. Projeto Urbano do Córrego do Antonico. Projetos, São Paulo, ano 12, n. 1]

A ocupação de Paraisópolis foi iniciada por famílias japonesas que foram morar na área e faziam cultivo de subsistência nas então vastas áreas desocupadas existentes da região. Aos poucos, no decorrer das décadas seguintes, a ocupação foi se intensificando, em função de pressão imobiliária na cidade de São Paulo e, algo que cada vez mais se tem consciência, como legado de grandes obras já que há relatos que se referem ao estabelecimento ali de significativo número de trabalhadores que participaram da construção do estádio do Morumbi. Através de constatações e pesquisas em campo, no final da década de 1990 (2), foi possível verificar que, com a retirada das famílias da antiga favela Buraco Quente (famoso “BQ”), para a implantação da Avenida Água Espraiada, muitas famílias se mudaram para a região de Paraisópolis, em especial, para as áreas das grotas consideradas de risco muito alto.

Dessa forma se foi construindo Paraisópolis, a “cidade paraíso” para muitas famílias que vieram do nordeste do Brasil e formaram uma grande rede de convívio social, estabelecendo, inclusive, laços de parentesco. Vemos ali desde mães que podem trabalhar e deixar seus filhos aos cuidados de quem confiam, pessoas que ganham tempo ao fazer deslocamentos internos por ruas e vielas agitadas, até comerciantes que abriram seus negócios e prosperaram neste grande mercado de consumo que é oferecido aos moradores.

Morar em Paraisópolis é não precisar “ir à cidade” para fazer compras. Encontra-se de tudo por lá: manicures e cabeleireiros, pet shops com entrega a domicílio, restaurantes, lojas de roupas, clínicas odontológicas, clínica de saúde particular, “hotel para crianças” (casa com cuidadoras para as crianças), loja com pranchas de surf que enfeitam a calçada. Bancos privados como o Bradesco, Santander e Banco do Brasil ali instalados colaboram para a transformação e percepção da importância econômica do dinamismo do Complexo, cujo comércio possui mercados, hortifrutigranjeiros, perfumarias que sorteiam carro zero km no final de ano, além do milho e churrasquinho “na calçada”.

Paraisópolis é conhecida também por conta de outros atrativos: além da grande rede social estabelecida entre famílias e amigos, a forte e consolidada rede econômica na região, para onde outras comunidades se deslocam para efetuar suas compras e usufruir de serviços, incrementam esse cardápio os talentos da comunidade em algo que se tornou a “Paraisópolis das Artes”, que possui um Circuito Cultural que é feito a pé pelo Complexo.

Dentro dessa diversidade cultural, é possível conhecer nesse circuito o belíssimo trabalho do artesão Berbela, que faz peças com sucata e restos de materiais que são reciclados e ganham formas criativas. Quando existem, as calçadas no Complexo são frequentemente ocupadas pelo comércio e, por falta de espaço adequado, o artista trabalha literalmente na rua, em frente ao terreno onde ficam as inúmeras peças que são criadas, admiradas e compradas, curiosamente, em especial por turistas italianos. Berbela passou a ter projeção nacional em função da apresentação de uma telenovela recente, na qual foram utilizadas algumas de suas peças para compor uma animação.

Neste circuito das artes também é destaque a “Casa de Pet” do seu Antenor. A pequena fachada com exatamente a largura da porta, esconde o que será revelado percorrendo cada andar “transformado”. A partir da entrada, passando por uma porta giratória “tipo banco”, feita com garrafas verdes de plástico, há o acesso a um corredor comprido em cujas paredes laterais estão anotados os nomes de diversas cidades nordestinas, numa homenagem que seu Antenor faz aos seus conterrâneos. Todas as tampas e garrafas trazem a contabilidade da quantidade de material reciclável até hoje utilizada. A cobertura da casa é enfeitada por um quiosque e cadeiras também feitos com garrafas pet, com vista para um dos prédios mais famosos da região do Morumbi, com um apartamento por andar e cujas varandas com piscinas formam uma espiral ao longo do edifício.

Vista a partir da “Casa de Pet”
Foto autores

A “Casa do Gaudí de Paraisópolis” é um dos principais atrativos do circuito. Ao longo dos anos a casa foi sendo “cravejada” de objetos comuns do cotidiano que formam as fachadas e a parte interna da moradia feita pelo “seu Estevão”, ou nosso “Gaudí Brasileiro”, conforme citado pela mídia, “assim como nas obras do arquiteto catalão, a primeira impressão que se tem é a de estar entrando em um mundo surreal, algo como um sonho colorido e pitoresco” (3).

Casa do Gaudi de Paraisópolis
Foto autores

Vale mencionar o Alex que inventa moda com qualidade na periferia e tenta quebrar o estereótipo da “moda periguete”, como é vista pela maioria das pessoas. Também o menino Vagner de Alencar, que veio quando pequeno do nordeste morar com sua família em uma das muitas vielas que compõem as grandes quadras de Paraisópolis e se tornou jornalista e escritor, autor do livro “Cidade do Paraíso”, mostrando que a favela não é impenetrável.

E fechando com charme o Circuito Cultural, a presença do ballet e da orquestra filarmônica de Paraisópolis coroam o que é ver a comunidade além da perspectiva de insegurança, violência e precariedade, destaques de grandes proporções nos diversos canais de comunicação, algo que por muitas vezes abafa a grande riqueza do convívio da “cidade paraíso”, multifuncional e com vitalidade cultural, cidade esta que espelha o que é desejado no atual Plano Diretor da cidade de São Paulo, já que, por assim dizer, trata-se de modelo organicamente instalado e em operação.

Entre os planos e os projetos

Nos últimos anos, muitos projetos foram desenvolvidos para o Complexo de Paraisópolis. Ainda que muitos deles não tenham saído do papel, frequentaram revistas de arquitetura suas propostas que representaram a consolidação de uma maneira de lidar com os bairros precários longe da perspectiva de remoção total e reassentamento distante, praticada, por exemplo, quando da construção dos conjuntos de Cidade Tiradentes. Não mais nessa chave da identificação dos bairros precários como anomalias a serem extirpadas, as propostas passaram a considerar os espaços vividos como conquistas, além de possuírem relações internas estabelecidas a serem respeitadas. Em certa medida, vêm acontecendo em São Paulo aquilo que Hassan Fathy vivenciou no Egito quando teve que flexibilizar convicções decorrentes de sua formação modernista para lidar com uma realidade complexa e rica como a dos moradores em áreas precárias que precisavam ser removidas por diversas razões (4). Da mesma maneira que as relações existentes entre vizinhos e a espacialização de formas de socialização dos moradores da cidade de Gourna, na iminência de sua remoção, foram observadas pelo arquiteto egípcio que percebeu a inviabilidade de qualquer proposta de reassentamento que não considerasse essas que compreendeu serem a própria estrutura da comunidade em questão (e de comunidades de forma geral), também as relações presentes nos bairros precários paulistanos, muitos deles contando com habitantes cujas famílias ali estão há algumas gerações, não poderiam ser ignoradas – ao contrário, assume-se que devem nortear qualquer ação transformadora.

Ainda que na mesma chave da consideração dos bairros precários como áreas conquistadas, há ora uma tendência nas propostas recentes para São Paulo de forma geral, e para Paraisópolis em particular, no sentido de promover inserções da lógica da cidade dita formal nas áreas precarizadas e ora, menos frequentemente, defesa de intervenções cirúrgicas associadas a uma grande valorização das pré-existências. Podemos nos referir a essas tendências como posturas propositivas, que são mais ou menos contundentes em relação a esses paradigmas básicos a que se referiu. Na postura propositiva que aponta para inserções de uma lógica diferente da realidade encontrada nos bairros precários, há por vezes uma atitude radical de recomposição e, em outras situações, uma busca de maior costura e equilíbrio entre manutenção e transformação, aproximando-se, assim, das intervenções ditas cirúrgicas, que podem ser inserções marcantes no ambiente já construído ou ajustes e redesenhos que podem ser comparados a obras em núcleos urbanos protegidos por serem entendidos como patrimônio histórico.

Entre as primeiras a considerarem várias escalas e ações integradas entre si, a proposta para Paraisópolis, realizada na primeira década dos anos 2000 por equipe coordenada pelo arquiteto Hector Vigliecca, recebida com inquietação na ocasião de sua apresentação ao Poder Público em função de supostamente pressupor grande número de remoções necessárias, pode exemplificar essa tensão entre as posturas básicas que se identificam em projetos recentes para bairros precários paulistanos. De um lado, a produção de áreas de reassentamento em terrenos contíguos então desocupados faz pensar numa justaposição de formas de arranjo e organização distantes do que se encontra nos bairros precários, ainda que buscando possibilitar uma percepção do espaço público resultante de alguma maneira mais próximo da escala e dinâmica presentes na comunidade atendida. A proposta defendia remoções importantes nas áreas de risco e, algo que faz pensar em intervenções mais cirúrgicas, implantação de edifícios em quadras densamente ocupadas, que para recebê-los, necessitariam de demolições produtoras de esplanadas de convivência nos interiores de quadras, ordenadas por volume edificado para relocação das unidades retiradas, representando na forma de marcos referenciais delicados, mas contundentes, outra forma de cidade, ecoando o que teriam feito os arquitetos renascentistas nas cidades italianas densamente construídas durante a chamada Idade Média (5).

Vista parcial da Maquete do Projeto desenvolvido sob coordenação de Vigliecca [Disponível em ]

Observar o Complexo de Paraisópolis e suas possibilidades pressupõe o passeio pelos vários projetos que têm sido produzidos para aquela parte da cidade, mas também a reflexão sobre a razão pela qual muitos deles foram deixados de lado. Suspeita-se que, além da orientação por parte do Poder Público e sua alternância na gestão da cidade, haveria resistências a determinadas posturas propositivas, eventualmente em função de não contarem com ações suficientemente enraizadas nas comunidades afetadas.

Para compreender a lógica que rege a recente política municipal de urbanização de favelas, especialmente no que toca a Paraisópolis, é necessário entender, primeiramente, a dinâmica das forças envolvidas nesse processo. Nos últimos anos, muitos projetos foram desenvolvidos para o Complexo de Paraisópolis. Em uma breve síntese das propostas das últimas gestões para a área, é possível perceber, entretanto, que há certa lógica do abandono e do descarte presente nas políticas de intervenção. Essa espécie de descomprometimento com a viabilização e/ou execução do projeto entre gestões parece recorrente nas políticas de intervenção em loteamentos informais e favelas em São Paulo, a despeito de quaisquer esforços empreendidos pelo corpo técnico envolvido. A prática do abandono tem provocado, contudo, uma multiplicidade de camadas sobre o mesmo território, nunca executadas. Isto implica em dizer que esta lógica tem produzido sobreposições de planos que nunca se concretizam, ou seja, verifica-se pouca interação entre certa utopia e a realidade, entre a cidade "no papel" e sua aplicação na complexidade e imprevisibilidade da vida cotidiana.

Apesar das dificuldades, fragilidades e ameaças evolvidas nessa dinâmica, revela-se ainda a instabilidade dos processos de trabalho da equipe condutora, demonstrada pelas constantes modificações sofridas pelo corpo técnico. Percebe-se o estabelecimento de um jogo político com manejo dos recursos, que desencadeia um conjunto de “des-ações” para manter, ampliar e consolidar poder, uma vez que essas áreas estão inseridas em contextos sociais, econômicos e políticos. Embora uma série de projetos tenham sido implantados e bem-vindos, alguns planos representaram despejos forçados em nome de melhorias urbanas uma vez que, além de não serem necessariamente destinados a moradores, constituíram-se, muitas vezes, em ações incompletas porque mergulhadas em politicagem (6).

O Estado começou a desempenhar um papel mais significativo para intervenção em favelas a partir da década de 1970, implementando programas pautados por ações em escala mais moderadas (7). Em especial nas duas últimas décadas, tem sido possível observar a institucionalização de intervenções públicas em áreas urbanas informais, com ampliação dos investimentos no setor habitacional através de intervenções que incluem melhorias na infraestrutura urbana e fundiária.

Em Paraisópolis, a população passou a ter um diálogo com o poder público a partir de 1980, quando foi fundada a União dos Moradores. Entre 1983 e 1985, atendendo às reivindicações dos moradores, o município instalou postes de iluminação e iniciou obras de saneamento em algumas regiões da favela. Entre a metade da década de 80 e o começo dos anos 1990, período da abertura democrática no país, quando foram testadas uma série de novas ações em urbanização de favelas articuladas a experiências para garantir a função social da terra, poucas mudanças foram efetivamente sentidas em Paraisópolis. Esse período coincide também com as primeiras ações de regularização fundiária e de provisão de moradia da prefeitura de São Paulo, na tentativa de enfrentar o déficit habitacional na capital paulista.

Na gestão de Paulo Maluf (1993-1996) seguida pela de Celso Pitta (1997-2000), houve uma inversão de prioridades na política habitacional do município, com desarticulação dos mutirões e demais setores vinculados à habitação social e a atuação em assentamentos precários. Efetivo, ao longo desses anos, foi o inchaço populacional sofrido de Paraisópolis devido, sobretudo, às remoções ocorridas em áreas de alto padrão, como a desapropriação da favela do Real Parque e da Avenida Águas Espraiadas. A população então residente nessas áreas, atendida apenas com verba emergencial, passou a ocupar as regiões do Grotão e Grotinho, que possuem maior declividade e risco de desabamentos.

Em 2001, o poder público propôs um modelo de intervenção mais amplo e de maior impacto chamado Programa Bairro Legal, já sob a gestão de Marta Suplicy (2001-2004). Desenvolvido pela Secretaria Municipal de Habitação e Desenvolvimento Urbano, da Prefeitura de São Paulo, com apoio do Programa Cities Alliance – Cities Without Slums, do Banco Mundial, articulava a política habitacional às de desenvolvimento urbano e social. Por meio de planos de ação habitacional e urbanístico, o programa atuava em áreas com altos índices de exclusão e violência. O principal objetivo era aliviar as condições de vida da população e reduzir violência, sobretudo, através de obras de regularização urbanística e fundiária.

Em 2002, a área foi finalmente demarcada como Zona Especial de Interesse Social (ZEIS-1) pelo Plano Diretor Municipal. A partir disso, a Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano elaborou um Plano Diretor de Urbanização, que englobava os seguintes setores, a partir das micro bacias hidrográficas: Centro-Brejo, Antonico, Grotão, Grotinho, Jardim Colombo e Porto Seguro. Essa gestão tinha como proposta de governo manter e dar continuidade às políticas iniciadas nas gestões anteriores, mas na prática, muitos planos continuaram no papel. Entre 2001 e 2004, os programas que atuaram na área foram, basicamente, Programas Bairro Legal e Prover. Sem dúvida, o avanço mais significativo foi o reconhecimento da favela como realidade a ser integrada à cidade “formal”.

Em 2004, a prefeitura tornou público um diagnóstico de reconhecimento da área, que serviu de subsídio para o desenvolvimento do plano do escritório Vigliecca & Associados, dentro do Programa Bairro Legal. O escritório elaborou um projeto com base em cinco pontos: definição física dos fundos de vales, redefinição da malha viária, remoção das áreas de risco, permeabilização da área central e novas edificações para habitação. O projeto, que aparentemente solucionaria muitos problemas, foi descartado na mudança de gestão. Essa não obrigatoriedade de levar a diante projetos elaborados em gestões anteriores, especialmente no caso de assentamentos precários, parece uma lógica recorrente nas políticas públicas, tanto urbanas quanto habitacionais.

No que toca à política habitacional, houve descontinuidade nos planos para urbanização de favelas entre 2005 e 2006, durante o curto mandato de José Serra. Em Paraisópolis, nenhum plano ou projeto foi levado a cabo. A questão habitacional e os programas de urbanização de assentamentos precários foram abandonados, o que contraria o próprio plano daquele governo, que trazia a ideia de dar prioridade a programas voltados a moradias situadas em assentamentos precários.

Em março de 2006, Serra deixou a prefeitura para concorrer às eleições estaduais. A gestão que o sucedeu, de Gilberto Kassab (2006-2012), deu continuidade as premissas da gestão anterior, elaborando um plano de governo com o objetivo de criar e dinamizar novos centros na periferia. Havia, basicamente, duas frentes de trabalho para a política habitacional: i) continuar, retomar e finalizar as ações já iniciadas em gestões anteriores, e ii) iniciar novos programas, como o Programa de Urbanização de Favelas, cujo carro-chefe era a urbanização do Complexo Paraisópolis, transformando-o em bairro.

Essa gestão apresentou um extenso levantamento, calcado no discurso de provisão de moradia digna, com diretrizes claras para a urbanização de favelas e recuperação socioambiental. Na prática, recebeu uma série de críticas, especialmente quanto ao grande número de remoções envolvidas nos projetos.

As visões utópicas e ideais da cidade, representadas nas políticas, nos planos, discursos e programas de governo, apresentam um descolamento da emergência dos fatos. Embora haja um sentido de continuidade de ação, quantitativamente, as intervenções públicas tem se mostrado pouco eficazes, essencialmente por conta das oscilações nas suas diretrizes, que acompanham a alternância de gestões municipais com prioridades diversas. Por outro lado, como apontado acima, a comunidade local tem se articulado em microações que sugerem uma nova perspectiva.

Considerações finais

Percebe-se atualmente um recuo do Poder Público quanto a ações em Paraisópolis, tendo sido reduzida sua presença ali, motivo pelo qual uma série de processos complexos e custosos teria se perdido – exemplar nesse sentido a reocupação de áreas de risco de onde haviam sido removidas muitas famílias, em função da quase paralisia de obras que ganharam grande repercussão como, por exemplo, no Grotão, do Parque do Sanfona e da Escola de Musica, que abrigaria a Orquestra e ballet local. Projetos de escala considerável, representantes da postura propositiva que aponta para a inserção de dinâmicas da Cidade dita formal no seio das áreas precárias – será suficiente para entender sua não continuidade a mudança de prioridades empreendida pela nova administração municipal? Será necessário contar com ações mais rápidas, eventualmente de menor escala e estratégicas nessas áreas cuja ocupação possui dinâmica própria, associada que está à perspectiva de garantia de lugar para as famílias com renda baixíssima junto à infraestrutura urbana, independente de situação fundiária ou mesmo de estabilidade de terreno?

Área do Parque do Sanfona recentemente reocupado, depois de custoso processo de remoções
Foto autores

Com população equivalente à de muitas cidades brasileiras, não seria necessário que Paraisópolis tivesse um subprefeito próprio? Há um conselho gestor do Complexo – as transformações pretendidas teriam, em princípio, sido aprovadas ali por representantes das comunidades envolvidas. Instrumento importante de Participação, será necessária uma revisão dessa forma de representação? Como fazer para enraizar um projeto na comunidade? Terão sido suficientemente enraizados os projetos que vemos sendo deixados de lado?

notas

1
Segundo dados oficiais da Prefeitura da Cidade de São Paulo/ Secretaria de Habitação/ Habita SAMPA, são 17.159 domicílios. Se considerarmos uma média de 3,3 pessoas/domicílio, tem-se uma população aproximada de 56,6 mil habitantes (A média vem dos dados do Censo 2010). Contudo, a União de Moradores e do Comércio de Paraisópolis estima um total de 100 mil habitantes, segundo os atendimentos da sede.

2
Maria Teresa Fedeli participou da equipe de cadastramento do Instituto de Pesquisas de Diadema/ Hospital Albert Einstein para o Programa “Eisntein na Comunidade” e neste período pode constatar novas ocupações nas grotas de Paraisópolis, onde as famílias temiam o cadastramento “porque acabaram de sair da favela do Buraco Quente”.

3
NOVAES, Marina. Tour cultural por Paraisópolis. El País Brasil, 2 jun. 2015 <http://brasil.elpais.com/brasil/2015/06/02/album/1433257073_149735.html>.

4
FATHY, Hassan Construindo com o povo: arquitetura para os pobres. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1982, p. 15.

5
VIGLIECCA, Hector; RUBANO, Lizete (org.) O terceiro território: habitação coletiva e cidade São Paulo: Arquiteto Hector Vigliecca e Associados, 2014, p. 131.

6
“a politicagem se manifesta através das formas impuras do poder, produzindo mal público, ao contrário da política, que segundo Aristóteles, é a arte de produzir o bem comum”. Montarroyos, Heraldo Elias de Moura. Programa de pesquisa da politicagem: ideias, princípios, regras, critérios e aplicações. Revista Theoria de Filosofia. Pouso Alegre, v. 4, n. 9, 2012, p. 41.

7
DENALDI, Rosana (Org.). Ações integradas de urbanização de assentamentos precários.  Brasília/São Paulo, Ministério das Cidades/Aliança de Cidades, 2009, v. 1; DENALDI, Rosana. Estado, políticas habitacionais e favelas no Brasil. Leopoldianum. Santos – SP, v. 81-82, 2004, p. 65-90.

sobre os autores

Luis Octavio de Faria e Silva é arquiteto (1989), mestre (2001) doutor (2008) pela FAU USP. Membro do corpo docente da Graduação e do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu da Universidade São Judas Tadeu USJT. Coordenador do curso Habitação e Cidade, Escola da Cidade. Membro do Conselho Diretor Associação Escola da Cidade. Mantém o escritório Anália Amorim & Luis Octavio de Faria e Silva arquitetos

Maria Carolina Mazivieiro é arquiteta pela Universidade Estadual de Londrina (2003), com mestrado (2008) e doutorado (2013) pela FAU USP, e estágio doutoral no Institute of Urban and Regional Development da Universidade da Califórnia, Berkeley. Membro do corpo docente da Graduação e do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu da Universidade São Judas Tadeu. Líder do grupo de pesquisa CNPQ “Urbanismo na era digital” na USJT.

Maria Teresa Cardoso Fedeli é arquiteta e urbanista formada pela Universidade Paulista – Unip (1995), curso de pós em “Habitação e Cidade” pela Escola da Cidade, assistente de coordenação do Curso “Habitação e Cidade”, e Gestora de Projetos Especiais na ONG Habitat para  Humanidade, Projeto financiado pelo orgão Cities Alliance.

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197.07 política
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