Com a ocupação do território da região do Sudoeste de Goiás a partir de 1850 (1) e a efetivação das posses das fazendas com o Registro Paroquial a partir de 1855 a terra ancestral dos Cayapós foi, paulatinamente, dessaparecendo. Com o registro veio a estabilidade legal. Ainda que os posseiros não estivessem sendo ameaçados de expulsão pelo governo provincial ou imperial: ameaças e punições à posse ilegal de terras em outros locais do Império haviam virado “letras mortas”. Os fazendeiros sabiam disto. Tanto, que não era incomum a menção de “compra” da propriedade. Sem especificar o vendedor, o requerente pagava o imposto devido e registrava a propriedade. Apesar das precariedades, com o registro, podiam ficar seguros em relação aos direitos de herança e transmissão. O tempo inicial do assentamento, a precariedade das instalações provisórias e os receios de deixar os filhos desamparados ficaram no passado. A fazenda se colocaria em um novo patamar: a construção da sede.
A construção da sede
Em 1847, o Sr. Francisco Peixoto de Lacerda Werneck – então Barão de Paty de Alferes no Rio de Janeiro – escreveu um pequeno livro com o objetivo de municiar seu filho que retornava ao Brasil, depois de concluir seus estudos em Roma e Paris. Memoria sobre a fundaca̧õ e costeio de uma fazenda na provincia do Rio de Janeiro foi um relativo sucesso entre os membros da elite cafeeira, chegando a ter várias edições.
Seria pouco provável supor que os que migraram de Minas Gerais e São Paulo para o sudoeste goiano, a partir da segunda metade do século 19, conhecessem a obra. Restrito ao circulo da Corte, o livro era uma curiosidade: conselhos de um grande proprietário destinados à montagem e manutenção de uma propriedade rural. Um “mimo” de um pai amoroso ao filho neófito. Mas isso pouco importa. O texto mostra-se depositário de um universo de conhecimentos que o Barão não poderia ter adquirido sozinho. Reproduzia práticas e saberes que somente poderiam vir de quem trabalhava diretamente no sertão, o que não era o caso, certamente. Uma coletânea de informações disponíveis ao establishment da época, mas que não se restringia, ou não tinha origem, na elite rural brasileira. O conhecimento das madeiras, a localização do terreno, a extração das águas, a organização dos caminhos e o manuseio com as bestas de carga e transporte eram denominadores comuns a qualquer trabalhador rural da época.
O Barão advertia que, a primeira preocupação em montar qualquer fazenda era a água, que deveria movimentar os diversos equipamentos destinados a tornar o trabalho rural mais produtivo: monjolo, engenho de serra, moinho e engenho de cana. E assim que encontrar a aguada, “tirar o nível dessa com direcção à mais vantajosa localidade” (2). Para ele, a salubridade era um princípio norteador de qualquer estabelecimento e que não implicava em aumento do custo das obras. Junto com a higiene, estava algum senso de estética a harmonizar a propriedade, mesmo sabendo que:
A architectura rural não tenha ainda constituído entre nós regras fixas, todavia é fora de duvida que tal ou qual elegância não é incompatível com a economia que deve presidir a todas as construcções que houverem de ser levantadas em uma fazenda (3).
A concepção básica das fazendas do sudoeste goiano foi, certamente, transposta das fazendas de origem dos fazendeiros para aquelas novas fronteiras. As raízes das fazendas goianas estão em Minas e São Paulo (4). Nota-se, desde as mais antigas, uma distribuição lógica e racional das edificações: produto da experiência acumulada de seus antepassados e também reflexo de uma maneira de se encarar o trabalho. Mesmo àqueles rincões do Império chegavam as “luzes” da Era Moderna.
Tanto uma fazenda de café do Vale do Paraíba, de açúcar perto de Recife ou de gado em Goiás tinha um único propósito: produzir. Para a sobrevivência e excedente que pudesse ser vendido ou trocado. Nesse sentido, a correta escolha do sitio, era de crucial importância. Podia determinar o sucesso ou o fracasso da empreitada. Era necessário que o terreno possuísse declividade necessária a fazer girar as engrenagens pela força d´água. O que parece ter sido um fator preponderante à implantação: a meia encosta como local ideal.
A totalidade das fazendas remanescentes dá testemunho desta condição em relação ao terreno. A agua era imprescindível, mas não necessitava que o manancial estivesse ao lado da sede. Regos, desvios e rasgos levavam a água onde fosse preciso, desde que houvesse desnível suficiente. Todos os fazendeiros conheciam e manipulavam com perfeição as técnicas ancestrais de construção de regos e canais que faziam a água chegar à sede por gravidade.
Escolhido o terreno, tinha início o preparo do local para receber as edificações. E reconhecer uma terra boa era uma tarefa das mais fáceis, desde que se conhecesse a flora local. As terras boas poderiam, facilmente, ser identificadas a partir das madeiras de suas matas, reconhecíveis a “notável distancia”. Assim, uma terra de primeira qualidade estaria povoada por cedros, jacarandás, canelas, sucupiras, óleos e bálsamos. Uma terra mediana seria povoada por ipês, vinháticos, perobas, garaúnas, canelas pretas e cabreúnas. Já uma terra inferior estaria infestada de muricis, bacuparis, caetés e cipós.
Uma demonstração de que estes conhecimentos, documentados por Francisco Werneck, pertenciam ao senso comum de diversos fazendeiros do sudoeste de Goiás, foi a implantação da fazenda Ariranha, de propriedade de José Manoel Vilella (5). Uma das primeiras, maiores e uma das mais importantes da região, datando de 1836 (6). Todos os princípios preconizados por Francisco Werneck podiam, ali, ser identificados: a casa do proprietário em lugar mais alto, não distante do curral, o rego d´água a abastecer a propriedade e a movimentar o engenho, a serra, o moinho, o monjolo e a imprescindível salgadeira no curral. O traçado do rego d´água formava uma espinha dorsal articulando as partes produtivas. A partir dele, girava o cotidiano de trabalho.
A ausência, pouca quantidade ou má qualidade da água impedia o funcionamento de toda a cadeia produtiva. Devido a um problema de abastecimento, a fazenda Lagoa, concluída em 1872, por exemplo, foi abandonada, vendida, desmontada e remontada, uma légua de seu local original para perto de um curso d´água estável.
Diante desta generosidade de matérias-primas – madeira, pedra e barro – a primeira providência a se estabelecer em uma fazenda depois de apossada, era a construção de uma construção provisória. Junto a uma abundante fonte de água, erguia-se uma casa simples que pudesse abrigar a família do fazendeiro. Térrea, sem porão alto, com fechamento de adobe ou madeira e, muitas vezes, de terra batida. Construções sólidas, mas extremamente simples. Destinadas a garantir o abrigo essencial ao núcleo familiar. Na fazenda Limeira e na fazenda Babilônia, por exemplo, a primeira habitação ainda sobrevive próxima à casa principal, edificada mais tarde e com maior apuro técnico e formal.
Nestes exemplos, podemos ver através da rusticidade e da despretensão do acabamento, o emprego da técnica construtiva em seu grau mais inicial. Devido a pouca altura das alvenarias, as fundações são também mais rasas. Os beirais e os pés direitos são menores. As janelas mantêm o coroamento alinhado com a verga superior das portas o que conserva a escala do conjunto, ainda que incipiente.
A frente pioneira era formada apenas e essencialmente por homens – fazendeiros e auxiliares normalmente deixavam suas famílias em suas cidades de origem – e, só depois que o apossamento do território estava garantido, tratavam de buscá-las, ou de se casarem, se fossem solteiros.
Junto com a construção, seguiam-se a derrubada do mato e o plantio das roças que deveriam garantir o sustento do núcleo inicial. Somente depois que a fazenda se encontrava estabelecida é que se começava a construção da sede. Evidentemente, um aporte maior de recursos e de mão de obra. Normalmente, a casa anterior, mais modesta, não era demolida: era aproveitada como depósito, paiol ou alojamento para empregados ou agregados da propriedade.
Esta edificação provisória foi comum nas fazendas mais antigas. Quando o fazendeiro construía uma casa para um dos filhos que se casava, não havia necessidade da casa provisória. A conclusão da obra precedia o casamento. Também era comum que os parentes, agregados e conhecidos se juntassem em mutirão para a construção: ajuntamento para acelerar alguma etapa da obra, como os esteios, a colocação dos barrotes ou cobertura.
Escolhido o local para a sede, importava contratar carpinteiros capazes. Alguns fazendeiros, mais abastados, mandavam contratar mão de obra e “mestres” em outras regiões. De acordo com alguns relatos, esporadicamente apareciam na região, carpinteiros especializados na construção de residências, procurando trabalho. Alguns deles ficaram muitos anos na região e foram responsáveis por muitas obras.
Em relação à concepção do edifício, a rigor, não poderíamos falar em partido ou programa arquitetônico, ao menos no sentido que lhe atribui a teoria de arquitetura (7). Prudentemente evitaremos este debate. Ao empregarmos essa terminologia, temos por objetivo aproximar-nos de um conceito, ainda que tenha sido incipiente, responsável pela distribuição dos ambientes, pelo dimensionamento e volume do espaço construído (8).
Parece inegável que havia alguma negociação entre o proprietário e os construtores, ainda que regidos pelos usos, costumes, conveniências e condições financeiras do empreendedor. Por mais informal que fosse, cabia ao proprietário dizer como queria que fosse o edifício, quantos ambientes deveria ter, ainda que informalmente. Um conjunto de necessidades que deveria ser equacionado pelos mestres construtores dentro dos parâmetros da técnica construtiva da estrutura de madeira.
Na ausência de legislação regulamentadora, dois princípios norteavam os espaços: uma norma social que colocava a família protegida no interior da residência e uma regra de obediência à funcionalidade. A sala de visitas, ou acesso, protegido por uma única porta, muitas vezes guarnecido com local para hóspedes, comunicava-se com o mundo externo. Internamente, uma sala de jantar fazia a ligação entre os quartos e a cozinha, voltada para a parte posterior.
Os fazendeiros contratavam mestres construtores e isto é um fato; portanto, em algum momento um determinado conjunto de informações se tornou uma ideia (9), um “conceito” (10) para um edifício. Um acordo que atendia às expectativas e aspirações do contratante. Neste contexto, o partido arquitetônico, se dava no momento em que as necessidades do proprietário – expressada oralmente – se transformavam em ícone. Transposição da linguagem verbal em uma linguagem não verbal feita pela sólida tradição construtiva e das técnicas coloniais.
Devemos considerar também alguma influência formal das construções paulistas e mineiras. Não apenas grande parte dos fazendeiros do sudoeste de Goiás era oriunda daquelas regiões, como mantiveram uma contínua relação em viagens movidas pelo comércio de gado. Desta maneira, parece certo afirmar que as construções mais antigas formavam uma espécie de “modelo” às mais novas. Ainda que fossem menores ou menos importantes, o trânsito de parentes, os casamentos, as divisões familiares e as partilhas compartilhavam as informações sobre todos os assuntos, inclusive as relações com o espaço construído.
Sylvio de Vasconcellos (11) identificou na arquitetura rural do centro de Minas no século XVIII a existência de uma estrutura de esteios de madeira e com varandas dotadas de cômodos que podem ser capelas ou quarto de hóspedes. Entretanto, este modelo ancestral não foi transposto para a região sudoeste, apesar de que algumas famílias procederam de regiões como Ouro Preto, por exemplo. Da mesma maneira, não existiram construções como a do Engenho São Joaquim em Meia Ponte. Era construção única destinada à habitação e ao engenho, também dotada de varanda com capela e quartos para hóspedes. Tampouco ocorreram no sudoeste construções assentadas diretamente sobre muros ou alicerces de pedra como as identificadas por Cícero Cruz (12). Os princípios estruturais da gaiola pombalina, concebida após o terremoto de Lisboa em 1755, parecem não ter alcançado as fazendas do sudoeste de Goiás.
As construções rurais do sudoeste goiano parecem ancoradas numa tradição construtiva mais antiga, na qual os esteios estão enterrados diretamente no chão, conforme muitas construções rurais do século 18 em Minas Gerais. A parte inferior do esteio não era lavrada – denominada nabo – e, enterrada, enrijecia a estrutura no nível dos baldrames, travando-a. Criando com isto uma estrutura de conexão rígida, hiperestática.
Parecem estar inscritas na quinta tipologia de arquitetura rural como apontada por Alcides Miranda e Jorge Czajkowski (13), a partir da categorização feita por Joaquim Cardoso em 1943: casas de um pavimento sobre porão alto cuja principal característica, além da horizontalidade, é a existência, na fachada principal, de uma escadaria que leva ao patamar de acesso principal.
O raro registro fotográfico da construção da sede da fazenda Alto do Bonfim, em 1929, exemplifica esse processo construtivo com clareza. Na imagem, podemos ver que a gaiola de madeira e a cobertura estavam concluídas e a alvenaria de vedação, iniciada. Diversos carros de boi puxam madeira para o canteiro de obras. À direita, podemos ver a bica de madeira sendo escavada e colocada.
Conjunto arquitetônico
As fazendas eram autossuficientes. Tinham que ser. De fora de seus limites só vinham o sal, as armas, o ferro e as munições. E, para que ela funcionasse dessa maneira, importava implantar, racionalmente, um conjunto de edificações destinadas ao trabalho. Uma arquitetura que equacionava diversas variáveis objetivando um único resultado: a produção.
Entre estas variáveis estavam os critérios de salubridade. Aos valores do século 19, o meio ambiente era um dos elementos que podia interferir diretamente na conservação da saúde. Do corpo individual e do corpo social. De acordo com a crença nas emanações que poderiam contaminar o corpo e provocar doenças, toda espécie de podridão deveria ser evitada. Águas paradas, pântanos, lodaçais eram fontes de emanações, eflúvios e miasmas que apressavam a ida ao túmulo, de quem quer que fosse. O contato com as águas paradas era uma das principais fontes de doenças, febres terçãs, gangrenas e diarreias conhecidas (14). Desta maneira, uma fazenda que quisesse prosperar, tinha de evitá-las. Devia ficar distante também das margens inundáveis de córregos e rios e do alto dos morros. Inundável ou devastada pelos vendavais, a fazenda não prosperaria. Desta maneira, a partir de uma implantação cuidadosa – desde os acessos, a localização dos currais, do rego d´água para a construção do monjolo – temos como resultado edifícios integrados de tal maneira na paisagem, que parece ser impossível escolher outra solução.
Nas fazendas mais antigas, observamos a localização dos currais precedendo o acesso à sede. Somente se alcançava o edifício depois de uma sucessão de currais e mangueiros. Em algumas ocasiões, fazia-se necessário passar entre o gado para se alcançar o edifício.
Possivelmente, devido à difusão das teorias higienistas, os currais foram sendo, gradualmente, deslocados para uma das laterais da sede. Relatos dão conta de que esses currais - “da frente” - garantiam que a casa ficasse continuamente imersa num odor de excremento de gado. Como ficavam em cotas ligeiramente mais altas que a entrada das casas, em épocas de chuvas, uma lama malcheirosa de fezes e urina escorria nas entradas. Mesmo nas que mantinham certo distanciamento do curral frontal, quer mediante a pavimentação de um pequeno pátio ou um pequeno jardim à entrada, a questão do odor era inescapável.
O deslocamento lateral do curral teve consequências significativas na visibilidade destas arquiteturas. Antes, as casas apareciam precedidas por uma paliçada de madeira, o que em alguns casos, as ocultavam. Com o deslocamento dos currais, os edifícios passaram a ser percebidos em toda sua totalidade volumétrica. Certamente, uma valorização, ainda que não ocasional.
Devido às particularidades de cada caso, essa alteração não atingiu todas de uma vez. Alterar um curral implicava em um esforço quase tão grande quanto construí-lo. Como as implantações ainda testemunham, estas mudanças foram muito graduais. Possivelmente reservadas às oportunidades de ampliações: contrariamente a se fazer um curral inteiramente novo, partes foram sendo construídas e outras, mais antigas, foram sendo desativadas. Por exemplo, na fazenda Limeira, até a década de 1940, o curral ainda estava bem próximo do acesso frontal da sede.
Diversos edifícios destinados ao trabalho formavam o conjunto da fazenda. Além da sede e dos currais com a salgadeira, o engenho movido à água ou a animais, destinado a extrair a garapa e transformá-la em açúcar e diversos outros produtos; o engenho de serra para o processamento da madeira, cortando toras naturais em tábuas e depois em peças menores; o moinho movido à água usado para produzir o fubá em suas diversas gramaturas e variedades; o paiol e o monjolo para o processamento de grãos.
Estas edificações de apoio variavam imensamente de tamanho, obedecendo aos ditames da capacidade produtiva da fazenda. Algumas possuíam engenhos pequenos, sem anexos. Outras, grandes instalações, com fornalhas que alimentavam muitos tachos de quatro quartas. Dependências para a fabricação de aguardente e beneficiamento de açúcar. Algumas possuíam casas de farinha, enquanto, em outras, esta atividade funcionavam anexas a outros edifícios. Algumas agrupavam na “casa do monjolo” os tachos de açúcar e os espaços para processar a mandioca, para fazer o sabão e para lavar as roupas. Outras, maiores, possuíam casas de farinha consideráveis, com espaços generosos para descasca, o polvilho e a torragem da farinha em imensos tachos de cobre. Além de espaços para a fabricação de queijos, processamento de carnes e até forjas, com todo o ferramental adequado ao trabalho com o metal.
De acordo com Benicasa (15), essas construções podiam ser agrupadas de acordo com especificidades: relativas ao transporte, o das oficinas, o da criação de animais e os destinados à fabricação de alimentos. Enumerar estas construções nas fazendas sobreviventes mostrou-se uma tarefa irrealizável. Uma vez que eram mais frágeis. Algumas, eram cobertas com capim ou folhas de palmeiras, foram destruídas ou alteradas. Cedendo espaço para instalações mais duráveis. De algumas, nem as fundações sobraram.
Mas ser impossível registrá-las mediante um levantamento não significa ignorá-las. Não se pode menosprezá-las imaginando-as pouco importantes. Ao contrário. Todas estas edificações eram variáveis de uma equação cujo único resultado era tornar a fazenda autossuficiente e produtiva. Sem elas, a fazenda simplesmente não existiria. Estaria reduzida a uma edificação de destinação residencial implantada no sertão.
Orbitando a partir da sede como polo gravitacional, existia uma rede de edificações que fervilhavam de trabalho uníssono à produção de bens para a perpetuação da fazenda. Dentro deste conjunto, evidentemente, a sede se destacava. Era a de maior altura e escala. Ocupava o ponto mais alto da implantação, obedecendo sempre critérios funcionais e simbólicos: era imprescindível que a casa fosse o centro e que dela se tivesse o controle de tudo – não do ponto de vista do domínio do território, mas do ponto de vista do domínio do núcleo.
Como propriedades destinadas, preferencialmente, à criação de gado, não se verifica a implantação em função de uma área plana destinada ao terreiro, como nas célebres fazendas paulistas produtoras de café. Mesmo quando existe um terreiro, ele não é tão grande, tão orientador dos espaços à sua volta como nas grandes fazendas cafeeiras. Nas que produziam café, pode-se observar que o terreiro era usado para mais de uma finalidade: secar café e outros cereais, bater vagens dos feijões e debulhar milho.
Atrás da casa, em espaço mais protegido, existiam sempre, pomar, horta, chiqueiro e galinheiro. Local de plantios de fruteiras que tornavam as fazendas célebres à detenção de espécies disputadas. Se o edifício correspondia a um locus protegido, ao templo da família, pode-se afirmar que o quintal correspondia ao sanctu sanctorum. Eram espaços vedados a estranhos e visitantes e invadi-lo correspondia a incorrer numa grave falta e grosseria. À presença de visitas, era para lá que muitas moças corriam a se esconder atrás das fruteiras. Locais protegidos a esconder a timidez e a pudicícia das donzelas. Domínio das escravas, empregadas e crianças.
Espaços que não eram desordenados: uma cuidadosa e invisível geometria devia separar as fruteiras plantadas a intervalos certeiros de modo a não fazer sombra umas nas outras e nem na horta. Deviam ser mantidos limpos, varridos, isentos de matos, livres das formigas e dos cupins. O contrário denunciava uma falta de zelo e higiene da dona da casa. Mais próximo da cozinha, ficavam os recursos da farmacopeia sertaneja. As plantas para remédios, chá, suadouro, purgante, refresco e doce de resguardo: laranjeira, lima e limoeiro, as latadas de cidreira, carqueja, poejo, alho e o marmelo corretivo eficaz à birra e teimosia de menino de todo tipo.
Neste recorte, se por um lado, devido às grandes extensões territoriais das propriedades, as fazendas eram consideravelmente desprotegidas em suas divisas, por outro lado, o espaço das sedes era relativamente seguro. Com a casa, o núcleo da fazenda formava uma área protegida dentro de um território maior. Em volta ou na lateral das casas, diversos pátios ou terreiros à semelhança das eiras portuguesas geravam espaços para trabalho ou para a proteção aos animais menores como porcos e ovelhas. Locais onde se mantinham animais em separado do rebanho. Para cercarem estes terreiros usavam tábuas ou lascas de madeira – aroeira – fincadas em pé, sem travamentos horizontais, com porteiras de acessos.
A raridade de senzalas ou habitações secundárias destinadas ao abrigo dos escravos reforça a ideia de que eles eram alojados nos porões das sedes, juntamente com os carros de bois e sacas de café e sal. Ainda que edificações mais rudimentares destinadas a eles possam – e devem - ter existido, não sobreviveram.
Materiais, técnicas e usos do espaço arquitetônico
Os materiais necessários na construção deveriam ser encontrados ou beneficiados na própria fazenda. As pedras – tapiocanga para os fechamentos dos porões, abaixo dos baldrames e lajes de arenito para a pavimentação – são abundantes na região. Necessitavam apenas ser cortadas e aparelhadas para os encaixes.
A argila para a confecção de telhas e tijolos também podia ser facilmente encontrada, bem como os diversos tipos de madeira para as diferentes partes da construção. Desde a indestrutível aroeira para a estrutura principal até o leve cedro para as esquadrias; o jatobá para o assoalho e para os portais, a garapa ou a canjica para os barrotes; o bálsamo para o mobiliário.
Em todas as casas constatamos o emprego da mesma técnica construtiva, com pequenas variações devido ao tempo e às especificidades dos lugares. Em algumas fazendas mais recentes, do início do século 20, alguns materiais já não foram mais fabricados na própria fazenda, como os tijolos e as telhas. Mas, em todas, permanece a estrutura autônoma de madeira disposta numa leve encosta, deixando o piso afastado do solo e livre da umidade. A esta base corresponde o porão, lugar para depósito, guarda de animais e escravos. Entre os esteios que vão até o solo, o porão é fechado com pedra tapiocanga, ou pedra ferro, normalmente encaixada com as faces mais planas dispostas para o exterior. Em algumas fazendas, observa-se o emprego da argila como argamassa das pedras de fechamento do porão, tornando-o mais hermético.
Juntamente com os esteios – simplesmente enterrados no solo - eram fixadas as vigas baldrames e as vigas-mestras, determinando o nível do assoalho e fazendo o primeiro travamento horizontal. A diferença entre elas é que os baldrames ficam no perímetro, enquanto as vigas-mestras ficam no interior do perímetro, dando suporte aos barrotes que sustentam o assoalho e paredes internas. Os barrotes, ou ficam no mesmo nível das baldrames, ou ligeiramente abaixo delas, de maneira que o topo de suas faces não aparece na fachada, com espaçamento médio de 70 cm entre eixos.
Os cachorros dos beirais podiam ter diferentes acabamentos: desde o peito-de-pombo, chanfrados em diferentes graus, ou simplesmente retos. Em edificações mais abastadas, observamos a existência de forro nos beirais, mas parecem acréscimos, posteriores, feitos em alguma reforma. A construção rural típica do século 19 não possuía beirais com forro ou cimalha. Igualmente, não se observa a predominância de forros. O comum era que as paredes internas – de madeira ou de alvenaria – permanecessem na altura dos frechais, sem fechamentos verticais de vedação entre os ambientes. As que existem também parecem ser acréscimos posteriores, colocadas para garantir uma maior privacidade aos moradores.
Em relação às peças que formam os vãos das janelas e portas – peitoris, vergas e ombreiras – as próprias peças da estrutura, determinavam os vãos. Alguns agrupados em pares, outros, simplesmente divididos em partes regulares. Não são encontradas molduras, requadros ou guarnições de madeira feitas em separado e encaixadas nos umbrais. As peças dos vãos recebem apenas um recorte interno, de maneira a encaixar as folhas das portas e janelas. Em algumas edificações, observamos a existência de umbrais decorados com recortes nas portas principais e entalhes com a data da conclusão da obra. Tanto as portas quanto as janelas possuem fechamento com tábuas de madeira sambladas através de encaixes macho-e e unido na parte interior por travessas.
As dimensões das esquadrias variavam enormemente em cada construção, servindo mais a propósitos estéticos que puramente funcionais. Nas edificações mais abastadas e maiores, as esquadrias eram bem mais destacadas e mais próximas dos frechais, o que sublinhava a verticalidade do elemento.
Depois de rebocadas com argamassa, as paredes eram geralmente caiadas. As madeiras podiam ser pintadas de duas maneiras: com óleo ou têmpera. Empregando óleo de mamona ou clara de ovo com corantes, ou com cola, feita com couro de gado e também tingida. Os corantes mais comuns eram o anil, que dava o azul; o urucum, que dava o vermelho; a semente de jenipapo queimada e moída ou pó de carvão de osso, que dava o preto; o açafrão que dava o amarelo e a quaresmeira que dava o rosa ou lilás.
Pintada, a casa estava concluída e passava a ser habitada. Importa observar que este “habitar” no sertão revestia-se de algumas particularidades. Notadamente peculiares, os conceitos de conforto e privacidade. Se por um lado, nas áreas urbanas no Brasil oitocentista, estes valores ganharam ímpeto à medida que o século rumava ao fim, por outro lado, as fazendas formavam um conjunto mais conservador. A casa representava um refúgio aos estranhos, marcando os de dentro e os de fora. Ainda que houvesse gradações, delimitava um espaço reservado à família e, portanto, privativo em relação aos que não fossem pertencentes a ela. Os limites deste espaço eram os limites da arquitetura. Dentro dela, a família gozava de todo o conforto possível, evidentemente que dentro das limitações impostas pela rusticidade de seu meio. No interior das casas, dentro dos ambientes imersos pelo cotidiano, a privacidade pode ser classificada como praticamente inexistente se comparadas com as edificações urbanas da mesma época. A hierarquização de ambientes existia como uma distinção entre os membros familiares: quarto dos pais, quarto das meninas, quarto de hóspedes, sala para as visitas, por exemplo. Mas a ausência de isolamento acústico e a comunicação entre os ambientes – quartos com mais de uma porta ou como elementos de circulação entre outros cômodos – não deixava espaço para que diálogos fossem estabelecidos com privacidade.
Relatos dão conta de que, geralmente, dentro das casas imperava o silêncio noturno. As crianças brincavam de dia do lado de fora e os barulhos do trabalho cessavam quando as galinhas subiam aos poleiros. Salvo um choro de criança, algum doente em agonia, alguma reza ou algum barulho excepcional de animais do lado de fora, o silêncio descia sobre a casa com o crepúsculo. Não havia sarau, seresta ou conversa que mantivessem a família acordada até altas horas da noite, nem leituras em páginas abertas em frente a velas e candeias. As imposições do trabalho da fazenda cobrava seu preço: a vida era diurna e a noite reservada para o sono.
Uma observação dos sussurros, do que podia ou não ser dito, dos choros e dos contidos, dos barulhos do sexo, dos cochichos, dos escondidos, os gemidos, as rezas e as agonias das doenças e da morte, dos rangidos das portas, das redes e camas, do assoalho, dos passos no meio da noite, do bater de janelas, da chuva, dos silêncios e das conversas de gente grande está ainda por ser feita.
Durante o dia, a casa ficava sempre aberta. As numerosas janelas promoviam a troca do ar do interior e o entra e sai das diversas pessoas envolvidas nas atividades da casa povoavam-na de vozes irradiando-se a partir da cozinha sempre ativa. Não constatamos em nenhum relato aquele medo de ar e sol descrito por Gilberto Freyre como característica das moradias urbanas dessa época. Ao seu juízo, impregnadas de um cheiro misto de sexo, de urina, de pé, de sovaco, de barata e mofo (16) suspenso numa atmosfera escura como de igreja junto com corujas e morcegos.
Nas fazendas do sudoeste goiano, ao contrário, o sol não era temido. Colocava-se ao sol a roupa para quarar, as carnes e roupas para secar, os colchões de palha para matar as pulgas e piolhos, o algodão a cardar, o sal, o açúcar e o feijão para secar. Sentava-se ao sol nos dias frios e o permitiam entrar à nos ambientes.
Pistas da intimidade vivenciada por estas famílias podem ser encontradas na própria arquitetura. A concepção dos espaços estava impregnada de valores que haviam sido transmitidos a seus autores e permaneceram indeléveis. Na ausência de registros textuais a demonstrar como as intenções construtivas no momento da construção das edificações, uma análise das plantas pode fornecer pistas à cultura de morar (17) nas casas de fazenda nos sertões de cerrado de Goiás. Comportamentos, experiências, padrões de vida, elementos identitários e imaginários que orbitam em torno do espaço privado da habitação. Esta postura implica em considerar mais os valores, usos e significados dos espaços arquitetônicos do que as formas espaciais que eles configuraram: ponto de partida à tessitura de narrativas textuais, visuais, reais ou imaginárias do universo doméstico do espaço de morar.
Com a planta da fazenda Tamboril, concluída em 1888, podemos exemplificar como a sala demarcava o contato da casa com o mundo externo, com as visitas e com os viajantes. A presença de apenas uma porta que dava acesso aos outros ambientes reforça esta diferenciação. A barreira era intencional. Comunicava-se com a sala apenas o quarto de hóspedes e a tulha, para a guarda de mantimentos. Atrás desta barreira, espacialmente imposta, os outros ambientes articulavam-se a partir de áreas de uso comum, como a cozinha e sala de refeições, de onde se passavam aos quartos. O quarto das “moças” ou dos menores, ligados ao dos pais evidencia este recôndito mantido protegido.
Esta diferenciação não era uma prática apenas em propriedades como a Tamboril. Diversas outras fazendas mostram, com maior ou menor escala, as mesmas práticas. A fazenda Espírito Santo, implantada no final do seculo 19 na região de Santa Rita do Araguaia por exemplo, distante mais de 30 léguas da Tamboril, mostra uma articulação semelhante. Nesta fazenda, quando não havia espaço no quarto de hóspedes, era permitido que redes fossem armadas na sala, enquanto a família ficava resguardada além dela.
Com isto, duas coisas podem ser observadas. Em primeiro lugar, a presença de espaços destinados a hóspedes e viajantes, frequentes nas fazendas. Em segundo lugar, as cozinhas faziam parte das edificações e não estavam dispostas fora dela, como o exemplificado por Nestor Goulart em São Paulo ou Sylvio de Vasconcellos em Minas. Em alguns casos, constatamos a presença de outras cozinhas, mas estas funcionavam como apoio no preparo de grandes quantidades de alimento, como carne e doces. A regra nas fazendas do sudoeste parece ter sido a cozinha cotidiana integrada ao corpo da casa, mesmo nos períodos mais incipientes da ocupação.
Este conjunto de características, de maneiras de se conceber os espaços, de se escolher os locais para construção e de se utilizar determinadas técnicas construtivas e materiais, caracteriza uma forma tipológica. Atributos de identidade nesses edifícios testemunham uma maneira de ver o mundo e de se ocupar um espaço. Exemplo de uma produção arquitetônica que é, a um só tempo, objeto e sujeito da história de um povo.
notas
1
Pelo Decreto Imperial no 1.318 de 20 de janeiro de 1854 que deu execução a lei no601 de 18-09-1850 criou-se o Registro Paroquial onde foram registradas as fazendas.
2
ALFERES, Barão do Paty de. Memoria sobre a fundação e costeio de uma fazenda na provincia do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Edu. & Henrique Lœmmert, 1863, p. 1.
3
Idem, ibidem, p. 15.
4
Como podemos ver em: BUENO, A; DEL PRIORE, Mary. Fazendas do ouro, Rio de Janeiro, Fadel, 2011; DEL PRIORE, Mary. Uma história da vida rural no Brasil, Rio de Janeiro, Ediouro, 2006.
5
1815-1894.
6
FRANÇA, Basileu Toledo. Pioneiros. Goiânia, Editora da UFG, 1995, p. 8.
7
Como entendido por autores como: NEVES, Laert P. Adoção do partido na arquitetura. Salvador, UFBA, 1989; KOWALTOWSKI, Doris C. C; MOREIRA, Daniel de Carvalho. O programa arquitetônico. In: KOWALTOWSKI, Doris C. C et al (org.). O processo de projeto em arquitetura. Da teoria à tecnologia. São Paulo, Oficina de textos, 2011.
8
Colocamo-nos ao lado de estudiosos, que como Biselli, entendem partido arquitetônico como uma ideia que subjaz ao edifício, identificada como principal ou central, quando o edifício já se apresenta concluído. Ver: BISELLI, Mario. Teoria e prática do partido arquitetônico. Arquitextos, São Paulo, ano 12, n. 134.00, Vitruvius, jul. 2011 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/12.134/3974>.
9
De acordo com TSCHUMI, Bernard. Arquitetura e limites. In: NESBIT, Kate (org.). Uma nova agenda para a arquitetura. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 172-177.
10
Como BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. Linguagem e arquitetura: o problema do conceito. Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/74772594/O-Problema-Do-Conceito#scribd. Acesso 11 ago 2014.
11
VASCONCELLOS, Sylvio de. Arquitetura colonial mineira. Belo Horizonte, UFMG, 1957.
12
CRUZ, Cícero Ferraz. Fazendas do Sul de Minas Gerais. Arquitetura Rural nos séculos XVIII e XIX. Brasília, Iphan, 2010.
13
MIRANDA, Alcides da Rocha; CZAJKOWSKI, Jorge. Fazendas – solares da Região Cafeeira do Brasil Imperial. Rio de Janeiro, 1995.
14
RAGO, Margareth. Do Cabaré ao Lar. A utopia da cidade disciplinar: Brasil 1890-1930. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985.
15
BENICASA, Vladimir. Fazendas de Café – O patrimônio arquitetônico rural em São Paulo, Brasil, 1800-1940. Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo – Fapesp. Disponível em: <https://www.academia.edu/7948690/Fazendas_de_Cafe_O_patrimonio_arquitetonico_rural_em_Sao_Paulo_Brasil_1800-1940?auto=download&campaign=weekly_digest>. Acesso em 12 ago 2014, p. 140.
16
FREYRE, Gilberto. Assombrações do Recife Velho. Disponível em: <http://minhateca.com.br/celiogcruz/Livros/pdf/Assombra*c3*a7*c3*b5es+do+Recife+Velho+-+Gilberto+Freyre,14114807.pdf>. Acesso 25 ago 2014..
17
Entendida como uma faceta da cultura, ou um conjunto multifuncional de valores socialmente compartilhados e historicamente construídos: JUNIOR, Rafael Alves Pinto. Casas de sonho: a cultura de morar no Brasil nas páginas de Casa e Jardim, Casa Cláudia e Arquitetura & Construção. Tese de doutorado. Goiânia, Faculdade de História UFG, 2011, p. 18-20.
sobre o autor
Rafael Alves Pinto Junior é arquiteto, mestre em Cultura Visual e doutor em História pela Universidade Federal de Goiás (1991, 2008 e 2011). Atualmente é professor do Instituto Federal de Ciência e Tecnologia de Goiás Tem experiência na área de Arquitetura e Urbanismo, com ênfase na História da Arte, História da Arquitetura, Planejamento e Projeto do Espaço Urbano, atuando principalmente nos seguintes temas: análise da imagem, arquitetura moderna brasileira, planejamento urbano, cultura visual e história da arquitetura.