Ao aceitar o convite de Abílio Guerra para uma narrativa pessoal para a série Depoimentos de uma Geração Migrante, me vi obrigado a recompor uma jornada de quase 15 anos, cheia de altos e baixos e de experiências talvez pouco ortodoxas. Ao ler os depoimentos anteriores, senti que Arquitextos compõe aqui um caleidoscópio inusitado, já que talvez o único denominador comum do grupo de jovens Arquitetos enfocado é o fato de que todos nós buscamos no mesmo período o início de nossas carreiras profissionais fora do Brasil.
Há algumas semanas escrevi uma pequeno artigo em memória a Éolo Maia, no qual enfoquei a atmosfera daqueles anos:
“A primeira (lembrança) é de meus tempos de estudante, no início dos anos 80, FAU-USP. Todos nós, Geração Coca-Cola saindo das fraldas, caíamos no mundo embalados pela Diretas Já, enroscados nos restos de Libelus e de PCs e PCsdosBs, tentando entender a absurdidade da recondução de Artigas, de Paulo Mendes da Rocha e Jon Maitrejean ao templo que eles haviam erigido. Morreu Artigas, de desgosto, morreu Tancredo. Nossos dilemas oscilavam entre as roupas dark e a estrelinha do PT, saída do forno. E queríamos saber o que era Arquitetura. Mofo institucional, de direita e de esquerda, ressentimentos dos quais não queríamos ser herdeiros. Ao Merino (livreiro da FAU na época) chegavam os primeiros caixotes de livros importados....“ (1)
Desenvolvi meu trabalho de graduação na FAU-USP em 1987. Tratava-se de um complexo de pré-escola, situado no Bixiga em São Paulo, no quarteirão deteriorado de casinhas de imigrantes italianos e galpões fabris onde funcionava o Madame Satã, nosso templo de rebeldia daqueles anos. Como eu havia desenvolvido com uma colega em 1985 uma linha de móveis escolares baseada na leitura das observações de Jean Piaget, desejava um conceito arquitetônico com vitalidade similar, e, buscando referências, deparei-me com o único exemplar do primeiro livro sobre a obra de Frank O´Gehry, que havia chegado à livraria. Naquela quase displicente leitura do caos suburbano de Los Angeles espelhava-se para mim a qualidade espacial imaginada para um ambiente de educação infantil. Lembro-me da tarde em que discuti minha intenção com meus orientadores no Ateliê 5 da FAU: não havia espaço nem interesse em se perder tempo com tal “besteira“. Novidades do exterior eram genericamente empacotadas sob o rótulo “pós-moderno“, ou seja, blasfêmia, já que este episódio de revisão da Arquitetura Moderna havia sido ignorado no Brasil. Poucos eram os Professores que se dispunham a uma interlocução, e para meu TGI fui buscar orientação fora da USP.
Menciono este episódio por retratar um dos motivos pelos quais eu e alguns outros colegas buscamos uma alternativa no exterior. Sair do país era ainda um sonho distante. Acostumados às viagens de mochila nas costas pelo Brasil afora, a Europa parecia somente “um pouco mais longe“. Naqueles anos o tema Passaporte Estrangeiro passou a dominar nosso cotidiano, quem tinha ascendência européia direta reportava sobre suas aventuras consulares, quem não a tinha revirava os baús de família à busca de indícios que trouxessem uma legitimação (os bisavôs italianos por parte de mãe não me ajudaram muito, diga-se de passagem, mas as visitas ao arquivo da Hospedaria de Imigrantes no Brás foram fascinantes).
Para completar o "plano", o domínio mínimo de língua estrangeira era fundamental: assim, quem não vinha de uma escola de elite paulistana buscava os cursos no Instituto Goethe, na Casa de Dante ou no Yásigi da esquina. Não por coincidência, o inglês básico provinha da música do Joy Division, The Cure, David Bowie e Laurie Anderson, nossos companheiros de prancheta.
Último passo: dinheiro para a viagem, 800 dólares para a passagem São Paulo-Londres no estribo da "Lan Chile" (válida por um ano, caso tudo desse errado), e 1.000 dólares para começar a vida e para poder “entrar na Europa“. Foram dois anos de trabalho duro, ainda como estudante, para fazer o pé-de-meia: trabalhei em São Paulo com Pepe Asbum (já falecido), com Anne Marie Sumner, e por recomendação de Paulo Bruna, no escritório de cozinhas industriais Olga Lascani, que desenvolvia projetos com o Escritório Rino Levi. Este emprego foi uma “escola” excêntrica pelo rigor do detalhe, e Bruna sabia disso. Me valeu como foyer para a experiência de Londres, onde as regras do jogo eram bem outras que a dos escritórios brasileiros.
Um grupo de seis amigos, entre eles Filomena Russo, Sérgio Coelho e eu, organizou uma festa no velho Cartola Club da Av. Brigadeiro, festão para 2.500 pessoas com entrada paga, que completaria nosso orçamento de viagem. Esforço gigantesco, desmontado por uma chuva torrencial, e pela Seleção Masculina de Vôlei, que naquela noite chegara à Final das Olimpíadas de 1988: 250 apareceram e tivemos que pagar as contas. Mas a passagem estava comprada. Restava vender o carro, um fusca 76, que foi roubado na porta do Cine Belas Artes uma semana antes do embarque. Viajei, finalmente, com o apoio da família.
London-Gatwick, o primeiro choque no aeroporto recém-inaugurado, com paredes de cladding de alumínio branco como nas obras de Richard Meyer. Ao perguntar a uma balconista como chegar a Victoria Station e escutar pela primeira vez o sotaque cockney, percebi que meu inglês estava abaixo de qualquer expectativa. Mas cheguei a Victoria Station.
Londres era naqueles anos a Mecca dessa geração migrante. Dois ou três colegas da FAU já haviam chegado, e através de Andreas Gyarfas pude me instalar em Fulham, num apartamento de Row-House em estilo neo-brega irlandês, que dividia com um inglês, um escocês e um polonês. Gowan Avenue viria a se tornar um “centro de triagem“ para os que chegaram nos meses e anos seguintes. Saiu o polonês, e chegou Filomena, saiu o escocês, e chegou Sérgio, e assim por diante. Em 1989 cheguei a contar uns 40 colegas na Europa, especialmente em Londres, Paris e Barcelona, todos formados na USP entre 1985 e 88. Estávamos sendo bombardeados por impressões visuais, nos escritórios tínhamos acesso às muitas revistas, comprávamos livros, íamos a palestras (em Londres, a Architectural Association e o RIBA eram os locais do debate). Docklands estava sendo construída. Lembro-me de, logo após a chegada de Milton Braga em 1990, termos ido juntos a duas palestras de Wolf Prix e Peter Eisenmann no RIBA, interessantíssimas, carregadas imagens espetaculares, de discursos herméticos e distantes do mundo real. Saímos dali falando sobre a sofisticação da simplicidade e repassando o que havíamos trazido do Brasil.
O boom da construção acontecia naqueles anos do governo Thatcher e arquitetos do mundo todo perambulavam pelos escritórios londrinos. Mas como chegar a um emprego sem possuir Work Permit? A oferta era tamanha que algumas agências de empregos especializaram-se na colocação de arquitetos e desenhistas, e para a legalização havia sempre um jeito. No entanto, era necessário ter-se um bom portfolio de apresentação, coisa com a qual não nos havíamos preocupado em São Paulo. Por um mês trabalhei num Pizzaland e ao conhecer Tina Sawaya Heinl, uma brasileira há anos radicada em Londres, recebi dela a proposta para a reforma de seu apartamento. Projeto e construção, diga-se: em seis semanas realizei a reforma sozinho e ao comprar ferramentas e materiais pude "aprofundar os conhecimentos da língua". No Brasil ninguém faz “estágio de obra“, um erro. Neste meio-tempo, refiz os desenhos de meu TGI na mesa da cozinha, e armado com duas cartas de recomendação de Paulo Bruna e Bruno Padovano, gentilmente escritas em inglês, fui para as entrevistas.
As chances eram favoráveis: recusei participar do projeto para uma Base Norte-Americana na Arábia Saudita e uma oferta como perspectivista no escritório de Terry Farrel, que na época fazia furor com seu pós-moderno cinematográfico. Fui empregado por THP, The Halpern Partnership, na época um escritório com 90 funcionários, realizando grandes edifícios comerciais em Londres e em Nova York, em parceria com Emmery Roth & Sons. O escritório era extremamente hierarquizado, contando com oito Partners e departamentos diversos, entre eles uma área de design com funcionários bastante jovens, cuja tarefa era incitar uma “atualização“ da linguagem arquitetônica. Deste grupo faziam parte quatro canadenses, dois americanos, um indiano, uma argentina, dois australianos e um chinês. No better way to learn "proper" english. Após quatro semanas fui efetivado e os advogados do escritório cuidaram de minha legalização, mas com um porém: eu só poderia trabalhar para esta empresa. Naquele período a maioria dos escritórios londrinos investia febrilmente na informatização e numa firma bem sucedida contávamos em breve com excelente infraestrutura. Permaneci na THP por dois anos e meio, participando de projetos como o do complexo de escritórios WestWorld II e o Twyfords Science Park para a University of London, além de vários de estudos de viabilidade para commercial developments na City of London.
Meu desejo de trabalhar para outros arquitetos era grande e acabei por realizar trabalhos noturnos free-lance por algumas semanas, como desenhista, para James Stirling (concurso para a Bibliothèque de France) e para Zaha Hadid. Com a permissão da THP, meu colega Dan Bush e eu utilizamos os computadores da empresa para a elaboração de um sistema de coordenadas que permitisse dar forma aos "garranchos" de Zaha (cujo escritório só trabalhava manualmente e era na época composto só por estudantes da Architectural Association) para um de seus primeiros projetos construídos, a Vitra Fire Station em Weil am Rhein, próximo a Basiléia. A partir destes desenhos foi possível a construção da primeira maquete, que levou aos desenhos de executivo e à elaboração das pinturas de ilustração, logo amplamente publicadas.
Desde os tempos da FAU eu vinha namorando as Artes Plásticas e participando de algumas exposições. Realizei em 1989 minha primeira individual em Londres. Em fins de 1990 recebi uma bolsa de um ano no The Florence Trust, trabalhando com outros artistas numa igreja neogótica em Islington. Recebi afastamento do escritório e pude me dedicar inteiramente à pintura. Neste período realizei um estágio em cenografia no Royal Theater em Covent Garden e participei de algumas exposições.
Terminada a bolsa, o vazio: a crise econômica havia chegado, o escritório havia despedido funcionários em massa e restavam poucas alternativas. O dinheiro estava acabando, pensei em seguir a Madrid, e por acaso recebi um convite para a abertura da grande retrospectiva de Anselm Kiefer na Nationalgalerie em Berlim no inverno de 1991. Três semanas depois eu havia me instalado nesta cidade. Novamente com a mochila nas costas, novamente ilegal. Toda a pintura permaneceu depositada na Fundação por um ano, até que eu a pudesse trazer à Alemanha.
Um amigo de Londres que trabalhava para Norman Foster, o berlinense Carsten Granz, havia me passado o endereço de Nina Nedelykov, arquiteta berlinense que naquele momento produzia seu doutorado sobre Frank Lloyd Wright e o Modernismo Alemão. Nos conhecemos em minha primeira semana em Berlim e logo passamos a viver e trabalhar juntos. O Muro acabara de ser desmontado, Potsdamer Platz era ainda um deserto no meio da cidade, e ali se estabeleceu um mercado de trocas leste-oeste, onde comprei uma bicicleta roubada para minhas incursões por esta cidade dilacerada e desconhecida.
Até mais ou menos 1993 o Muro permanecia nas mentes de seus cidadãos, havia uma enorme desconfiança entre ocidentais e orientais, as pessoas permaneciam "entrincheiradas" nos bairros mais familiares. Em Berlim Oriental, um estrangeiro como eu tinha mais trânsito que um alemão ocidental. Realizei em 1992 minha primeira individual em Berlim-Mitte, num café underground de um grupo de artistas orientais junto à ruína da Sinagoga. Assim, fui aos poucos apresentando aos berlinenses ocidentais as facetas do "outro lado" de sua própria cidade.
Através de Nina comecei a trabalhar em 1991 com Robert Witzgall, um arquiteto dez anos mais velho que eu e sem escritório, com o qual fiz de imediato um Concurso para a reestruturação de Werder, uma cidadezinha histórica ao lado de Potsdam. Ganhamos. Com isso, pude rapidamente legalizar-me. Por dois anos trabalhamos intensamente neste projeto, que acabou por não ser construído, dada uma situação de corrupção municipal, tão típica no "Leste" nestes primeiros anos da Reunificação da Alemanha. Atuamos também na preparação das comemorações dos 1000 anos de Potsdam em 1993. Nessa época escrevi meus primeiros artigos para a Revista Óculum de Campinas, a semente de Vitruvius-Arquitextos.
Com o fracasso do projeto de Werder, começamos a prestar serviços a outros escritórios, entre outros para Maria Stankovic, arquiteta iugoslavo-canadense que havia sido associada de Daniel Libeskind no Concurso para o Museu Judaico, e que dividira um loft com Nina e outros colegas após a faculdade (ainda hoje nosso escritório funciona nesse edifício). Com ela, Robert e eu tomamos parte no projeto para o Parlamento de Berlim, instalado na ruína do antigo Parlamento da Prússia, diretamente junto ao antigo Muro. Ali se acentuou meu envolvimento com a monumental complexidade desta cidade, que condensa como nenhuma outra os grandes dramas do século XX.
Em 1994 ainda atuei junto à filial berlinense do escritório Novotny & Mähner, de Frankfurt am Main, cuidando da reforma de um edifício histórico em Leipzig, em frente à Thomas Kirche, a igreja onde Bach trabalhou por 25 anos. Meu cotidiano se dava quase que exclusivamente no antigo mundo socialista, de dia através da Arquitetura, à noite na intensa cena alternativa desses anos.
Ao mesmo tempo, Nina havia obtido contratos para a reforma e restauração de duas escolas em Berlim Oriental. Trabalhávamos juntos à noite e nos fins de semana, e em fins de 1994 decidimos dar forma ao escritório, ao qual em breve se juntou Carsten Granz, recém-chegado de Londres. Nesta constelação trabalhamos até 1999, sob o nome NGM Architekten (Nedelykov, Granz, Moreira). Foram anos produtivos, iniciados com a realização de Estúdios de Sincronização em Babelsberg, a Cidade do Cinema, ao lado do barracão onde Fritz Lang havia filmado Metrópolis. Os investimentos internacionais e da Alemanha Ocidental tornavam o mercado berlinense cada vez mais feroz e especulativo, sendo os arquitetos requisitados para infindáveis estudos de viabilidade, freqüentemente defrontando-se com conflitos supra-arquitetônicos como a devolução de propriedade confiscada, tanto pelo Nazismo quanto pelo Socialismo real. Iniciava-se o maior canteiro de obras da Europa, ainda que os estudos urbanísticos e a elaboração de estratégias governamentais estivessem a meio caminho. A estas alturas chegavam a Berlim profissionais do mundo todo, que encontravam trabalho da mesma forma que nós em Londres nos anos 80.
Um dos projetos de NGM nesse período foi o do Centro de Esportes e Lazer em Magdeburgo, uma cidade de médio porte na antiga Alemanha Oriental. Trabalhando para um grande investidor privado, vimos neste projeto a possibilidade de uma revitalização mais ampla de um sub-centro da cidade, e estendemos a intervenção aos arredores, criando a oportunidade de uma operação urbana. Este projeto foi apresentado na II Bienal de Arquitetura de São Paulo em 1997, recebendo o Prêmio de Urbanismo e Desenvolvimento Urbano.
Com a decisão do Parlamento Alemão pela transferência da Capital de Bonn para Berlim havia sido dado o passo definitivo para a aceleração do processo de transformação urbana da cidade. Berlim, que já desde o início do século XX materializara momentos significativos do debate arquitetônico internacional, voltou novamente ao centro das atenções, e arquitetos de renome voltavam a ocupar-se dela. E nesse processo ficava mais uma vez explícita a situação de obscuridade e isolamento da Arquitetura Brasileira pós-Brasília.
Em 1994 eu havia iniciado a organização de um livro, a ser inicialmente publicado na Alemanha com a participação de autores brasileiros convidados, e que após cinco anos de trabalho permaneceu engavetado por um problema de ordem econômico-editorial. A este esforço juntou-se Iara Dreger, arquiteta de Santa Catarina que na época vivia em Berlim e que chegou a trabalhar para NGM. Nesta jornada contei com o apoio de colegas e ex-professores com quem tive o prazer de manter contato ao longo dos anos, em especial com o de Sophia da Silva Telles, amiga e mentora, a quem sou grato em meu processo de consolidação de uma espinha dorsal ainda gelatinosa e pela compreensão das especificidades da Arquitetura Brasileira.
Neste período, muitos países preparavam-se para a transferência de suas embaixadas de Bonn para Berlim. Durante três anos prestei consultoria gratuita ao Consulado do Brasil, encarregado da busca de um imóvel. Foram muitas as conversas com representantes do Itamarati, nas quais eu procurava de persuadi-los da oportunidade única para a construção de uma obra contemporânea significativa, a ser escolhida por Concurso Nacional. Em vão: atropelada pelos interesses político-econômicos do neoliberalismo, a chance de foi perdida. Meu pedido de apoio ao IAB Nacional restringiu-se a uma modesta carta ao Ministério, esmagada por uma resposta de sete linhas. Restou-me escrever um artigo sobre o episódio, publicado em Vitruvius em 2000 (2).
Até então, a única obra projetada por um brasileiro na Alemanha (a partir do Brasil, diga-se) era o Bloco de Habitação de Oscar Niemeyer no Hansa Viertel em Berlim, de 1957. O Edifício encontrava-se em mau estado de conservação, e, mesmo ciente das mágoas de Oscar sobre as condições de sua realização, busquei junto aos proprietários em 1998 a articulação de um projeto de restauro que restituísse ao edifício algumas das intenções originais do projeto. Pouco depois, o bloco foi realmente reformado, sem consulta a Oscar e sem a participação de um arquiteto. Por ser uma obra tombada (o que na Alemanha ainda tem alguma validade), ela não foi completamente descaracterizada, mesmo que o concreto aparente tenha desaparecido sob uma camada de tinta e que o andar comunitário permaneça sem função.
Em 1997 pude pela primeira vez efetivar a presença brasileira em Berlim. Como membro do Grupo de Arquitectos Latinoamericanos GALA, participei da organização de um concurso para a reestruturação do chamado Bairro Amarelo, um conjunto habitacional socialista de pré-fabricados em Hellersdorf, na periferia leste da cidade, com 3.200 habitações. 35 escritórios da América Latina, dentre os quais cinco brasileiros que convoquei, entregaram portfolios, e três foram selecionados, dentre eles dois brasileiros (Brasil Arquitetura de São Paulo, e Éolo Maia e Jô Vasconcellos, de Belo Horizonte). Francisco Fanucci e Marcelo Ferraz venceram com uma proposta baseada na aplicação de uma iconografia do Modernismo Brasileiro, cujo resultado chegou a ser mostrado numa exposição no Instituto Goethe de São Paulo e em algumas publicações. Para a execução do projeto, Brasil Arquitetura e NGM montaram uma parceria, e de abril de 1997 a julho de 1998 cuidei de sua realização. Os aspectos sui generis desta obra permitiriam um romance surrealista. Impossível descrever aqui a burocracia da estrutura de trabalho para a realização de uma obra gigantesca que só continha exceções, ou o teor das reuniões semanais do time de obra com 30 técnicos alemães. Utilizamos dois mil metros cúbicos de madeira no revestimento de 1.500 balcões com muxarabis, vinte mil janelas foram trocadas. Dei treinamento a 300 pintores para a técnica de tratamento das fachadas, que deveria ser uma interpretação da pintura a cal da arquitetura popular do nordeste brasileiro. Realizamos um concurso entre índias da Tribo Kadiwéu, do Mato Grosso do Sul, para a elaboração de amostras para 50.000 azulejos para as fachadas dos edifícios, lutando contra os empecilhos burocráticos da FUNAI e as exigências legais e técnicas do cliente alemão (supervisionei a fabricação dos azulejos na Alemanha e as seis índias vencedoras do concurso vieram a Berlim em 1998, com crianças de colo, para ver o resultado de seu trabalho). Trabalhamos na viabilização de quatro grandes esculturas em espaços públicos do conjunto, das quais somente uma chegou a ser realizada. Trata-se da obra de Amílcar de Castro, uma de suas maiores peças, com 8 m de diâmetro e 25 toneladas, cuja fabricação acompanhei numa siderúrgica a 800 km de Berlim. Através do projeto tive a honra de uma convivência intensa com Amílcar, num desses encontros marcantes na vida.
Quase terminado o Bairro Amarelo, NGM iniciou uma campanha pública pela recuperação do Estádio Olímpico de Berlim, construído entre 1928 e 1936 para as Olimpíadas sediadas pelo Nazismo. Naquele momento o poder público sugeria a construção de um novo estádio, exclusivamente para futebol, ao lado do antigo, que deveria ser utilizado somente para atletismo até que viesse a ruir e transformar-se numa espécie de “Coliseu do Nazismo“. Esta proposta tinha sua origem nos interesses do Lobby do futebol, que exigia maior proximidade ao campo para os expectadores, e também nos complexos nacionais ainda arraigados, quando se trata da herança desse período histórico.
Juntamente com três escritórios de engenharia com os quais trabalhávamos, elaboramos uma proposta de restauração e modernização do monumento, cujo ponto central era a instalação da superfície esportiva sobre uma plataforma móvel: a pista de atletismo e o campo de futebol seriam instalados como uma “bandeja flutuante“ numa grande piscina com 7 metros de profundidade, repousando sobre pontões. Insuflando-se ar nos pontões, a plataforma subiria ao nível da atual pista de atletismo, configurando a espacialidade histórica do estádio. Retirando-se o ar, a plataforma desceria 3 metros, e das paredes laterais surgiriam tribunas retráteis sobre a pista de atletismo, levando 8.000 expectadores até as bordas do campo de futebol, numa operação que duraria 24 horas. Patenteamos a solução, que é baseada no velho princípio de Arquimedes, e que deveria ser acionada exclusivamente pela energia de 5.000 m2 de coletores solares, instalados na paisagem do Parque Olímpico. Realizamos uma conferência de imprensa no estádio, dentro do antigo camarote de Adolph Hitler e a partir daí iniciou-se uma polêmica pública que levou o Parlamento de Berlim à decisão final pela modernização do antigo estádio. Foi lançado um concurso restrito a nível europeu, para o qual 10 escritórios foram selecionados, entre eles NGM. Retrabalhamos a proposta, ampliando a equipe com 12 escritórios especializados, incluindo restauradores, consultores de marketing esportivo (NBBJ, de Los Angeles), engenheiros de energia solar e mesmo engenheiros navais de Bremen. Esta nova proposta incluía, entre outros aspectos, uma cobertura completa dos 80.000 assentos com uma estrutura tênsil com anel compressor, com quase 50.000 m2 de superfície e balanço de 65 metros. Elaboramos uma completa logística de obras em trabalho conjunto com Hochtief, visando a reforma ao longo de quatro anos sem interrupção do calendário esportivo e garantindo uma capacidade permanente mínima de 54.000 expectadores. Cientes da difícil situação financeira de Berlim, preparamos paralelamente às estimativas de custos um modelo de public-private-partnership, ao qual se comprometeu a empresa TishmannSpyer, em associação com Ogden Entertainment, proprietária do Manchester United, que assumiria o management esportivo e financeiro. A proposta de um jovem escritório como NGM recebia apoio irrestrito dos “gigantes“ do mercado.
Chegamos à fase final do Concurso em outubro de 1998, após 10 meses de trabalho intenso, e que custou o fim de NGM. O projeto vencedor foi o de Gerkan, Marg & Partner, o maior escritório de Arquitetura alemão, com uma proposta que incluía uma cobertura com 28 colunas no meio das arquibancadas. O Estádio Olímpico de Berlim encontra-se em obras e será o estádio central da Copa do Mundo de 2006.
Passamos a nos chamar Nedelykov Moreira Architekten, sublocamos a metade do loft, e recomeçamos quase do zero. Dos diversos concursos frustrados, um dos mais interessantes projetos teria sido a restauração da Embaixada da Alemanha em Brasília, única obra de Hans Scharoun (o autor da Filarmonia de Berlim) no exterior, e com jardins de Roberto Burle-Marx. Chegamos à fase final em 2000, perdendo a concorrência por uma questão de honorários. Caso semelhante ocorreu em 2002 com a concorrência para a reforma do Consulado Alemão no Rio, para o qual nos apresentamos em associação com Alfredo Britto e seus colegas do GAP.
A participação dos Índios Kadiwéu na renovação do Bairro Amarelo ocasionou, pela primeira vez na história, o reconhecimento do direito autoral de uma Nação Indígena. Quase cinco anos após a compleição do projeto consegui realizar em 2002, no Museu Etnológico de Berlim, a exposição Copyright by Kadiwéu, com a presença de mais uma delegação de artistas da tribo. Esta epopéia só foi possível graças à dedicação e ao empenho pessoal de Alain Moreau, advogado paulistano que há décadas dedica-se a propiciar uma existência digna aos Índios Kadiwéu.
Ao longo desses anos, paralelamente às atividades do escritório, minha produção de Artes Plásticas foi tomando corpo. Fiz 14 individuais (somente uma no Brasil, em 1996, durante a Bienal de SP) e participei de coletivas em diversos países, entre elas em 1993 no Fujita Venté Museum em Tókio, que foi organizada por mais um dos “Migrantes“, meu colega de FAU Oscar Satio Oiwa. A distância geográfica ($) ainda é, mesmo em tempos de globalização, um empecilho para uma divulgação dessa obra no Brasil. Na área da Dança pude realizar alguns projetos nos anos 90, com coreógrafos como Reinhild Hoffmann e o Grupo L`Autre Pas. Montei algumas mostras de outros artistas brasileiros em Berlim, entre elas a coletiva “Homem-Natureza-Tecnologia“ para o Instituto Itaú Cultural.
Nos últimos anos tive a oportunidade de realizar alguns projetos a nível acadêmico. Em 2001 fui convidado pelo Curso de Arquitetura da Faculdade de Engenharia da Universidade de Leipzig para uma série de palestras, nas quais tematizei o Concreto Armado na Arquitetura Brasileira. Coordenador do curso foi o Prof. König, engenheiro de Frankfurt, reconhecido como a maior autoridade em estruturas de arranha-céus na Europa. Ao final do semestre, em setembro de 2001, organizamos em uma viagem de estudos ao Brasil, contando com o apoio de diversos colegas em Universidades e administrações públicas e, em especial, com a colaboração do Prof. Mário Franco em São Paulo e Emília Stenzel em Brasília.
Também em 2001 atuei como supervisor de Projetos Internacionais junto às oficinas da Fundação Bauhaus-Dessau, dedicadas a projetos de revitalização urbana em contextos urbanos carentes fora da Europa. O primeiro projeto dá continuidade à elaboração do Masterplan de Adiz Ababa, e trabalhamos com o desenvolvimento de um dos maiores mercados da África (156 hectares), no centro da capital etíope. A segunda intervenção, um projeto piloto do Programa Favela-Bairro no Rio, trata da reestruturação da Favela Jacarezinho, num trabalho conjunto com Lu Petersen e Dietmar Starke, da Prefeitura do Rio de Janeiro. O canteiro de obras foi iniciado em meados de 2002.
O trabalho junto às Instituições de Arquitetos faz parte de nosso dia-a-dia desde há alguns anos. Minha mulher e sócia Nina Nedelykov é vice-presidente da Câmara de Arquitetos de Berlim e da Câmara Nacional de Arquitetos da Alemanha, além de representante alemã no Executive Board do ACE-Architects Council of Europe e, desde o Congresso de 2002, membro da delegação alemã junto à UIA. Dividindo tarefas, procuramos desta maneira participar do processo decisório sobre os estatutos da profissão e dos debates sobre sua transformação, num momento em que a Arquitetura (como a entendemos) é colocada em cheque pelos chamados especialistas, agentes e consultores.
Paralelamente às questões políticas da inserção da profissão num contexto maior, atuamos ambos em projetos institucionais, como na criação do projeto “Arquitetura nas Escolas“ que, tirando partido do caráter multidisciplinar da Arquitetura, introduz para a Infância e Juventude questões da Forma, da Técnica e do Meio-Ambiente, num processo de conscientização de futuros cidadãos. Este projeto, iniciado em Berlim em 1998, deu origem ao “Simpósio Internacional Arquitetura nas Escolas“, organizado por Nina e realizado durante o Congresso da UIA em Berlim em 2002.
Atualmente nosso escritório dedica-se a dois projetos: a um Centro Cultural para os países do Sudeste Europeu em Berlim (reforma de uma antiga fábrica) e à criação do Museu Max Liebermann. Liebermann (1847-1935), judeu da Alta Burguesia, fundador da Secessão Berlinense e o mais importante nome da pintura alemã do final do séc. XIX e início do séc. XX, construiu em 1910 sua casa de verão à beira do lago Wannsee entre Berlim e Potsdam, circundada por jardins concebidos por ele e por Alfred Lichtwark, teórico do Movimento de Reforma. Esta propriedade foi tema de mais de 200 pinturas do artista. A residência, projetada pelo Arquiteto Paul Otto Baumgarten, é um relevante testemunho do classicismo monumental alemão dos anos que antecederam a 1ª Guerra Mundial, e é contemporâneo, por exemplo, à Embaixada Alemã de Peter Behrens em São Petersburgo. Apesar do porte modesto, o projeto de restauração e adaptação é de grande complexidade técnica. Durante os trabalhos de prospecção, iniciados em 2002, encontramos, coberta por 7 camadas posteriores, a única pintura mural existente de Liebermann, que será restaurada até 2005. Com a reconstrução do jardim e do atelier do artista, o conjunto será recomposto como Gesamtkunstwerk (Obra de Arte Total), e abrigará exposições do Realismo e do Impressionismo europeus, com obras cedidas por importantes museus.
Freqüentemente sou perguntado em relação à problemática do reconhecimento acadêmico na Europa. A questão é bastante complexa. Desde 1997 tenho meu registro na Câmara de Arquitetos de Berlim. Este registro não implica num reconhecimento acadêmico, mas sim na confirmação documental de uma experiência profissional em todas as fases de projeto e obra, em escritórios europeus. O Diploma brasileiro é a priori reconhecido na Alemanha em nível de escola técnica (ou metade do curso universitário de Arquitetura), entre outros devido à estrutura do sistema escolar brasileiro. Assim, em cada país da União Européia há diferentes exigências na forma de complementação do diploma. Meu caso abriu um precedente na Alemanha e tive “somente“ que apresentar um novo trabalho de graduação (15 anos após o término da FAU-USP!). No momento preparo meu doutorado na Universidade Técnica de Berlim.
Peço desculpas ao leitor que se aventurou até a estas últimas linhas. Sobre a eterna pergunta: um retorno ao Brasil? Sim, imagino voltar, preparando um caminho, e encontrar oportunidades para por em uso o que levo desta pequena epopéia. Alegro-me de ter podido manter estreitos laços com tanta gente ao longo desses quase 15 anos. A velha Europa é fascinante, confortável. E pronta, com poucos desafios. Leio hoje com outros olhos as palavras de Artigas sobre “A Função Social do Arquiteto“, pronunciadas em 28 de junho de 1984. O Brasil ainda é o Novo Mundo.
notas
MOREIRA, Pedro. Duas lembranças de Éolo Maia. Texto Especial Arquitextos nº 153, outubro 2002.
MOREIRA, Pedro. Arquitetura honoris causa. Oportunismo político ou ignorância cultural? Minha Cidade nº 008, outubro 2000.
série completa dos "Depoimentos da Geração Migrante"
GUERRA, Abilio. "Depoimentos de uma geração migrante", Arquitextos 030.00, São Paulo, Portal Vitruvius, nov 2002 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq030/arq030_00.asp>.
SPADONI, Francisco. "Geração Migrante – Depoimento 1. Kenzo Tange e uma peniche no rio Sena". Arquitextos 030.01. São Paulo, Portal Vitruvius, nov 2002 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq030/arq030_01.asp>.
LEONIDIO, Otavio. "Geração Migrante – Depoimento 2. Em Paris, chez Christian de Portzamparc". Arquitextos 030.02. São Paulo, Portal Vitruvius, nov 2002 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq030/arq030_02.asp>.
VIOLA, Assunta. "Geração Migrante – Depoimento 3. Arquitetura e criatividade: uma experiência com Massimiliano Fuksas". Arquitextos 030.03. São Paulo, Portal Viutrivus, nov 2002 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq030/arq030_03.asp>.
ORCIUOLI, Affonso. "Geração Migrante – Depoimento 4. De São Paulo a Barcelona". Arquitextos, Texto Especial 161. São Paulo, Portal Vitruvius, dez 2002 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp161.asp>.
OIWA, Oscar Satio. "Geração Migrante – Depoimento 5. Arte sem fronteira". Arquitextos, Texto Especial 162. São Paulo, Portal Vitruvius, dez 2002 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp162.asp>.
MOREIRA, Pedro. "Geração Migrante – Depoimento 6. Brasil, Inglaterra, Alemanha – 15 anos", Arquitextos, Texto Especial 163. São Paulo, Portal Vitruvius, jan 2003 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp163.asp>.
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sobre o autor
Pedro Moreira (1965), Arquiteto, formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, 1987-88. Atuação profissional no Brasil, Inglaterra e Alemanha. Sócio em Nedelykov Moreira Architekten, Berlim. Supervisor de Projetos Internacionais das Oficinas da Fundação Bauhaus-Dessau (2001). Artigos publicados e Conferências no Brasil, Argentina e Alemanha