Em seguida à crise do planejamento, em conseqüência da ênfase dada à ecologia, no princípio da década de 1990, o conceito de sustentabilidade tem sido condição essencial para o desenvolvimento urbano. As interpretações, no entanto, variam a tal ponto que cria-se o mito da sustentabilidade para o desenvolvimento urbano, tendendo à banalização. O conceito tem sido tão explorado que, nos países desenvolvidos, a simples utilização de papel reciclado é louvada pelos fabricantes como um estímulo ao sustentável. Em verdade, todo desenvolvimento, para que seja assim considerado, deve ser necessariamente sustentável. Ao contrário, tratar-se-á de um surto de crescimento, sem nenhuma garantia de eqüidade e de durabilidade.
O conceito de desenvolvimento urbano sustentável parte do princípio de que políticas e ações postas em prática devem levar em conta a limitação da disponibilidade de recursos, de modo a não comprometer nem o bem estar nem o desenvolvimento das gerações futuras. Além disso, é condição básica que os benefícios de tais políticas e ações estendam-se ao maior número possível de pessoas, desde o momento de sua implementação. Neste artigo, interessa-nos analisar os efeitos do crescimento desordenado e fragmentado sobre o desenvolvimento urbano, destacando o processo de formação de periferias e de novos territórios urbanos.
Urbanismo de redes
Uma das conseqüências que decorrem do processo de formação de periferias e de novos territórios urbanos, com implicações sobre a gestão dos serviços urbanos, é a consolidação do chamado urbanismo de redes (1). Nos novos contingentes periféricos, a população perde o sentido de centralidade que tradicionalmente presidiu a formação dos núcleos urbanos e que, em geral, se mantém, até que a cidade atinja uma certa escala de crescimento (2). Desassistida, no que diz respeito aos mais distintos serviços urbanos, a população desenvolve um sentido de identidade próprio, nos limites de seus novos territórios, e, progressivamente, passa a organizar-se em função de interesses que têm referências no âmbito local (3). Entre as redes urbanas, características do processo de urbanização atual, destacam-se aquelas voltadas para a satisfação das necessidades do deslocamento humano.
O crescimento urbano disperso e fragmentado e as conseqüências sobre o desenvolvimento urbano
Um dos fatores que desafiam a capacidade dos planejadores e gestores urbanos é a fragmentação e dispersão, típicas do processo contemporâneo de expansão das cidades. Áreas onde, até então, afirmava-se o sentido de centralidade, seja em função do seu significado histórico, seja em conseqüência da proximidade de bens e serviços, passam a perder força em conseqüência de novos fatos, entre os quais destacam-se a construção de conjuntos habitacionais, de shopping centers e o surgimento de invasões e favelas.
A partir da década de 1970, em conseqüência do acelerado crescimento urbano, os conjuntos habitacionais proliferaram, na periferia das principais cidades brasileiras, como forma de atenuar as pressões sociais e a demanda por habitação. Nesses casos, em geral os períodos iniciais são marcados por extrema penúria de serviços, bens, lazer e oportunidades de trabalho. Desprovidos das mais variadas infra-estruturas, os novos territórios permanecem durante algum tempo num relativo isolamento, acentuado pela ausência de linhas de transporte. Tratando-se de populações de baixíssimo poder aquisitivo e de instrução, às vezes o atendimento aos interesses e necessidades locais leva décadas, até que a própria população reivindique, ou se estruture em redes, e consiga satisfazer suas carências.
Talvez, a conseqüência mais grave do desenvolvimento urbano disperso e fragmentado seja a redução da mobilidade urbana. Quando o crescimento urbano leva à formação de periferias desvinculadas da core área, os índices de mobilidade urbana diminuem. Segundo Barone (4), mobilidade urbana pode ser definida como a capacidade de cada cidadão ter acesso a uma gama de bens, de serviços, de lazer e de oportunidades de trabalho. Ora, se para os contingentes de população, vivendo em zonas periféricas as possibilidades reais de deslocamento diminuem, seu leque de oportunidades se restringe, uma vez que nenhum setor urbano é auto-suficiente e, conseqüentemente, não pode suprir todas as necessidades humanas.
O desenvolvimento da pesquisa
O foco deste estudo está dirigido para a relação entre a formação de novos territórios, nas periferias das cidades brasileiras, e o surgimento de modos alternativos de transporte. Os dados comentados no decorrer do artigo estão baseados em resultados obtidos, mediante aplicação de uma pesquisa em áreas periféricas, na zona sul da Região Metropolitana do Recife, trazendo ao debate elementos que caracterizam o perfil da população local, seus anseios no que diz respeito às necessidades de deslocamento e o jogo de interesses dos atores envolvidos, de modo a avaliar os efeitos nocivos à sustentabilidade do desenvolvimento urbano.
A área pesquisada, contida num raio de 15km, cobre os bairros de Barra de Jangada, Candeias, Piedade, onde se destaca o Conjunto Habitacional Dom Helder Câmara, no município de Jaboatão dos Guararapes, zona sul da região metropolitana do Recife. Esses bairros, a uma distância aproximada de 30 km da área central do Recife, são produto da expansão da aglomeração urbana do Recife, com origens na década de 1940. Tal processo intensificou-se, a partir da década de 1970. Trata-se de uma população composta predominantemente de classe média baixa e pobre, situando-se na faixa entre 1 e 10 salários mínimos
Foram entrevistadas 200 pessoas, desde estudantes até idosos, de maneira eqüitativa entre os bairros, com características residenciais, comerciais e alguns funcionando como zona de passagem. As entrevistas foram feitas em pontos de ônibus, nos domicílios e a transeuntes. As linhas de transporte coletivo por ônibus, que partem dos pontos citados são alimentadoras do sistema estruturador da linha sul do Metrô do Recife, integrando-se na estação Prazeres, no Centro Comercial Secundário de mesmo nome. Os intervalos de horários pesquisados foram os seguintes:
- 1º horário - das 6:30h às 8:00h – (horário de trabalho)
- 2º horário - das 9:00h às 11:00h (outros deslocamentos ou em cumprimento do serviço)3º horário - das 13:00h às 16:00h (horário de trabalho, regresso do 1º expediente e motivos variados)
Com relação aos diferentes horários pesquisados, pudemos identificar tanto características distintas quanto semelhanças, que não dependem do horário. Nos três intervalos pesquisados, 6:30h e 8:00h, 9:00h às 11:00h e 13:00h às 16:00h, entre os entrevistados destacou-se como motivo de deslocamento o trabalho, com 81%, 73% e 48% respectivamente. No item seguinte, 15%, 5% e 6% dos entrevistados assinalaram escola. Em seguida, 7%, 37% e 27% dos entrevistados assinalaram respectivamente o item assuntos pessoais. Os gráficos abaixo, referentes ao intervalo de 6:30h às 8:00h, são os mais ilustrativos do perfil descrito anteriormente, ficando evidente o peso do item trabalho, sobretudo no primeiro horário.
Os comentários em seguida referem-se aos meios de transporte utilizados. As categorias analisadas foram:
- Lotação-Kombi-Van
- Ônibus
Seguindo os mesmos intervalos de tempo, 62% optaram pelo transporte alternativo enquanto 92% optaram pelo ônibus, no primeiro horário; 53% e 79% no segundo horário e 84% e 78% no terceiro horário, respectivamente. O gráfico 2 ilustra a situação para o intervalo de 6:30h às 8:00h.
No que diz respeito às vantagens de utilização do meio de transporte, no primeiro horário 50% dos entrevistados apontaram a segurança como vantagem do ônibus, seguidos de um número insignificante dos que se referiram à rapidez. No segundo horário, 63% e 10%, enquanto no terceiro horário 50% e 7% se referiram à rapidez e à segurança respectivamente. Diante dos dados obtidos, constata-se primeiramente a importância da segurança como fator de relevância para a população, na escolha do meio de transporte. No primeiro horário, o número insignificante dos que se referiram à rapidez, como vantagem, explica-se pela maior disponibilidade de ônibus, postos em circulação pelas operadoras no horário de pico da manhã. No segundo horário, o percentual dos que apontaram segurança é mais significativo, já que o número de veículos operando o transporte alternativo aumenta.
Por outro lado, o item rapidez assume maior importância, uma vez que os intervalos entre os ônibus em circulação são maiores, resultando numa utilização mais intensa do transporte alternativo e, conseqüentemente, numa preocupação maior com a segurança. Para fazer oposição a esta vantagem do transporte alternativo, as empresas operadoras adotaram o micro-ônibus, visando a preencher os horários intermediários, com minimização de custos e agilidade de operação.
Os altos percentuais de utilização do transporte alternativo são uma ameaça à sustentabilidade do desenvolvimento urbano, uma vez que comprometem a gestão do sistema, onerando o custo do transporte coletivo de passageiros e estabelecendo o caos na dinâmica de circulação de trânsito.
O gráfico 3, referente ao primeiro horário, reforça as constatações acima, comprovando que a freqüência dos ônibus não atende às necessidades de deslocamento da população já que neste horário 70% acham que a freqüência dos ônibus não é satisfatória. Nos horários seguintes, o percentual dos que apontaram a freqüência dos ônibus cai para 37% e 31% respectivamente. Estes dados são explicados pela forte demanda no pico do primeiro horário, a despeito de um maior número de ônibus circulando, uma vez que o transporte alternativo só se intensifica a partir do segundo horário. Isto evidencia que as operadoras de transporte não satisfazem sozinhas à demanda.
No gráfico 4, sempre tomando como referência o primeiro horário, 43% dos entrevistados consideraram o transporte alternativo freqüente e 27% acharam que é rápido. Em contraposição, no gráfico 5, 81% dos entrevistados apontaram o transporte alternativo como inseguro, o que vem demonstrar que só optam por esta modalidade em função da rapidez e freqüência. Para os entrevistados, a importância da freqüência que o transporte alternativo proporciona está acima da insegurança que promove.
Para as empresas operadoras, o aumento da freqüência do ônibus convencional não seria economicamente viável. Porém, podem aumentar o número de micro-ônibus, ganhando em freqüência e agilidade. A esse respeito, um contra-exemplo instigante foi a criação de uma cooperativa de proprietários de transportes alternativos que investiu na compra de micro-ônibus e conseguiu a respectiva concessão da municipalidade de Jaboatão dos Guararapes.
Particularidades da política de transporte em Jaboatão do Guararapes
A análise dos papéis e objetivos do planejamento da circulação exige um conhecimento detalhado do jogo de interesses dos atores envolvidos na questão da circulação. Ela ocorre em um espaço físico de conflitos onde torna-se necessário definir os papéis dentre os que interagem no setor.
Segundo informações da EMTU/Recife, a partir do ano de 1996, o serviço metropolitano por ônibus começou a sofrer a concorrência do transporte alternativo, resultando numa perda significativa de demanda da ordem de 14% no serviço por ônibus da Região Metropolitana do Recife. Na prática, isso também sofre influência do precário sistema de gestão Municipal, operado por ônibus convencional. Para a Empresa Municipal de Transporte e Trânsito do Jaboatão dos Guararapes (EMTT) o resultado no município é uma perda da ordem de 60%, ou seja, de uma demanda média diária de 54.000 passageiros em 1996. Em fevereiro de 1999 passou para 20.454 passageiros com uma redução na frota em torno de 48%. A grande redução da demanda e, conseqüentemente, da rentabilidade dessas linhas, fomentaram o desinteresse das empresas operadoras. De acordo com os dados da EMTT, a falta de definição de uma política clara para o transporte municipal, por parte do setor público, também desestimulou os empresários face a novos investimentos no setor. Embora as políticas públicas sejam o resultado das ações de vários agentes, o Estado é o ator central. Este papel central é importante, mesmo considerando as tendências recentes de privatização e desregulamentação de serviços e obras (5).
notas
1
Cf. DUPUY, G. L’Urbanisme des Reseaux – Théories et Méthodes. Paris, DIST, Armand Colin Editeur, 1991.
2
LEFÈBVRE, H. Le droit à la ville. Paris, Ed. Anthropos, 1968 et 1972.
3
SANTOS, M. O espaço do cidadão. São Paulo, Nobel, 1985.
4
BARONE
5
VASCONCELOS, 2001
referências bibliográficas
BOADA, L. O espaço recriado. São Paulo, Nobel, 1991.
CULLEN, G., A paisagem urbana. Lisboa, Edições 70, 1983.
FRÉMONT, A., La région espace vécu. Paris, Presses Universitaries de France, 1976.
PINHEIRO, M. B. Mobilidade urbana e qualidade de vida: conceituações, in Anais. São Paulo, , 199 .
ROLNIK, Raquel. ver. São Paulo, Nobel, 1991.
SANTOS, Milton, Por uma outra globalização. Rio de Janeiro, Record, 2001.
SANTOS, M. e SILVEIRA, M. L. O Brasil – Território e sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro, Editora Record, 2001.
SERRA, G. Urbanização e centralismo autoritário. São Paulo, EDUSP, 2001.
VILLAÇA, Flávio. Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo, Studio Nobel, 2001.
sobre os autores
Tomás de Albuquerque Lapa é professor Adjunto 4 UFPE, Coordenador do CECI/MDU
Fellipe de A. Abreu e Lima é graduando em Arquitetura e Urbanismo pela UFPE - PIBIC/CNP
Lucas da C. Machado Rios é graduando Arquitetura e Urbanismo UFPE – PIBIC/CNPq