A história da habitação institucional no século 20 tende a confundir-se com o crescimento da periferia das grandes cidades. A realização do paradigma modernista – Plan Voisin, Ville Radieuse – materializou-se mundo afora através da produção de extensas áreas habitacionais localizadas em geral nas periferias urbanas do mundo, criando aquilo que passou a ser chamado de cidade subalterna. A partir da década de 60 essa tendência parece reverter-se. A crítica ao urbanismo modernista e a redescoberta das assim chamadas qualidades da cidade tradicional trouxeram para a prática profissional uma nova atitude diante do projeto das novas áreas habitacionais; uma conduta projetual de inserção do novo no assim chamado centro histórico, buscando ao que parece a integração espacial e social das novas áreas de habitação institucional à cidade.
Nos anos oitenta essa conduta projetual pareceu não apenas correta, mas também a oportunidade de redimir os fracassos da historicamente desastrosa relação habitação institucional/cidade. Seria um novo modo, mais apropriado arquitetônica e socialmente, de implementar os projetos habitacionais. Passados vinte anos uma avaliação menos conceitual e mais próxima da realidade vem revelar as implicações dessa estratégia de integração: implicações sociológicas, políticas, arquitetônicas e as, talvez menos perceptíveis, mas nem por isso menos efetivas, implicações decorrentes das modificações sofridas pela configuração espacial da malha urbana quando da implantação de uma nova área de habitação institucional em área urbana central. Esse trabalho analisa esse conjunto de implicações através de um estudo de caso. Trata-se da implantação de um novo conjunto habitacional – o Núcleo Planetário – em área urbana central da cidade Porto Alegre; um projeto habitacional institucional implementado por uma administração municipal socialista no final dos anos oitenta. O núcleo foi construído em meio a bairros tradicionais da cidade e parece conter os ingredientes básicos acima referidos necessários à visualização de cada um dos aspectos da questão.
Política e arquitetura: difícil articulação
A tendência surgida nos anos sessenta na direção de buscar uma maior integração das novas áreas habitacionais à cidade é em parte fruto da crítica ao modo de vida produzido pelos assim chamados conjuntos habitacionais modernistas. Jane Jacobs escreveu talvez o paradigma nessa linha de crítica em seu Vida e morte nas grandes cidades americanas (2). Perda de identidade, segregação, sujeira, deterioro e crime; esse é o produto em geral detectado na pesquisa. Jacobs aponta, entre outras, razões locacionais e de desenho urbano para o fracasso da cidade modernista. Esse pensamento parece ter-se generalizado na cultura arquitetônica contemporânea muito embora se saiba, por experiência, que nem todo o conjunto habitacional de periferia é um fracasso desde o ponto de vista sociológico simplesmente por ser configurado ao modo modernista; sem a rua como elemento estruturador.
Outra fonte de inspiração para a tendência integradora parece vir do redescobrimento, também ocorrido nos anos sessenta, da assim chamada cidade tradicional. Autores como Aldo Rossi, Carlo Aymonino e os Irmãos Krier repropuseram a arquitetura da cidade como aquela capaz de propiciar um modo de vida ideal, agora mais urbano, mais complexo, distinto daquele idealizado para o homem modernista; em geral concebido como parte de um contínuo natural preferencialmente arborizado. A redescoberta da cidade tradicional e a formalização da crítica do urbanismo modernista forneceram a base conceitual para uma nova atitude, não apenas do pensamento arquitetônico diante das questões urbanas, mas principalmente da atitude de arquitetos e administrações municipais ditas progressistas em diversos países. Realizações como Byker Wall e Maiden Lane na Inglaterra, o Gallaratese na Itália e o conjunto de obras do IBA em Berlim incorporam em maior ou menor medida essa nova atitude denominada por alguns como contextualista. Uma atitude onde estratégias de planejamento baseadas na organização da cidade através do zoneamento de uso tendiam a ser substituídas por uma estratégia de absorção da assim chamada complexidade do urbano; lugar onde uma variedade de interesses expressos nos usos do solo tenderiam a interagir e usufruir dos benefícios da integração, como de fato ocorre nas cidades, onde diferentes usos e extratos sociais freqüentemente convivem numa mesma porção do território; num mesmo bairro e muitas vezes numa mesma rua.
A realização do Núcleo Planetário (Porto Alegre, Brasil) estudo de caso referência para as idéias em discussão nesse trabalho, ocorre nesse contexto teórico-histórico. Uma situação onde uma administração municipal busca assumir uma posição de vanguarda, distinta daquela assumida pelas administrações a ela anteriores cuja ação no campo da habitação institucional tinha em geral como característica mais forte os projetos de grande escala localizados nas periferias urbanas. Nesse contexto a administração municipal ao viabilizar a localização de um conjunto de casas populares em área predominantemente habitada por população de classe média e mesmo média alta assume uma postura política forte; tentando demonstrar sua capacidade de reverter radicalmente a tendência de localização na cidade das camadas sociais economicamente menos favorecidas. Anteriormente à realização do Núcleo Planetário essa área havia sido invadida e ocupada por posseiros. Em outras épocas a conduta das administrações municipais nesses casos, independentemente de partido político, seria, como o foi por diversas vezes, de remoção dessa população para áreas periféricas.
Dessa forma consolidam-se no final dos anos oitenta as condições ideais para que seja testada na realidade da cidade de Porto Alegre o arcabouço teórico daquilo que alguns na época entenderam e declararam como sendo o urbanismo pós-moderno. Uma prefeitura progressista habilita-se a intervir de forma drástica no centro urbano através de transformações arquitetônicas e urbanísticas que buscam modificar as relações sociais então existentes. Não se pode afirmar que a construção do Núcleo Planetário em localização urbana privilegiada tivesse o objetivo messiânico de resultar em integração comunitária; habitantes tradicionais do bairro e os habitantes da nova área habitacional constituindo juntos uma nova sociedade. Entretanto esse parece ser um objetivo coerente para aqueles que defendem a capacidade da arquitetura de reformar hábitos e, no limite, a totalidade da sociedade. Na direção oposta, poderíamos conjeturar que o contraste é deliberado e tem a intenção de marcar fortemente o caráter distinto dessa nova atitude urbanística. Seria como construir um marco. Algo que ao invés de assemelhar-se à estética da cidade existente, dela diferisse radicalmente. Essa conjectura ganha corpo se levarmos em conta o progressivo contraste existente entre o Núcleo Planetário e seu entorno passados os anos; tanto sob o ponto de vista ambiental urbano quanto sob o ponto de vista social. Se essa foi a intenção ela parece ter sido plenamente atingida com todas as consequências sociológicas e arquitetônicas decorrentes. De qualquer maneira o Núcleo Planetário foi construído, foi habitado, passaram-se dez anos e hoje, já tendo algum distanciamento no tempo, podemos nos ocupar de sua análise dentro de uma razoável perspectiva histórica.
A lógica social: a classe média e os recém chegados
A distribuição espacial dos bairros no território da cidade tende em geral a refletir a distribuição dos diversos segmentos sociais. Pode-se dizer que a organização espacial dos diferentes extratos de renda tende a ser legitimada pela história da cidade; uma espécie de organização natural de acordo com a qual as classes mais abastadas tendem a concentrar-se em certas zonas, a classe média em outras e os extratos de renda mais baixa em outras ainda. Essa distribuição é freqüentemente alterada ao longo do tempo e áreas outrora periféricas passam à condição de áreas nobres. Áreas outrora residenciais de classe alta tornam-se distritos comerciais. Essa dinâmica urbana natural, típica das grandes cidades do mundo ocidental, tem clara explicação a partir da lógica econômica de ocupação do território.
Freqüentemente essa tendência, de certo modo segregativa, tende a ser atenuada nos bairros mais antigos das grandes cidades onde uma variedade de tipos residenciais – apartamentos de tamanhos diversos, casas mais novas e casas mais antigas – misturam-se muitas vezes ao longo de uma mesma rua produzindo uma certa complexidade de tipos arquitetônicos seguida freqüentemente por uma maior variedade de população em termos de extratos de renda. Esse é o caso do setor norte do Bairro Santana aonde veio a localizar-se o Núcleo Planetário. A área caracteriza-se por abrigar tradicionalmente parte da comunidade judaica da cidade de Porto Alegre. A proximidade da Universidade faz com que ali se localize população ligada ao mundo acadêmico, fato que termina por dar ao bairro uma interessante vida cultural. O bairro é antigo e, ao mesmo tempo, tem passado por alguma renovação. Novos edifícios residenciais que abrigam uma classe de maior poder aquisitivo justapõem-se a edificações mais antigas onde em geral moram os menos abastados. Pode-se dizer que a condição de unidade na diversidade observada na distribuição espacial dos tipos arquitetônicos é igualmente encontrada na distribuição social. Entretanto, essa variedade de segmentos sociais e de renda convivendo numa mesma área da cidade parece ocorrer dentro de limites. Esses limites são de difícil demarcação. Pode-se, entretanto, dizer que esse diversificado grupo social – por mais abrangente que ele seja – não inclui aquela população urbana de renda mais baixa ou mesmo aquela sem renda, típica das periferias das grandes cidades; o migrante recém chegado e, em geral, ainda não afeito aos hábitos da cidade; hábitos de urbanidade, escolaridade, higiene e outros. E é precisamente esse o perfil da população que veio a habitar o Núcleo Planetário. Em geral essa condição de natureza cultural, mais que aquela de condição econômica, termina sendo um parâmetro a orientar a distribuição dos grupos sociais por afinidade. Pode-se afirmar, pelo menos desde o ponto de vista das cidades brasileiras e Porto Alegre entre elas, que há uma espécie de distribuição natural da população que termina por propiciar a condição operacional adequada aos diferentes grupos sociais, naquelas localizações, naquele momento da história da cidade. Realizar um condomínio fechado para a elite econômica em meio a uma favela – por mais bela que seja a vista e a topografia do lugar – não é habitual. O oposto parece ser igualmente verdadeiro. Localizar um núcleo habitacional de baixa renda em meio a uma comunidade mais abastada seria também uma forma de romper com a distribuição natural acima descrita. Na condição gerada pela implantação do Núcleo Planetário, hábitos recém egressos do mundo rural colidem fortemente com a cultura urbana.
Estética urbana versus estética habitacional
Um dos aspectos, talvez o mais preeminente, da chamada cidade tradicional é sua caracterização física como artefato arquitetônico produzido coletivamente ao longo do tempo. Na construção desse artefato, diversidade e unidade tendem a dialogar através da recíproca relação entre os âmbitos privado e público ou coletivo. A individualidade de cada lote tende a ser compensada por estratégias construtivas que coletivizam-se ao longo do tempo fazendo com que os diferentes bairros da cidade sejam caracterizados por alguns tipos de edificação típicos de uma época e que, no conjunto, terminam por assegurar a identidade daquela parte da cidade. E é precisamente nesse sentido tipológico que o bairro aonde veio a localizar-se o Núcleo Planetário é fortemente característico. Ao contrário de outras partes da cidade de Porto Alegre – áreas de crescimento mais recente onde o padrão edilício modernista de torres e pavilhões afastados das divisas já se mistura ou até predomina sobre o padrão tradicional de edificações geminadas – o setor do Bairro Santana onde localiza-se o Núcleo Planetário tem um padrão edilício bastante consistente composto em geral pela edificação contínua da rua através de construções geminadas conformando uma ambiência urbana caracterizada por uma forte e continuada definição arquitetônica dos espaços públicos; são ruas moldadas por edificações em curva e praças moldadas como recintos urbanos a céu aberto. Muito do padrão edilício lá existente foi herdado da arquitetura decô; base da Exposição Farroupilha de 1935. Edifícios como o Hospital do Pronto Socorro, o Centro de Saúde Modelo e tantos outros forneceram as regras que vieram a ser utilizadas na construção do bairro nas décadas subseqüentes. E essas regras relativamente simples de edificações geminando nas divisas, mantendo uma seqüência edificada ao longo do alinhamento e prédios de média altura oscilando entre 3 a 5 pavimentos, terminou por assegurar uma unidade que paira acima da individualidade das edificações, dos estilos, cores, texturas e particularidades estéticas em geral (figura 1).
Desde o ponto de vista da estética do espaço público a forma arquitetônica é assegurada. Ruas e praças tendem a manter o caráter de enclausuramento ou contenção espacial que caracteriza o que conhecemos como cidade tradicional. Essa arquitetura urbana é recheada por uso residencial predominantemente de classe média onde imóveis de apartamentos maiores, destinados a uma classe mais alta misturam-se a imóveis de apartamentos menores. O uso residencial é complementado por uma forte rede de comércio e serviços diversos de porte variado e por edificações de caráter excepcional, pelo porte ou pela forma, que pontuam a área constituindo um sistema monumental de referência coletiva (figura 2).
Em contraposição, o Núcleo Planetário traz para o contexto um tipo de estética habitacional. Trata-se de um híbrido; uma mistura da estética do bloco de habitação com a estética da casa popular de periferia (figura 3). Dois tipos de casa são distribuídos na área agrupados em blocos resultando da composição a aparência de pavilhões. A distribuição dos blocos resulta numa malha de percursos, alguns internos e outros ligando o interior do núcleo ao sistema viário pré-existente que o cerca. Trata-se de um sistema de espaços abertos estreitos convergindo em sua maioria para uma pequena praça interna. A estreita dimensão desses logradouros torna ali a percepção ambiental – lato senso – bastante diversa daquela vivenciada nas ruas do bairro, simplesmente por ser esse constituído por ruas de caixa mais ampla. A isso se soma um aspecto fundamental, desde o ponto de vista da percepção ambiental, que é a ruptura ou diluição da estruturação urbana em ruas e quarteirões. Talvez seja essa a modificação mais radical introduzida pelo Núcleo Planetário. A escala do espaço público é dramaticamente reduzida e o ritmo de ocorrência de espaços públicos de menor dimensão – ruelas, largos e becos – é intensificada. Uma outra estética é introduzida através da adoção de uma condição morfológica estranha à natureza espacial daquela parte da cidade.
O discurso que acompanha o projeto sugere que a arquitetura do Núcleo Planetário introduz naquele contexto uma saudável mistura arquitetônica e que a adjacência das duas comunidades – habitantes do bairro e habitantes do novo núcleo habitacional – viria a funcionar como instrumento de integração desde o ponto de vista da comunidade mais atrasada. Entretanto, as características do meio físico geradas a partir da implantação do Núcleo parecem não auxiliar em nada como estratégia de integração. Fato que é agravado se considerarmos a dificuldade de renovação do núcleo a partir da ação individual de cada morador ao longo do tempo. Ao contrário das áreas de habitação institucional implementadas a partir de loteamento, onde cada morador pode ao longo do tempo operar modificações e mesmo comercializar sua casa, o Núcleo Planetário foi concebido de modo a perpetuar-se como está. As casas não podem em princípio ser vendidas, pois seguem alienadas ao poder público por um período de trinta anos. E mesmo que pudessem as edificações que compõem o Núcleo dificilmente poderiam transformar-se de modo igual ao que ocorre com os imóveis individualizados a partir de um processo de parcelamento do solo. O típico bloco habitacional lá utilizado previne a possibilidade de uma evolução natural tendendo à diversidade. Portanto, desde o ponto de vista arquitetônico, Núcleo Planetário e cidade tendem a perpetuar uma interface contrastante. Nem sempre a estética arquitetônica é um indicador preciso de condição social. Conforme já sugerido, nas partes da cidade onde há diversidade arquitetônica – como é o caso do Bairro Santana no setor vizinho ao Núcleo Planetário – o meio físico tende a funcionar como um equalizador estético/simbólico abrigando habitantes de uma variedade de extratos de renda. É precisamente nesse sentido que a arquitetura do Núcleo Planetário parece condenar seus moradores a uma condição de marginalidade permanente.
O núcleo habitacional e a lógica configuracional da malha urbana
A estética do Núcleo Planetário – que o diferencia do entorno de modo tão contrastante – não é o único elemento responsável pela tendência daquele lugar à segregação e, conforme pretendemos demonstrar no que segue, talvez não seja sequer o elemento preponderante. De fato a relação ou articulação do Núcleo Planetário, considerado desde o ponto de vista de sua forma espacial urbana, com o bairro que o circunda é igualmente, ou bastante mais, problemática. Denominamos como forma espacial urbana o caráter configuracional de uma rede de espaços públicos. Sugerimos, nessa linha de abordagem, que se as mesmas edificações fossem posicionadas de forma a prover a continuidade do caráter configuracional do espaço público observado no entorno, a almeja da integração social provavelmente tenderia a ocorrer de modo natural ao longo do tempo. Interessa-nos aqui definir e analisar dois tipos de continuidade. A primeira refere-se a continuidade das regras que conformam o espaço público daquela parte da cidade. A segunda refere-se à continuidade espacial que caracteriza os percursos mais integradores do bairro e sua relação – desses espaços mais integradores – com a rede de espaços públicos gerados a partir da implantação do Núcleo Planetário.
Identificamos no que segue elementos que descrevem esse caráter de continuidade/descontinuidade do espaço público; são características configuracionais da rede de espaços públicos. Nos utilizaremos, para descrever essas características, da descrição axial da malha urbana. O mapa axial descreve a malha urbana em suas linhas (ou eixos) de maior visibilidade e acessibilidade. A descrição da malha urbana como um conjunto de linhas interconectadas propicia a elaboração de uma série de medições que nos auxiliarão na comparação entre a condição morfológico-espacial do Núcleo Planetário e aquela do bairro que o circunda.
Definimos no que segue as características do espaço público que nos interessa identificar a fim de exercitar a comparação entre os dois conjuntos ou sistemas de espaços públicos; núcleo habitacional e bairro. A primeira dessas características refere-se ao grau de fragmentação espacial de cada sistema. Definimos grau de fragmentação como sendo o quociente entre o número de linhas axiais e a área do sistema (em hectares). A figura 4 mostra o mapa axial de nossa área de estudo com o núcleo habitacional em evidência. A configuração da malha urbana do Bairro Santana nas imediações do Núcleo Planetário pode ser descrita como uma típica grelha deformada que estrutura o bairro em ruas e quarteirões. Vê-se aí que o bairro é constituído em geral por longas linhas axiais que configuram um sistema em grelha. Na porção de território ocupada pelo núcleo habitacional a configuração do sistema é alterada dramaticamente desde o ponto de vista da fragmentação. Contrastando com a configuração observada no bairro, um grande número de pequenas linhas axiais é introduzido. São os espaços internos do conjunto habitacional. O grau de fragmentação do sistema sobe de 0,65 linhas/ha (medida que considera somente as linhas axiais do bairro) para 0,87 quando da inclusão do núcleo habitacional (figura 5). A medida de fragmentação do Núcleo Planetário medido isoladamente sobe para 23,7 parecendo denunciar a presença de um corpo de natureza absolutamente estranha àquela do sistema. Comportamento inversamente proporcional ao grau de fragmentação ocorre com o que viemos a denominar como grau de tensão observado em cada um dos sistemas. Medimos a tensão através do comprimento médio das linhas axiais. Assim analisado o bairro, tem um valor de tensão igual a 293,93. Comparativamente o núcleo habitacional introduz um sistema com um valor de tensão igual a 41,84. A medição conjunta bairro/núcleo habitacional faz com que o valor de tensão do sistema assim composto caia de 293,93 para 233,13.
A condição de permeabilidade observada nos dois sistemas reforça as observações acima. Medimos o grau de permeabilidade através do quociente entre a quantidade de espaço público (dada em metros lineares) e a área do sistema. O valor de permeabilidade observado para o bairro é de 191,46. Já na área ocupada pelo conjunto habitacional o indicador de permeabilidade sobe dramaticamente para 994,79. Esses números sugerem que a visão de incremento à permeabilidade como uma característica positiva na avaliação do espaço urbano deve ser vista com reservas. De fato o incremento excessivo à permeabilidade termina por introduzir, no caso do Núcleo Planetário, uma característica morfológica radicalmente distinta daquela do entorno e, de certo modo assemelhada à configuração de assentamentos auto-produzidos, onde os espaços públicos são muitas vezes becos estreitos e tortuosos. Essa condição espacial parece favorecer um tipo de comportamento social distinto daquele observado no bairro. Pode-se dizer que no caso em análise a simultânea introdução de um alto grau de fragmentação, o rebaixamento da tensão na malha e o incremento dramático da condição de permeabilidade estabelecem as condições morfológicas necessárias e suficientes para a concretização de um gueto urbano.
A caracterização de gueto é reforçada pelo alto grau de constituição do espaço. Denominamos grau de constituição a intensidade de ocorrência de ligações entre o espaço público e o domínio privado. Procedemos a medição do grau de constituição através do quociente entre o número de portas de entrada e o comprimento da linha considerada dado em metros lineares. No bairro, a constituição do espaço ocorre de modo que as portas de entrada dos edifícios residenciais são espaçadas, em decorrência da dimensão das fachadas, e alternam-se freqüentemente com as portas dos estabelecimentos comerciais. No núcleo habitacional, em decorrência da estreita fachada do tipo arquitetônico utilizado, o grau de constituição sobe dramaticamente. Em paralelo, ao invés da mistura residência/comércio que caracteriza o entorno, o espaço público é constituído, quase que em sua totalidade, por portas de entrada residenciais (figura 6). Essa característica, uma vez associada à estreiteza dos percursos internos do núcleo habitacional, termina por configurar um ambiente urbano pouco convidativo à entrada de estranhos; característica que igualmente termina por inibir de modo radical a integração social do núcleo ao entorno.
Desde o ponto de vista da articulação espacial os dois sistemas – núcleo habitacional e bairro – equivalem-se. Medimos articulação espacial através da conectividade das linhas axiais que compõem os respectivos sistemas ou seja, do número de conexões (com outras linhas) de cada uma das linhas que compõe o sistema. A medição ora realizada refere-se à média ou seja, ao quociente entre o somatório das conectividades de todas as linhas e o número total de linhas de cada um dos sistemas. A tabela-síntese mostra que a alteração é marginal (figura 5). O fato parece contrariar a crença estabelecida de que as áreas habitacionais – especialmente aquelas construídas seguindo a conduta projetual modernista – tendem à organização assim chamada em árvore ao contrário da configuração evidenciada pela cidade tradicional, em geral em grelha (figura 7). O conjunto Planetário, embora altamente fragmentado, mantém o padrão de articulação espacial observado no bairro.
O mesmo não pode ser dito quanto ao nível de integração comparados os dois sistemas, conjunto habitacional e bairro. O nível de integração de cada uma das linhas é dado por sua capacidade de ser caminho mais curto entre quaisquer outras duas linhas do sistema. Muito embora o nível de integração possa ser obtido por uma simples, porém trabalhosa operação manual – através da elaboração de uma matriz de conectividades – em nosso caso foi gerado através de procedimento computacional. Definimos como nível de integração médio do sistema como sendo a média dos níveis de integração identificados para cada uma das linhas. O resultado revela um grau de integração médio para o conjunto das linhas do bairro igual a 1,58. Analisado isoladamente o Núcleo Planetário apresenta uma queda para 1,44 no nível de integração. Analisados interagindo, bairro e conjunto habitacional produzem um nível de integração igual a 1,40, isto é, a adição do Núcleo Planetário ao bairro faz com que o nível de integração médio do bairro caia de 1,58 para 1,40. O grau de correlação estatística detectado entre o nível de integração de um sistema e a conectividade média de suas linhas tem sido utilizado como um indicador da inteligibilidade do sistema. Seguindo essa descrição a inteligibilidade do bairro cai de 0,82 para 0,78 mediante a inserção do Núcleo Planetário. Medido isoladamente o grau de inteligibilidade do Núcleo Planetário é de 0,73. O resultado evidencia que medidos isoladamente, tanto núcleo habitacional quanto bairro, são mais inteligíveis que o sistema criado pela interação de ambos.
O resultado mostrado pelo conjunto de medições acima apresentado quantifica o quão diferentes são núcleo habitacional e bairro desde o ponto de vista de suas configurações espaciais. Esses resultados são complementados, e de fato reforçados, quando analisamos o modo como se relacionam os percursos mais integradores do bairro e os espaços públicos gerados a partir da implantação do Núcleo Planetário. A identificação dos percursos mais integradores do bairro foi procedida de duas formas. A primeira foi a partir da lógica do bairro descrito como um sistema autônomo independente da cidade que o cerca. A segunda foi procedida a partir da lógica da cidade ou seja, o bairro descrito como uma parte da cidade. A primeira situação implica em uma medição local. Já a segunda implica em uma medição global ou seja, da totalidade dos espaços públicos da cidade.
Medido como um sistema isolado, o bairro apresenta um núcleo de integração em cruz composto pelas ruas Santana e Jeronimo de Ornellas. Elas atravessam o bairro de um extremo a outro gerando em seu cruzamento aquilo que, desde o ponto de vista da concentração dos comércios e serviços, pode ser considerado como o centro do bairro (Figura 8a). Medido como uma parte da cidade (medição global) o ranking das linhas mais integradoras é radicalmente alterado. O núcleo de integração passa a ser descrito por percursos que contornam o bairro – avenidas Venancio Aires, Ramiro Barcellos e João Pessoa – que são de fato, percursos fortemente integradores desde o ponto de vista da cidade analisada como um sistema global (figura 8b). A sobreposição dos dois núcleos de integração evidencia uma configuração onde núcleo em cruz e linhas integradoras periféricas conectam-se gerando um conjunto de linhas que integram espacialmente o sistema em sua totalidade; interior e bordas (figura 8c). Essa articulação espacial entre rotas de importância local e rotas de importância global parece ser responsável pela permanente condição de animação urbana encontrada naquela parte da cidade (figura 8c).
Curiosamente as linhas mais integradas do conjunto Planetário não tem contato com quaisquer desses percursos integradores tanto os locais quanto os globais. O resultado da análise sintática mostra o bairro como um sistema fortemente integrado onde os percursos em cruz conformadores do centro do bairro articulam-se com precisão aos percursos globalmente integrados dados pela cidade. Nesse contexto analítico o grupo de espaços que conformam o conjunto Planetário aparece totalmente desarticulado do conjunto de espaços integradores (figura 8d). Do mesmo modo, a identificação do conjunto de espaços mais segregados – medidos bairro e núcleo habitacional interagindo – mostra que as rotas que compõem o núcleo habitacional constituem a maior parte desses espaços segregados (figura 8e).
O uso do espaço público
Buscamos no que segue avaliar de que modo ocorre o uso do espaço naquela parte da cidade; inicialmente no bairro e a seguir no interior e adjacências do Núcleo Planetário. Tentamos verificar se as descrições de configuração acima procedidas teriam rebatimento no comportamento dos usuários do espaço em nossa área de estudo; confirmando ou não os resultados obtidos em trabalhos que as antecedem. Consideramos como antecedente ao método de análise ora utilizado a já conhecida tradição da medida sintática de integração na descrição do movimento de pedestres e veículos em áreas urbanas.
A avaliação da condição de uso do espaço púbico foi procedida com base na contagem de pedestres e veículos para cada um dos segmentos axiais que compõe os sistemas em análise. O trabalho foi realizado por observadores caminhando na rede de espaços públicos devidamente decomposta e reduzida a seus segmentos axiais. Os pedestres foram classificados em adultos e crianças. Ambas as categorias foram, na seqüência, desagregadas em estáticos e em movimento. Essa classificação viria a permitir a verificação de algumas diferenças básicas entre o comportamento dos habitantes do bairro e habitantes do Núcleo Planetário. A contagem dos veículos foi realizada por períodos de dois minutos não havendo discriminação por tipo de veículo. Os horários de observação foram igualmente desagregados em pico (17:30 às 19:00) e baixa (15:00 às 16:30).
Para os adultos o levantamento procedido revela alguns resultados interessantes. O gráfico que descreve adultos em movimento em hora de baixa mostra para o bairro um valor médio em torno de 14,93 adultos em movimento por linha (figura 10a). Esse valor desconsidera os percursos mais carregados pertencentes à malha viária principal da cidade – que mesmo em pequeno número tenderiam a levantar drasticamente a média – e oferece um quadro mais real daquilo que poderíamos considerar como sendo o uso médio dos espaços públicos do bairro. Nesse contexto, o movimento de adultos observado no conjunto de espaços públicos que compõe o Núcleo Planetário cai radicalmente para 3,75 adultos/linha, conforme indica a extremidade direita do mesmo gráfico. Em contraste, a performance da categoria adultos parados revela uma distribuição onde os valores observados para o núcleo habitacional sobem para um nível aproximado aos observados no bairro. A similaridade é ilusória. Enquanto no caso do bairro o número de adultos em movimento é sistematicamente maior que os parados, no caso do Núcleo o espaço tende a ser ocupado predominantemente por adultos parados (figura 9b). As medições de uso do espaço por um lado parecem confirmar as diferenças de característica anteriormente apontadas entre os hábitos da comunidade do núcleo habitacional e aqueles do habitante do bairro. Por outro lado, os resultados parecem indicar que os espaços públicos que o Núcleo Planetário oferece à cidade são pouco utilizados por outras pessoas que não sejam seus próprios habitantes. Os valores observados para a hora de pico confirmam a tendência observada nas horas de baixa, havendo apenas uma marginal diminuição nos valores dados para adultos parados nas linhas pertencentes ao núcleo habitacional que em todo o caso permanecem altos comparativamente ao bairro. (figura 9c,d). O padrão de uso do espaço observado para a categoria crianças revela, da mesma forma que o observado para a categoria adultos, forte contraste entre o comportamento dos habitantes do bairro e aqueles do conjunto habitacional. Nos horários de baixa, enquanto as ruas do bairro estão carregadas de crianças em movimento, os espaços do conjunto habitacional não são visitados por representantes dessa categoria (figura 10a). Ao contrário, nesse momento os espaços do conjunto habitacional apresentam altos índices de crianças estáticas, categoria pouco presente nos espaços públicos do bairro à mesma hora. Nas horas de pico os indicadores de crianças em movimento no bairro diminuem consideravelmente ao mesmo tempo que aumenta o indicador de crianças estáticas. Esse resultado parece evidenciar o hábito de descer para brincar na calçada no fim de tarde (figura 10c,d). Já no conjunto habitacional a presença grande quantidade de crianças no espaço público, já mostrada nas horas de baixa, passa a ser ainda maior nas horas de pico, quando ocorre o retorno das crianças que trabalham fora. Em geral os gráficos evidenciam uma consistente maior presença de crianças no conjunto habitacional comparativamente ao bairro. E ainda, o uso do espaço observado no núcleo habitacional é radicalmente distinto daquele observado no bairro. As ruas do bairro são geralmente ruas movimentadas e utilizadas tanto por adultos quanto por crianças as quais tendem a utilizar as calçadas para brincar nos fins de tarde. Já os espaços do núcleo habitacional são pouco freqüentados por pessoas em movimento. Ao contrário, o número de pessoas paradas, adultos socializando e crianças brincando, tende a ser alto tanto nas observações procedidas em horas de alta quanto de baixa. A interface entre habitantes locais e passantes, fato corriqueiro no bairro, é praticamente inexistente nos percursos internos do núcleo habitacional. Tanto a fragmentada forma espacial dos percursos públicos, quanto o modo como ocorre a apropriação do espaço público pela comunidade local, parecem exercer um efeito bastante refratário à presença de transeuntes. As descrições do padrão de uso do espaço público sugerem uma radical diferença entre bairro e conjunto habitacional nesse aspecto. Esse resultado confirma por um lado observações anteriores referentes ao perfil socioeconômico das duas comunidades e, por outro lado, as descrições dadas pela análise configuracional que apontaram e quantificaram uma série de contrastes entre os dois tipos de urbanização. Esses quantitativos parecem evidenciar uma substancial quebra na lógica social do espaço quando o Núcleo Planetário acontece. Entenda-se em nosso contexto como lógica social do espaço a condição de reciprocidade entre a lógica da sociedade e a lógica configuracional do espaço público. Em Natural Movement, Hillier demonstra claramente, como a condição configuracional do espaço público – dada pela medida de integração – fornece igualmente uma forte descrição para o comportamento do habitante urbano – descrito através de padrões de movimento. As correlações entre a medida de integração e os padrões de movimento – tanto para adultos quanto para crianças – observadas no conjunto de linhas que compõem o bairro (excluído o Núcleo Planetário) não desmentem a hipótese de Hillier. Ao contrário, as correlações são em geral altas e demonstram a nosso ver a lógica social dos espaços do bairro. Em contraste, fenômeno interessante ocorre quando o Núcleo Planetário é inserido no bairro e a comparação através de correlações é novamente procedida. Nesse caso as correlações, entre a medida de integração e qualquer das categorias que descrevem os fluxos de pedestres, caem substancialmente como que demonstrando uma perda na condição de reciprocidade que descreve a essência da lógica sócio-espacial. Conjeturamos que a queda no valor dessas correlações seria indicadora de uma dialética sócio-espacial em baixa (Figura 11).
Realidades virtuais
O conjunto de medições acima procedido permite e estimula que conjeturemos a respeito de um Núcleo Planetário virtual o qual, sem a modificação de suas características estéticas e programáticas, viesse a relacionar-se à vizinhança de modo mais integrado. Simulamos com esse objetivo uma outra configuração espacial para o núcleo habitacional baseada no prolongamento/continuidade espacial dos percursos do bairro que lhe são adjacentes, de modo que esses percursos ao invés de serem interrompidos ou fragmentados como ocorre na situação real viessem a penetrar o Núcleo e atravessá-lo de modo mais direto. A figura 12 mostra a situação real e a situação simulada. Em comparação, a situação real, já analisada, é mais densa em edificações. A situação simulada cresce em um piso – mantendo no total a mesma área – e deixa mais espaço aberto liberado, o qual é em parte utilizado na realização da estratégia acima apresentada, ou seja, a extensão para dentro do núcleo habitacional de duas ruas do bairro que lhe são adjacentes; as ruas Luis Manoel e Santa Terezinha (Figura 12).
Os diagramas e fotos mostrados nas figuras 13 e 14 evidenciam situações assumidas como críticas e determinantes da condição de segregação espacial do Núcleo Planetário. Na situação atual a Rua Santa Terezinha é obstruída por um dos blocos do Núcleo Planetário. A continuidade do espaço público ocorre através de um beco lateral produzido pelo estreitamento da rua (figura 13a). Na seqüência interna cinco linhas axiais compõem o percurso que atravessará o Núcleo na direção sul. A situação simulada rearranja as edificações de modo que a mesma Rua Santa Terezinha é estendida preservando o alinhamento predial (fig. 13b). Duas linhas axiais passam a articular Núcleo Planetário e bairro. Condição similar é propiciada pela extensão da Rua Luis Manoel onde os três degraus axiais hoje necessários para atravessar o Núcleo são substituídos por um único percurso direto (figura 14a,b). A situação simulada introduz por um lado uma condição de fragmentação espacial interna distinta daquela observada na situação real. O número de linhas axiais pertencentes ao interior do núcleo decresce de 12 para 4 e, em conseqüência o grau de fragmentação do conjunto bairro/núcleo baixa de 0.87, que é o valor dado pela situação existente, para 0.71, valor dado pela situação simulada; naturalmente em decorrência da radical redução no número de linhas axiais internas ao conjunto (figura 15). O valor de tensão – função do comprimento médio das linhas axiais – sobe de 233 para 280. Quanto à medição de permeabilidade, o valor observado para a situação simulada difere apenas marginalmente, se comparada com o da situação real. Ocorre que em ambos os casos o acúmulo de linhas axiais numa pequena porção de território é absolutamente maior que o padrão observado no restante do bairro; mesmo considerada a drástica redução de segmentos axiais ocorrida na situação simulada em comparação com a situação real. Muito embora a situação simulada reconstitua o padrão rua/quarteirão, o faz preservando a praça interna ao núcleo habitacional e um dos becos; situações atípicas no bairro. Comparativamente o grau de articulação com o bairro – dado pela conectividade média das linhas que compõem cada um dos sistemas – passa a ser maior quando a situação simulada é considerada. Isso decorre da retirada do sistema das linhas axiais do interior do núcleo Planetário em geral curtas ou pouco conectadas. Quanto ao nível de integração médio medido para o conjunto do sistema – bairro mais núcleo planetário – houve um aumento considerável quando medimos a interação do bairro com a situação simulada19. O nível médio de integração do bairro medido isoladamente é igual a 1.58. Quando o Núcleo Planetário é inserido a medida do nível médio de integração cai para 1.40. Em contraste, quando inserimos a situação simulada para interagir com o bairro, o nível médio de integração do conjunto sobe para 1.82 indicando a capacidade da situação simulada em contraste com a situação real, de costurar a malha urbana através do provimento de continuidade espacial ao sistema. Situação análoga ocorre com a medida de inteligibilidade – dada pela correlação entre integração e conectividade. Interagindo com o Núcleo Planetário o bairro perde em inteligibilidade – a correlação cai de 0.82 para 0.78. Ao contrário, quando o bairro interage com a situação simulada a correlação recupera seu valor anterior.
Outro aspecto que diferencia radicalmente a situação simulada com relação à situação real é a distribuição das linhas mais segregadas mediante as duas proposições. Conforme já observado, numa amostragem das linhas mais segregadas (30%) observa-se que na situação real mais da metade dessas encontra-se no interior do Núcleo Planetário. Ao contrário, quando o bairro interage com a situação simulada não há a ocorrência de bolsões de segregação. As linhas mais segregadas se distribuem de modo mais ou menos homogêneo por toda a área e nenhuma delas faz parte do núcleo habitacional virtualmente idealizado (figura 16). O conjunto de resultados ora verificados sugere que, independentemente da condição edilícia ou estética das edificações, a condição configuracional decorrente do desenho da malha de percursos é em muito responsável pela condição de segregação ambiental e social encontrada na situação em exame e, outrossim, que outras possibilidades configuracionais poderiam ter trazido para o Núcleo Planetário outro tipo de relação tanto espacial quanto social com o bairro onde se insere.
Notas finais
Não pretendemos que as conclusões do presente estudo sejam generalizáveis. Entretanto parece haver um grau forte de tipicidade no estudo de caso aqui apresentado. Por um lado o bairro em estudo é configurado em ruas e quarteirões ao modo da típica cidade tradicional comum no mundo ocidental. Por outro lado a implantação de habitação popular em áreas urbanas centrais passou a ser uma prática corrente nas administrações socialistas (e mesmo em algumas não socialistas) em diversas partes do mundo especialmente na Inglaterra, Alemanha e Itália. Portanto o procedimento de análise e muito das conclusões extraídas do presente trabalho parecem ter validade em situações similares; tanto desde o ponto de vista dos impactos sobre a pré-existência quanto sob a ótica do tipo de intervenção urbanística em análise.
Consideramos ao longo do presente estudo que a implantação do Núcleo Planetário impacta a cidade pré-existente em três níveis; quanto à lógica social ou de uso, quanto à lógica da estética urbana e finalmente, quanto à lógica configuracional da malha urbana; estruturação que pretendeu integrar o argumento ao modo vitruviano; da função para a forma e desta para a técnica, considerando a descrição configuracional como a invisível dimensão técnica da malha urbana. Desde o ponto de vista da condição de permanência esses impactos tem, por sua natureza, tempos diferenciados e a configuração dos espaços públicos é aquela que tende à mais longa permanência. No processo de evolução urbana, a contínua substituição das edificações e populações ao longo do tempo tem como referencial espacial a condição de permanência do espaço público. No caso do Núcleo Planetário essa parece ser a modificação mais forte imposta por ele – através de sua configuração espacial ao contexto; a introdução de uma rede de espaços públicos radicalmente contrastante comparativamente àquela do entorno. E essa modificação é radical a ponto de que mesmo se houvesse hipoteticamente uma substituição das edificações lá implantadas e mesmo a renovação da própria população ainda assim aquela região da malha urbana tende a permanecer como uma localização dotada de alto grau de segregação espacial. Não desprezam os impactos trazidos pelo Núcleo Planetário sobre as lógicas social e estética do bairro onde foi localizado. Entretanto, os resultados mostrados pela análise configuracional – e em muito confirmados pelas observações do uso do espaço – sugerem que no desenho do espaço público, mais que em qualquer outro aspecto, reside a essência da condição de segregação. Se a integração espacial – e também aquela que ocorre no plano da comunidade virtual são capazes de promover a integração social é outra questão que de fato extrapola o universo do presente trabalho.
notas
1
Colaboraram nesse trabalho: Eduardo Cunha, Eduardo Galvão Freitas and Ricardo Rocha (estudantes de Pós-graduação no curso de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Bruno Borne, Marcos Lamb, Mathias Modena e Lucia Fernandes (estudantes do curso de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e bolsistas de iniciação científica/CNPq). Edição final por Alex Klein.
2
Veja as resenhas do livro de Jane Jacobs de autoria de Regina Meyer e Hugo Segawa
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sobre o autor
Douglas Vieira de Aguiar é professor adjunto da Faculdade de Arquitetura – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, PhD pelo University College London