Ida ao exterior
Migrar não é obra de projeto pré-traçado. Mais do que um plano arquitetado, migrar é obra em construção de uma experiência vivida. É obra das escolhas dadas pelo momento e pela situação. É liberdade sem idealização, com penas e prazeres. Migrar é um aprendizado pelo estranhamento.
Minha mudança para os Estados Unidos não foi algo programado com muita antecedência, pois não me sentia especialmente atraído pelo mainstream americano em geral ou pela arquitetura e pelas cidades norte-americanas em particular. Foi, sem dúvida, mais obra da vida do que da profissão. Eu diria, neste fluxo de consciência, que foi uma escolha mais pelo exílio pessoal do que pelo imaginário cultural. O movimento da mudança em si foi uma experiência que eu resolvi repetir depois de ter passado um ano na França, em 1992, onde o imaginário tinha, sim, sido a motivação.
Formei-me na FAU-USP em 1986. Apesar das dificuldades econômicas do país e da crise ideológica da arquitetura, ficou da minha formação inicial um sentimento esperançoso em relação à profissão. Não querendo restringir minhas possibilidades, logo entrei no mestrado, comecei a dar aulas na USP em São Carlos, continuei pintando e desenvolvi alguns projetos de paisagismo e uma residência. Em 1989, um grupo de amigos me convidou para participar do concurso para a Assembléia Legislativa do Distrito Federal, do qual fomos vencedores. Essa foi a minha segunda formação. A experiência profissional como sócio do Projeto Paulista em São Paulo, na primeira metade da década de 1990, foi muito boa e produtiva, mas passada a fase de alguns concursos ganhos, o panorama quotidiano da prática começou a me parecer menos promissor do que o da universidade. Aos poucos, mudei minhas atividades, passei a freqüentar o atelier da gravura no MAM, entrei no programa de doutorado da FAU e, finalmente, deixei a sociedade do Projeto Paulista. Estava a um passo de mudar-me para os Estados Unidos, a caminho de uma terceira formação.
Cheguei em Ann Arbor, no Michigan, em janeiro de 1997. Nevava, como forma de boas-vindas. Tinha deixado o Brasil, minhas relações familiares e pessoais, meu escritório, e tirado licença do meu trabalho como professor da USP de São Carlos. Meu objetivo era desenvolver pesquisa complementar ao meu doutorado na FAU-USP junto ao programa de doutorado da Universidade do Michigan. Foi um tempo expansivo e de importantes reflexões teóricas e pessoais. Passei a me envolver com diferentes atividades na universidade, que me possibilitaram conhecer um grupo variado de pessoas, o que facilitou muito a minha adaptação acadêmica e pessoal. Apesar das incertezas, adaptar-me a Ann Arbor foi fácil. Meus encontros pessoais foram felizes.
Permanência
Durante o segundo semestre do programa na Universidade do Michigan, fui convidado para participar de bancas de projeto no curso de mestrado da arquitetura. Seguindo a indicação de alguns professores e algumas entrevistas com o diretor do programa, recebi um convite oficial para ser professor visitante. Naquele momento, percebi que haveria a possibilidade de desenvolver uma carreira acadêmica nos Estados Unidos. Não foi uma decisão fácil. O contrato seria renovado semestralmente, o que não implicava garantia a longo prazo. Assim mesmo, pedi demissão da USP, devolvi o dinheiro à universidade e ao CNPq pelo tempo que passei fora por uma possibilidade imprecisa para o futuro, incluindo todos os problemas burocráticos com visto de trabalho. Mas encarei o risco da decisão como um investimento.
Passei dois anos e meio na Universidade do Michigan. Durante esse período, mantive minhas atividades ramificadas pela incerteza. Continuei a desenvolver minha pesquisa sobre São Paulo com a dificuldade de estar distanciado da FAU-USP e tentando compatibilizar meu desenraizamento com um novo panorama profissional e intelectual. Escrevi alguns artigos e passei a participar mais ativamente de conferências. Participei, com colegas da escola, de um concurso de arquitetura para o Pier 42 em Manhattan e também colaborei em dois projetos de reforma residencial, incluindo um loft. Voltei ao exercício da gravura na departamento de artes. Montei uma exposição em Ann Arbor com trabalhos em fotogravura.
Das várias esfinges que encontrei, uma foi a cidade de Detroit, próxima a Ann Arbor. É uma cidade que acumulou numa curta história de apogeu e abandono a imagem mais acabada da destruição criativa do capitalismo industrial. Pelo avesso, encontrei muitas analogias com a cidade de São Paulo. Duas importantes cidades em crise com grandes fluxos de imigração e emigração, pobreza e riqueza, segregação, descaso político, culturas próprias. Como resultado dessa aproximação, acabei incorporando minhas reflexões sobre cidade às minhas aulas de projeto e à minha tese de doutorado.
Minha permanência nos Estados Unidos dependia de um emprego mais estável do que o que me oferecia a Universidade do Michigan. Depois de participar de uma conferência sobre arquitetura e memória na Washington University em 1998, soube da abertura de um concurso para uma vaga de dois anos como professor visitante. Resolvi me candidatar à vaga e fui escolhido. Em agosto de 1999 passei, então, a morar em Saint-Louis e a dar aulas de projeto e teoria da arquitetura e da cidade em tempo integral. O ano de 2001 foi decisivo. Defendi minha tese na FAU-USP. Candidatei-me a vagas como professor em outras importantes universidades americanas, uma vez que há grande mobilidade acadêmica. Depois de ter recebido quatro ofertas de trabalho de outras instituições, a Washington University me fez uma proposta para permanecer no corpo docente da escola.
Trabalho
Meu trabalho se voltou nos últimos anos para a atividade acadêmica. Em 2001, fui o candidato selecionado para um programa de pós-doutorado na Columbia University para dar aulas por um ano com o professor Andreas Huyssen, pesquisador da modernidade e crítico de cultura e literatura. Afastado da Washington University, passei o ano letivo 2001-2002 em Nova York. O programa "Culturas Urbanas Globalizantes", organizado como um seminário experimental de pós-graduação entre o Centro de Humanidades e a Escola de Arquitetura da Columbia, teve por objetivo estudar a relação entre a modernização globalizante e algumas metrópoles da América Latina, Ásia e África. O formato interdisciplinar do seminário – que contou com a colaboração, entre outros, de Rem Koolhaas, Okwui Enwezor, Arjun Appadurai, Teresa Caldeira e Beatriz Sarlo – o contato direto com Andreas Huyssen, Kenneth Frampton e Rosalyn Deutsche e a expericência de morar em Nova York somaram-se em uma experiência única. Adicionei uma importante peça no mosaico da minha compreensão da cultura arquitetônica e acadêmica norte-americanas.
Um dos resultados desse programa foi perceber que minha condição estrangeira oferece uma possibilidade ímpar para desenvolver um trabalho de correlação, comunicação e tradução entre diferentes culturas arquitetônicas e urbanas, principalmente entre o Brasil e os Estados Unidos. O papel de relação abre algumas possibilidades para o futuro. Aos poucos, dentro do desenvolvimento do seminário e com meu crescente interesse em investigar a relação entre modernidade, arquitetura e cultura, a obra da Lina Bo Bardi, pouco conhecida nos Estados Unidos, passou a ser o foco de minha nova pesquisa. Depois de ter tido escrito dois artigos e dado palestras sobre o assunto, fui encorajado por Andreas Huyssen e Kenneth Frampton a escrever um livro para o público americano sobre o trabalho dela. Esse é, atualmente, um dos meus projetos em andamento.
De volta a Saint-Louis desde agosto de 2002, tenho dividido meu tempo entre pesquisa e publicações e meus cursos na graduação e na pós-graduação na Washington University. Recebi uma bolsa da Graham Foundation, junto com com um colega historiador da arquitetura, para investigar a relação entre arquitetura e esfera pública com exemplos de São Paulo e Nova York. O resultado será transformado em um sítio da internet. A carga letiva de dois semestres é intensa: uma manhã para meus seminários de teoria e três tardes para o atelier de projeto. Vários professores, estudantes e professores visitantes, entre eles Glenn Murcutt (Austália), Juhani Pallasmaa (Finlândia), Charles Correa (Índia), Alfons Sodevilla (Espanha) e Team Zoo (Japão), são estrangeiros. No verão, coordeno o programa de viagem que vai de Helsinki a Lisboa. Um bom contraste para a cultura do meio-oeste americano. Há bom apoio para iniciativas pedagógicas na escola. Por exemplo, no primeiro semestre de 2003, estarei organizando um ateliê de projeto para apresentar proposta para o concurso de idéias para transformar uma linha de trem de carga desativada que corta o bairro de Chelsea em Manhattan. Minha intenção é aliar teoria e prática e expor os estudantes a uma visão reflexiva do papel do arquiteto como mediador de situações muitas vezes conflitivas, tanto do ponto de vista físico-espacial e escalar quanto sócio-cultural e político.
Arquitetura, prática e educação
Arquitetura é uma disciplina e uma profissão fascinante e complicada em qualquer parte do mundo. É impossível fazer generalizações, mas há alguns traços dominantes na maneira como a prática e a educação da arquitetura se estabeleceram nos Estados Unidos. Os ateliers de Belas Artes, que predominavam na virada do século XX, foram substituídos pelo pragmatismo das corporações na formas dos grandes escritórios prestadores de serviço. O projeto, hoje, é freqüentemente condicionado ou pela prática dos negócios ou pela lógica da celebridade, coisas que, se o capitalismo americano não inventou, certamente ele aperfeiçoou. A maioria das escolas dá grande ênfase ao ensino de projeto. Apesar de a produção ser visualmente estimulante, na relação entre a esfera da prática e a esfera pedagógica, a visão instrumental tende a predominar sobre a visão reflexiva. Mas há várias exceções, e é justamente esse um dos aspectos que tenho procurado investigar no meu trabalho.
Muito da experimentação e do que a crítica americana tem divulgado ultimamente como arquitetura progressiva se restringe à prática formalista de grupos organizados em torno dos star-architects já bem conhecidos internacionalmente. Sem dúvida, as questões do pós-moderno, do deconstrutivismo e da introdução do computador como linguagem de projeto aqueceram o debate desde os anos 1980s. Mais recentemente, tem crescido o interesse em investigar a produção arquitetônica fora do eixo Europa/Estados Unidos e em revisitar temas do modernismo. No entanto, com exceção de algumas abordagens acadêmicas, a discussão tende a se retirar para o campo formal e raramente leva à frente os questionamentos de caráter quotidiano, social ou político comuns ao modernismo. Casos patentes disso são, por exemplo, o silêncio em relação a alternativas habitacionais face à descontrolada suburbanização americana ou, ainda, o papel muitas vezes questionável que as celebridades do projeto têm tido na discussão dos problemas urbanos e arquitetônicos decorrentes da destruição do World Trade Center em Nova York ou da globalização de uma cultura arquitetônica auto-referente.
Outros traços marcantes e que estão na pauta de discussão são a divisão disciplinar e profissional entre arquitetura, projeto urbano, paisagismo e planejamento e o debate sobre o propósito da formação profissional. Os limites entre eles são freqüentemente mais acentuados do que as tentativas de complementariedade e colaboração. As próprias instituições profissionais acentuam essa fragmentação, que me parece problemática. Com isso, o espectro de atuação profissional é menos flexível do que o ocorre no Brasil. Mas essa orientação não é consensual. Há relações conflitivas dentro da academia entre grupos que defendem a idéia de uma formação profissional focalizada e instrumentalizante – alimentando, por um lado, grandes escritórios e, por outro, a imagem de star-architects – e outros que defendem uma formação mais abrangente, crítica e liberal.
Essa divisão se vê, mais acentuadamente, na corrente tendência à separação entre programas de graduação em artes liberais e programas de pós-graduação profissionalizantes. No entanto, estes últimos se tornaram obrigatórios, juntamente com uma experiência profissional de três anos, para se candidatar ao exame para registro profissional. Tenho representado a minha escola no Conselho Americano de Escolas de Arquitetura (ACSA) e vejo que a discussão entre os vários tipos de diplomas está apenas começando. Nesse panorama de mercado, tornar-se arquiteto nos Estados Unidos assemelha-se mais à formação do advogado ou do médico, ainda que, ironicamente, sem os mesmos benefícios financeiros. Muitos de meus alunos, que pagam por volta de 30.000 dólares por ano por sua educação profissional e saem da escola com um diploma valioso, mas com uma dívida de empréstimos que eles levam anos para pagar.
Balanço e retorno
Merleau-Ponty estava certo quando afirmou que a vida avança obliquamente. Migrar não é diferente. Depois de seis anos nos Estados Unidos, estou começando a saborear os frutos das minhas escolhas. Minha formação no Brasil tem se confirmado como um aspecto extremamente positivo para mim. Tenho grande apreciação pela exposição ao universo aberto e interdisciplinar que tive nos meus anos como aluno da FAU e o muito que aprendi com meus colegas de escritório e da Universidade de São Paulo, tanto em São Carlos quanto na FAU. Com a possibilidade de maior estabilidade, posso me dedicar a um trabalho que alimente meus interesses daqui para frente. Continuo tendo a sensação de que meu estranhamento nunca será superado. Nem em relação aos Estados Unidos e nem em relação ao Brasil. Mas vejo isso como parte motivadora do meu aprendizado pessoal e profissional.
Mais do que uma perspectiva de retorno, tenho procurado um reencontro com o Brasil. Por motivos pessoais e pela minha ligação até bastante recentemente com o curso de pós-graduação na USP, não deixei de acompanhar a vida geral e a cultura arquitetônica no país. Minha intenção é desenvolver uma colaboração em duplo sentido. Como disse antes, minha condição migrante oferece a possibilidade de estabelecer novos contatos, correlações e pontes entre questões e pessoas em ambos países. Escrever este testemunho é uma das formas de materializar esse projeto. Outros projetos estão a caminho, como, por exemplo, contribuir com publicações e montar um programa para levar meus alunos ao Brasil. Migrar, estar em movimento, responde mais a situações do que a planos pré-traçados. O nosso local de nascimento é o local onde a nossa vida faz sentido. Continuo acrescentando nomes de cidades à minha lista.
série completa dos "Depoimentos da Geração Migrante"
GUERRA, Abilio. "Depoimentos de uma geração migrante", Arquitextos 030.00, São Paulo, Portal Vitruvius, nov 2002 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq030/arq030_00.asp>.
SPADONI, Francisco. "Geração Migrante – Depoimento 1. Kenzo Tange e uma peniche no rio Sena". Arquitextos 030.01. São Paulo, Portal Vitruvius, nov 2002 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq030/arq030_01.asp>.
LEONIDIO, Otavio. "Geração Migrante – Depoimento 2. Em Paris, chez Christian de Portzamparc". Arquitextos 030.02. São Paulo, Portal Vitruvius, nov 2002 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq030/arq030_02.asp>.
VIOLA, Assunta. "Geração Migrante – Depoimento 3. Arquitetura e criatividade: uma experiência com Massimiliano Fuksas". Arquitextos 030.03. São Paulo, Portal Viutrivus, nov 2002 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq030/arq030_03.asp>.
ORCIUOLI, Affonso. "Geração Migrante – Depoimento 4. De São Paulo a Barcelona". Arquitextos, Texto Especial 161. São Paulo, Portal Vitruvius, dez 2002 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp161.asp>.
OIWA, Oscar Satio. "Geração Migrante – Depoimento 5. Arte sem fronteira". Arquitextos, Texto Especial 162. São Paulo, Portal Vitruvius, dez 2002 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp162.asp>.
MOREIRA, Pedro. "Geração Migrante – Depoimento 6. Brasil, Inglaterra, Alemanha – 15 anos", Arquitextos, Texto Especial 163. São Paulo, Portal Vitruvius, jan 2003 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp163.asp>.
LIMA, Zeuler R. M. de A. "Geração Migrante – Depoimento 7. Migrar, verbo transitivo e intransitivo. Uma experiência nos Estados Unidos", Arquitextos, Texto Especial 164. São Paulo, Portal Vitruvius, jan 2003 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp164.asp>.
DIETZSCH, Anna Julia. "Geração Migrante – Depoimento 8. Uma dupla experiência nos Estados Unidos", Arquitextos, Texto Especial 172. São Paulo, Portal Vitruvius, mar 2003 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp172.asp>.
sobre o autor
Zeuler Lima se educou na FAU-USP da graduação ao doutorado e atualmente é professor da escola de arquitetura da Washington University. Trabalhou como arquiteto em São Paulo e com ensino e pesquisa na USP-São Carlos (Brasil) e nas escolas de arquitetura de Grenoble e Saint-Etienne (França), Michigan e Columbia (Estados Unidos)