O senso comum nos diz que o Brasil é um país mestiço, amplo, diversificado, de forma que sua unidade territorial, garantida ainda no período imperial, apresenta um mosaico geográfico, histórico, cultural, social e econômico bastante complexo. Pois numa mesma viagem tive o prazer e o privilégio de viver um pouco dessas saborosas discrepâncias brasileiras em extremos distantes do país: numa ponta, o Piauí, noutra, Roraima. Parece ironia, mas um dos fatores que tem posto o Piauí no mapa dos interesses do mundo são homens e mulheres que lá viveram há 50 mil anos – na verdade, restos de seus ossos e os resquícios de suas cozinhas. Os estudos arqueológicos estão dando uma reviravolta na teoria de colonização da América e, para surpresa de muitos, fruto de pesquisas no interior do estado brasileiro da mais boliviana pobreza. A combinação de clima austero com um quase-vazio econômico foi responsável pela preservação de um dos mais significativos sítios arqueológicos das Américas. Este impressionante acervo está especialmente acessível em dois parques nacionais – sim, leitores incautos, também a caatinga está protegida por unidades de conservação! – que dispõem de estrutura de visitação de fazer inveja a outros parques famosos Brasil e mundo afora.Desde a década de 1990, o Parque Nacional da Serra da Capivara e sua equipe de arqueólogos já vem sendo reconhecida e figura, com freqüência, em matérias da imprensa, sempre acrescidas de um tempero de estupefação. Por seu turno, o Parque Nacional de Sete Cidades, mais ao norte, não impressiona menos: além de registros rupestres intrigantes, as formações areníticas, resultado da ação de vento, água e choques de temperatura, desenham silhuetas das tais "cidades" e outras formas curiosas – um busto de Dom Pedro, tartarugas, mapas, mãos, etc.A despeito dos estereótipos, o estado tem algumas peculiaridades geográficas que merecem ser consideradas: seu litoral é o mais estreito do Brasil e é o único a apresentar capital no interior. Até aí, nada de demais: poderíamos dizer que são apenas curiosidades de enciclopedistas. No entanto, isso poderia sugerir que o Piauí, como estado nordestino, mereceria menos apoio em projetos de desenvolvimento turístico.De fato, até há bem pouco tempo, o governo federal não punha muita fé de que o turismo pudesse vingar no estado, especialmente no interior: o Programa de Desenvolvimento Turístico do Nordeste, em suas etapas iniciais, focou atenções nos pólos litorâneos de estados com mais possibilidades de incremento no fluxo de turistas. À exceção da Chapada Diamantina, os rincões do "nordeste seco" (nos termos de Ab´Saber) raramente foram considerados em políticas públicas de desenvolvimento turístico.Hoje, se olhar com cuidado, o observador verá uma outra realidade projetada no anteparo piauiense. Junto desta mirada cuidadosa nos parques nacionais do interior, o litoral pode acrescentar lições e esperanças, contribuindo para a descontrução de alguns mitos. Até a “descoberta” do Delta do Parnaíba pelas operadoras turísticas, a costa do estado, com apenas 66 quilômetros, não figurava nos catálogos de viagem das grandes operadoras nacionais e, muito menos, das estrangeiras. Por mais que as praias do Piauí não possam competir com as baianas, o Delta das Américas, este conjunto de cinco braços do Rio Parnaíba que vai ter com o Atlântico, está dando importante destaque turístico para o estado.De forma inteligente, operadores turísticos – sempre na dianteira e mais astutos do que as políticas públicas – apostam neste atrativo para fazer uma história do turismo no estado. Por mais que o caranguejo ainda seja coletado intensamente nos vastos mangues, o turismo, quem diria, já é tema central na lista de prioridades de Parnaíba. A cidade, em função de ter sido entreposto para a cera da carnaúba, viveu um vigoroso desenvolvimento econômico até meados do século XX.Com a transformação econômica da região e tendo o Porto das Barcas ficado obsoleto, os armazéns foram convertidos em espaço de experiência turística, com bares, lojas, agências de viagens e outros serviços de apoio a atividades de lazer e entretenimento. Fazendo vista grossa às polêmicas conceituais, este é o mesmo processo pelo qual vêm passando importantes cidades turísticas brasileiras (Salvador, Recife, Fortaleza, Belém), que, ao darem novas funções a parcelas de seu mobiliário urbano, seguiram os exemplos de Buenos Aires, Barcelona ou Londres.Mais interessante que a profusão das águas do Delta é a feliz constatação de que, no Piauí, se está redesenhando uma imagem caracterizada historicamente pela expulsão de retirantes para as problemáticas metrópoles brasileiras. Prova disso é que, no sentido contrário, o insinuante fluxo de turistas chegados da costa nordestina, do Centro Sul do país e, ainda em menor escala, de outras partes do mundo começam a perceber que o estado pode ser muito mais do que o império da miséria. Na mesma viagem, num périplo de milhares de quilômetros, saltei do Piauí até o extremo norte do Brasil. Em Pacaraima numa festa junina, expressão típica da mestiçagem franco-luso-brasileira, o caixa da festa toma reais e devolve bolívares como troco. Naquele mar de macuxi e mestiços, ponteiam alvas cabeças de alguns sulistas que lançaram a sorte na cultura arrozeira, um dos esteios econômicos do estado de Roraima. Assim como cidades piauienses estão atentas ao novidadeiro desenvolvimento turístico, Pacaraima é também passagem obrigatória para os poucos que ousam, curiosos que são, chegar ao Monte Roraima – ainda que precisem fazer uma rota de acesso através de Santa Elena de Uairén, no lado venezuelano.A cidade, antes de se desmembrar de Boa Vista, era conhecida como BV8, em função de abrigar um dos marcos de fronteira. Desde sua emancipação, esta pequena sentinela da divisa vive do comércio de produtos pitorescos aos venezuelanos (como sandálias e redes de dormir). Além disso, esboça-se um turismo de residências secundárias, já que, por estar na subida do Planalto das Guianas, seu clima é mais ameno do que o de Boa Vista, o que atrai os moradores da capital.Tudo isso se dá, porém, sem muita graça e beleza, num caldo de desordem urbana – talvez, este cenário seja uma sina das cidades fronteiriças, a exemplo do que acontece em Chuí, no Rio Grande do Sul. É fato que, com o asfaltamento da BR-174, a ligar Manaus ao Caribe, as cidades ao longo da rodovia estão mais bem posicionadas na esparsa rede urbana roraimense. Uma viagem por esta estrada chama atenção do visitante desavisado, pois, ainda que esteja nos domínios do ecossistema amazônico, ela está emoldurada por um tipo de savana que nada lembra a densidade verde das florestas tropicais.No tocante à causa indígena, Roraima não foge à regra: as políticas de atendimento ao índio no estado não demonstram consistência. Um pulinho no estado da Gran Sabana, na Venezuela, talvez – apenas talvez – indique algum caminho a ser trilhado no Brasil: os atrativos naturais da região são plenamente acessíveis pela rodovia e, na entrada de cada um, construções rústicas abrigam indígenas que comercializam o resultado de seu trabalho artesanal. Se isso isoladamente confere melhor qualidade de vida ao índio venezuelano, não é possível saber. No entanto, o país caribenho parece integrar de forma sistemática os donos da terra a atividades turísticas mais intensas do que essa Roraima desconhecida dos brasileiros. Assim como o Piauí está para o Nordeste, Roraima está para o Norte: os traços que conferem algum tipo de peculiaridade às suas paisagens, talvez não sejam a imagem esperada pelo turista que visita Fortaleza ou Manaus. Isso, no entanto, não significa um impeditivo para que, nos confins do Brasil, essas regiões, valendo-se de suas especificidades – que, aos olhos de muitos, podem parecer excentricidades – busquem através do turismo inverter ou corrigir os cursos de uma vida aparentemente imutável, restrita ao esquecimento, ao isolamento e à pobreza.
Afinal, que turismo se espera para lugares onde o índio, apesar de ver novela, vive triste na cidade? Que vida é esta, das piripiris e piracurucas, que seguem teimosamente sua faina, a despeito dos branquelos desajeitados que já circulam por suas tímidas e empoeiradas rodoviárias? De que forma isso tudo influencia o secular ritmo das imbricações entre visões preconceituosas, ranços de políticas demagogas e uma paisagem peculiar? Não dá para esquecer a máxima de inspiração determinista, de Euclides da Cunha, que dizia que a geografia prefigura a história. Se isso pode ser verdade, nem faz tanta diferença aqui. A questão inadiável é assumirmos a urgência de apreendermos um Brasil que é muitos. Darcy Ribeiro, junto de outros iluminados, já deu brilhantes contribuições e começou a cimentar um caminho para nossa própria compreensão. Talvez, quando falamos de turismo, falte ainda aos estrategistas desta atividade a clareza, a sensibilidade e a vontade de saber que, sendo um intrincado caleidoscópio de paisagens, as várias regiões brasileiras não aceitam a aplicação de modelos herméticos. Avançando-se nesta missão, então – e só então – as ações de desenvolvimento turístico serão mais coladas às realidades locais e mais eficientes em todos seus aspectos.
sobre o autor
Thiago Allis é graduado em Turismo e mestre em integração da América Latina pela USP, com ênfase no estudo do patrimônio cultural ferroviário e turismo no Brasil e na Argentina. Participou de projetos de pesquisa e planejamento turístico nas regiões Nordeste, Sudeste, Sul e Norte do Brasil e atualmente é docente do Curso de Tecnologia em Turismo Receptivo do Centro Federal de Educação Tecnológica e analista de turismo da São Paulo Turismo S/A.